Migalhas de Peso

Lei de introdução à atividade empresarial II – Os agentes e as estruturas da atividade mercantil

É preciso ter em mente que o Brasil é um país de extensa dimensão, no qual diversas realidades sociais e econômicas se apresentam concomitantemente.

10/8/2016

Projeto de Código Comercial, “Go Home!”

No artigo anterior tratou-se de proposta para a revisão do conceito de atividade empresarial, tendo sido apresentadas mudanças profundas em relação ao tema – estas sim uma verdadeira e necessária novidade em relação à lei vigente e ao malfadado projeto de código comercial em curso no Congresso Nacional. Atividades econômicas obedecem a uma dinâmica própria que recusa engessamentos legislativos.

Cabe agora cuidar dos agentes e da estrutura da atividade mercantil, em uma proposta que objetiva tornar seu exercício mais eficiente. Antes, porém, é preciso ter em mente que o Brasil é um país de extensa dimensão, no qual diversas realidades sociais e econômicas se apresentam concomitantemente, desde o pequeno bar ou venda de uma cidade situada no mais longínquo dos rincões da nossa pátria, até a fábrica maior e mais sofisticada que a tecnologia possa permitir. Ora, dentro desses cenários, cumpre continuar a tutelar o exercício do comércio tanto pelo micro empresário individual, que não deve ser marginalizado, quanto, ao mesmo tempo, por empresários de médio, grande e porte gigante para que tenham segurança no exercício da atividade, sem o que não se construirá uma estrutura adequada para cada uma dessas necessidades.

No sentido acima, a nova lei deverá manter a figura do empresário individual, dono de um pequeno negócio, mas garantindo o reconhecimento, sempre, da existência de separação patrimonial entre os bens do seu uso particular e de sua família e aqueles destinados ao comércio, seu ganha pão. Considere-se a hipótese de exclusão total da responsabilidade ilimitada do empresário, preservados os interesses dos credores até porque as relações entre esses dois polos – débito e crédito – visam a determinar se o patrimônio ativo supera, ou no mínimo, iguala o passivo. Lembre-se de que comerciantes mais humildes dificilmente terão conhecimento e condições de aderirem formalmente a qualquer estrutura limitadora de sua responsabilidade pessoal e, nada obstante, eles são agentes importantes na economia das micro cidades nas quais atuam, que deles dependem, muitas vezes, para acesso a suprimentos básicos e, portanto, de bem estar.

A solução para o problema está na determinação de uma separação patrimonial fática entre os bens particulares do comerciante e os que compõem seu estabelecimento, segundo uma avaliação a ser feita no caso concreto, diante de eventual pendência judicial. Poder-se-ia, dentro de um processo progressivo da determinação das obrigações mercantis para os micro e pequenos comerciantes, recorrer a sistema informacional baseado em escrituração bastante simplificada, que demonstre, evidencie, referida separação patrimonial e permita comparar ativos e passivos. Por óbvio não se deve facilitar malabarismos e truques e, portanto, o afastamento desse benefício há de estar presente no sistema.

No entanto, considerando mais uma vez a realidade brasileira, ainda que o micro empresário (podemos até nos referir ao micro-micro comerciante) deixasse de atender ao padrão mínimo de escrituração, ele não deveria ser penalizado nos momentos de crise com responsabilidade pessoal ilimitada pelas obrigações contraídas durante a prática da atividade mercantil. É preciso permitir sua sobrevivência diante dos azares da vida, o que poderia ser feito por meio de construção mais adequada do que a ideia do bem de família. Nesse patamar, pode-se pensar, ainda, na formulação do estabelecimento comercial de responsabilidade limitada, com contornos legais construídos de forma adequada. Seria um sistema de separação patrimonial em favor do comerciante pessoa natural, um pouco mais sofisticado do que a tutela do bem de família.

Subindo um pouco mais na escala da estrutura da atividade mercantil, devemos pensar nos modelos societários que possam atendê-la de forma mais eficiente, do que decorre a imperiosa necessidade do retorno à sociedade limitada com o caráter contratual que ela apresentava no modelo anterior ao do Código Civil (decreto 3.708/1919), simples e perfeito; bem assim superar a tipicidade fechada que dificulta estruturar capital ventures, por exemplo. É preciso que os agentes econômicos possam, de forma criativa, estruturar, individualmente, modelos societários que atendam suas necessidades específicas, peculiares. Esta é uma prática constatada desde o surgimento do Direito Comercial, permitindo-se ampla gama de possibilidades, preservada a segurança de terceiros, sempre vinculada aos termos do contrato social de cada uma dessas sociedades, instrumento que deverá ser devidamente arquivado no Registro de Comércio. Lembrando Sylvio Marcondes, interessa saber se há responsabilidade solidária, mesmo que secundária, dos agentes econômicos.

