Com o deflagrar das recentes Operações de repercussão nacional, tem-se visto uma propagação de Ações de Improbidade Administrativa ajuizadas pelo Ministério Público e, em sua grande maioria, decisões liminares que decretam, indistintamente, a indisponibilidade de bens dos acusados.
Infelizmente, fato é que pressões sociais e midiáticas têm acarretado ofensas absurdas às garantias constitucionais de defesa dos acusados nessa espécie de ação, na medida em que se observa a ausência da isenção/imparcialidade necessária para sua apuração e julgamento.
A decretação de indisponibilidade de bens advém de interpretação do art. 37, § 4º, da Constituição Federal e do art. 7º da lei 8.429/92, assim redigidos:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
§ 4º. Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e na gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação pena cabível.
Art. 7° Quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade dos bens do indiciado.
Parágrafo único. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito.
Ocorre que, a partir de decisão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do recurso repetitivo de Tema n.º 701 (REsp 1.366.721/BA1), fixou-se o entendimento jurisprudencial de que o periculum in mora para a decretação de indisponibilidade de bens está implícito no comando do art. 7º acima transcrito.
Isso decorreria da expressão "recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano", entendendo a Corte Superior que bastaria uma cognição sumária acerca de indícios da prática de ato ímprobo, dispensando-se a presença do fumus boni iuris, isto é, de demonstração de ato de dilapidação patrimonial ou iminência de fazê-lo.
Propagou-se, assim, a orientação segundo a qual seria desnecessário um fundado temor de desvio, danificação ou ocultação de bens, o que resulta, hoje, em diversas medidas liminares, indubitavelmente gravosas aos acusados, nas mais variadas ações.
Todavia, a conclusão do Superior Tribunal de Justiça, fixada em acórdão em que, dos sete votos proferidos, três foram vencidos2, parece-nos equivocado, pois contraria garantias constitucionais dos acusados, notadamente a presunção de inocência.
Com efeito, o entendimento adotado no julgamento do recurso repetitivo deixa de lado a presunção de inocência para adotar a presunção de dilapidação patrimonial, o que foge completamente à razoabilidade e afronta a Constituição Federal.
Essa posição, lamentavelmente, parte da premissa de que todo agente público é ímprobo, como bem se observa na consagrada obra Comentários à Lei de Improbidade Administrativa:
Para aferição da presença ou não de periculum in mora, um dos elementos que justificam o bloqueio de bens há que se aferir as condições fáticas de cada caso, principalmente levando-se em conta que dificilmente os casos têm plena identidade fática. Considerar presumido o periculum in mora é considerar sempre que todo agente público, mesmo que a apuração de sua responsabilidade ainda vá ser apurada, é presumidamente ímprobo, antes mesmo de poder exercer plenamente o contraditório e seu pleno direito de defesa.
Presumir a presença de periculum in mora é desconsiderar e tornar despiscienda qualquer verificação quanto à conduta imprópria do agente que figura como réu na ação de improbidade, o que relega o pedido de bloqueio apenas à presença do fumus boni iuris.
(...) Se considerarmos tais medidas constritivas como modalidade de tutela de evidência, o ajuizamento de toda e qualquer ação de improbidade proposta com fundamento em alegada lesão ao patrimônio e/ou enriquecimento ilícito ensejará o automático bloqueio e indisponibilidade de bens dos réus, o que, em caso de improcedência da ação, implicará em direito à mais plena indenização de danos materiais e morais por parte do Estado. A aferição da presença do fumus boni iuris e do periculum in mora, caso a caso, elimina a possibilidade de bloqueios e decretação de indisponibilidade infundada, a partir de um juízo de presunção, destituído de evidências fáticas3. (Grifos daqui)
Na linha do excerto doutrinário, observa-se que a orientação jurisprudencial caminha tão somente para assegurar "respostas" à sociedade, afastando-se garantias de defesa dos acusados e sem que se apure, concreta e efetivamente, a existência de ilícitos e como agiram seus supostos praticantes.
Disso resulta, no cenário atual de grande repercussão midiática das Ações de Improbidade Administrativa, uma gravidade ainda maior, uma vez que, na prática, tem se verificado a indisponibilidade automática de bens dos acusados — lembre-se, antes mesmo da decisão de efetivo recebimento da ação, obrigatória segundo o art. 17, § 8º, da lei 8.429/92.
Tudo se torna pior quando o Ministério Público, ciente dessa indisponibilidade imediata e inconsequente, exerce pretensões com valores absurdamente superestimados, destituídas de prova — e que vão muito além até mesmo daquilo que o próprio MP tenta provar como valores de recebimento ilícito ou dano ao erário, exagerando na valoração da multa civil e de supostos danos morais e assim atingindo todo o patrimônio dos acusados.
O que acontece nessa situação, em verdade, configura um periculum in mora inverso, no sentido de que a ação pode ser julgada totalmente improcedente ao passo que, bloqueados os bens, o agente público passa a sofrer enorme prejuízo em sua esfera jurídica: configura-se uma gravíssima condenação prévia (e automática) por ilícitos não praticados.
Contrariamente ao entendimento que prevaleceu no STJ, portanto, os votos vencidos, sim, coadunam-se com o sistema constitucional brasileiro e toda a lógica processual sob ele constituída. Exatamente por isso, asseverou o eminente Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator vencido, que "as garantias processuais são instituídas precisamente em favor dos infratores, pois os que não se acham sob a mira de ações sancionadoras não reclamam a proteção dessas garantias".
Do supracitado art. 7º da lei 8.429/92 não se extrai qualquer singularidade hábil a afastar a compreensão geral das tutelas cautelares no direito brasileiro, de modo que a interpretação realizada, especialmente sob a ótica do Novo Código de Processo Civil, entende equivocadamente como tutela de evidência — que independe da demonstração de risco ao resultado útil do processo4 — aquilo que tem evidente natureza cautelar e, por isso mesmo, depende da demonstração do periculum in mora.
Por tudo isso, e principalmente em razão da aplicação leviana da decretação de indisponibilidade de bens para toda e qualquer Ação de Improbidade Administrativa, faz-se necessário rever o posicionamento do STJ, para que assim se possa atender aos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, do devido processo legal e da presunção de inocência.
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1 Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/02/2014, DJe 19/09/2014.
2 "Prosseguindo no julgamento, por maioria, vencidos os Srs. Ministros Relator, Ari Pargendler e Arnaldo Esteves Lima, dar provimento aos recursos especiais da União e do Ministério Público Federal, nos termos do voto do Sr. Ministro Og Fernandes que lavrará o acórdão. Votaram com o Sr. Ministro Og Fernandes os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina e Herman Benjamin."
3 CERQUEIRA, Luís Otávio Sequeira de. Comentários à Lei de Improbidade Administrativa: Lei 8.429 de 2 de junho de 1992. Fernando da Fonseca Gajardoni, Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz, Luís Otávio Sequeira de Cerqueira, Luiz Manoel Gomes Junior e Rogerio Favreto, 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. pp. 90 e 91.
4 Art. 311 do Novo Código de Processo Civil: A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando:
I – ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte;
II – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante;
III – se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa;
IV – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.
Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.
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