Sob o aspecto acima, é preciso seja repensada a função do capital social que, na verdade, jamais foi de fato garantia para os credores. Ele nunca passou na realidade de uma cifra de referência, pois os recursos são investidos em ativos de diferentes naturezas e só se sabe que o capital apontado nos balanços representa o montante contribuído pelos sócios e que lhes deverá ser, eventualmente, devolvido por ocasião de retirada ou liquidação do negócio sociedade. O patrimônio líquido, quando se mostre positivo, é que garante aos credores o recebimento dos seus créditos.

É claro que em muitas circunstâncias (como aquelas presentes nas atividades de bancos e de seguradoras), a determinação legal de um capital mínimo é relevante no sentido do reconhecimento da necessidade de montantes obrigatórios elevados de recursos para fazer frente ao desenvolvimento do negócio. Mas em um banco, por exemplo, o capital somente deve ser utilizado em situações emergenciais e provisórias, na medida em que forma um colchão de garantia para as suas obrigações. Os bancos são intermediadores de recursos provenientes dos doadores, destinados aos receptores, dentro de um fluxo contínuo (tomados tais termos segundo o seu sentido em economia). O capital deverá ser aplicado nos momentos em que o fluxo de caixa se mostrar negativo em certos momentos do dia-a-dia da atividade bancária, que, por sua vez, tem sua utilização precedida de reservas que são estabelecidas pela Autoridade Monetária. O mesmo raciocínio pode ser estendido para as seguradoras.

Retomando a classificação das sociedades comerciais entre de pessoas e de capitais, tanto a limitada quanto a anônima têm como eixo as contribuições patrimoniais dos membros. Todas as demais podem combinar contribuições pessoais e patrimoniais, explicitando o que cada sócio se compromete a entregar.

E mesmo assim, o novo direito societário deve permitir a construção de uma variedade de sociedades anônimas (já se tem defendido a existência da sociedade anônima simplificada), segundo modelos que recepcionem a complexidade crescente na forma e no conteúdo, encontrando-se no topo da pirâmide o equivalente às companhias do Novo Mercado, em que as Bolsas, para admitirem os valores mobiliários à negociação, impõem regras específicas.

O operador jurídico brasileiro precisa começar a aprender a pensar fora da caixa, preso que tem sido a estereótipos seculares, assim perdendo de vista a evolução das formas pelas quais se exerce o comércio mundo afora. É sob esse ponto de vista, entre outros, que fica demonstrada a pobreza franciscana do projeto de código comercial que ora se discute. Ela apenas apresenta mais do mesmo, com algumas pinceladas de novidade, estando essencialmente preso ao passado sem atentar para a criatividade dos agentes econômicos, esquecendo, ainda, o negócio indireto a que recorrem para afastar regras obsoletas. Evidentemente não se trata de romper com a história do Direito Comercial, que sempre recepcionou o novo. Muito pelo contrário, é preciso tê-la em mente, ao mesmo tempo em que se acompanha o desenvolvimento secular dos institutos correspondentes, atualizando-os, tal como se fez no âmbito interno das corporações de mercadores durante a Idade Média. Uma coisa é olhar e valorizar o passado. Outra muito diferente é viver nele.

No campo das companhias, a lei 6.404/76 foi uma daquelas mais bem construídas no nosso ordenamento jurídico (não por outra razão ela se tem mantido intacta em sua estrutura fundamental), que certamente pode ser aperfeiçoada (o que precisamente ocorreria se algumas mudanças que nela foram feitas retroagissem ao modelo original). Há algumas questões críticas a serem resolvidas. Entre elas uma tutela mais adequada dos acordos de acionistas que se transformaram, ao longo do tempo, em um permanente fator de crise interna, gerando demandas em profusão. Ao invés de serem utilizados para facilitar a tomada de decisões em benefício da companhia, eles se tornaram uma nova instância esdrúxula de decisões à revelia da vontade majoritária dos sócios.

Outros pontos nos quais mudanças se mostram necessárias são o da configuração dos deveres e da responsabilidade do controlador (precedida de melhor delimitação do seu conceito jurídico), dos administradores e conselheiros fiscais. Os parâmetros das disposições da lei sobre esses institutos não tem se mostrado eficientes, como é o caso das companhias de grande porte, nas quais uma enorme quantidade de administradores, espalhados nos mais diversos setores da empresa, não lhes dá condições fáticas da implementação da fiscalização mútua que a lei lhes exige.

Seguindo adiante, é a vez da abordagem dos grupos econômicos e dos consórcios na qualidade de instrumentos destinados ao exercício conjunto, coordenado, da atividade mercantil. Sabe-se que, entre outros motivos, pela ausência de um concerto entre os ramos de direito envolvidos nessa modalidade de operação (comercial, trabalhista e tributário), os chamados grupos de direito não encontraram espaço no Brasil.

Neste caso, é necessário o aperfeiçoamento legislativo no tratamento que é dado aos grupos na própria lei societária, a par de visão mais racional do direito tributário (que deve mudar sua orientação estritamente arrecadatória, em função de um sistema que reconheça a eficiência como um parâmetro fundamental).

Quanto ao direito do trabalho getulista, as discussões se aprofundam sem, ainda, horizonte perceptível para mudanças. Ainda vivemos distorções causadas por um fascismo ultrapassado, no qual o Estado Provedor dava cobertura ao empregado, visto como hipossuficiente, dependente e quase escravizado, utilizado como massa de manobra política. Nosso direito trabalhista é um dos mais retrógrados entre os ordenamentos jurídicos, sendo reconhecidamente uma das causas importantes para o travamento do nível de crescimento da oferta de empregos e da busca por eficiência. O custo de um trabalhador é praticamente o dobro do que ele recebe a título de remuneração (salário) e essa diferença em favor do governo consiste no apanágio da malversação de recursos escassos. É claro que esse custo extra, aliado a uma tributação desmesurada, torna o produto brasileiro extremamente caro em relação ao praticado por outros países.

No plano dos consórcios mudanças também são exigíveis, para que eles apresentem maior racionalidade e eficiência, especialmente no que diz respeito às relações internas e externas. E valeria a pena considerar as cooperativas, notadamente as de produção, sociedades mercantis como eram na origem.

Uma última palavra cabe em relação às sociedades de propósito específico (SPEs), largamente utilizadas no Brasil e que se tornaram infindável fonte de demandas entre os sócios, muitas delas surgidas na sua mais tenra infância. Considerando-se a imprestabilidade proverbial das limitadas segundo o modelo que foi criado pelo Código Civil, a forma predominantemente adotada na constituição de SPEs é a anônima fechada. Os problemas não se revelam no campo estrutural, mas no da assimetria de informações que, em muitos dos casos, é recíproca entre as partes, tanto no plano interno quanto no externo.

Internamente os acionistas não se conhecem e não têm sido eficientes na construção de mecanismos capazes de proporcionar equilíbrio em suas relações pessoais e econômicas. Nessas sociedades a interação entre os administradores (que geralmente são próprios sócios) é fundamental para o bom andamento do projeto e o seu relacionamento padece de profissionalismo que começa pela inexistência e/ou não atendimento de normas de governança corporativa verdadeiramente adequadas.

Os modelos contratuais (presentes nos acordos de acionistas) têm pecado no tocante ao desenvolvimento do seu projeto de um lado pelo exagero e, do outro, pela insuficiência. No primeiro caso, não tem se revelado satisfatório o recurso a contratos estipulados em uma infinidade de normas, classificadas em cartas de intenções, preambulo, definições e tutela por temas. O aparente extremo cuidado em cercar todas as possibilidades de ocorrências mediante a enorme quantidade de normas voltadas para elas omite a realidade de que são contratos incompletos (ou seja, inexiste a possiblidade real de exaustão de todos e quaisquer eventos futuros). E se alguém tentasse prevê-los, a negociação se estenderia ad aeternum, prejudicando os interesses de todos, considerado o tempo que passa e a dinâmica da atividade que as SPEs se propõem a exercer.

A insuficiência de cláusulas objetivando a solução de problemas futuros se dá pelo mesmo motivo: a incompletude contratual. Já que ela está presente, não adianta tecer uma profusão de regras, mas, isto sim, de deixar portas abertas para a solução de pendências que possam ocorrer entre as partes, segundo critérios preestabelecidos, flexíveis o suficiente para agasalharem mecanismos oportunos de solução de conflitos.

Sob esse ponto de vista, mais uma vez, o projeto de código comercial se revela completamente ignorante.

Continuaremos em breve.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da USP e sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.









*Rachel Sztajn é professora de Direito Comercial da USP e advogada.

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