Migalhas de Peso

Doação e incentivo à filantropia no Brasil

O Brasil precisa consolidar uma cultura de filantropia e incentivos no âmbito universitário.

29/7/2016

A doação prevista no artigo 538 e seguintes do CC tem por essência um ato de liberalidade do doador, o qual dispõe gratuitamente de seu patrimônio em favor de outrem. Podem constituir o objeto da doação (compreendido como patrimônio) bens móveis ou imóveis, assim como “coisas que estão no mercado”.1

A doação pura não envolve qualquer tipo de contraprestação, subordinação ou condição e é unilateral por essência. Por outro lado, existe outro tipo de doação que envolve uma prestação (ou encargo) chamada de doação modal ou doação com encargo.

O encargo é um ônus imposto ao donatário. Trata-se, pois, de um “negócio jurídico que vincula o donatário a uma determinada obrigação, em favor do doador, de terceiro, ou do interesse geral”.2 As doações com encargo ocorrem nos termos do artigo 553 do CC, sendo o donatário obrigado a cumprir os encargos da doação, do contrário, conforme estabelece o artigo 555, em caso de inexecução do encargo ou ingratidão do donatário, a doação pode ser revogada.

Ponto importante para destacar sobre a doação modal é que se trata de negócio jurídico bilateral, pois na hipótese do donatário não aceitar a liberalidade, não se vislumbra a confluência de vontades, requisito típico e essencial aos negócio jurídicos bilaterais3. Ou seja, sem a aceitação, o contrato de doação não é formado. Nesse diapasão, é imprescindível que o donatário aceite a doação, para que aludido contrato passe a existir.

Ademais, a doação modal possui como aspecto ínsito à sua natureza, a coercibilidade, uma vez que impele o donatário a cumprir o encargo imposto pelo doador, sob pena de permitir a revogação da doação. O inadimplemento da obrigação, neste caso, não enseja a resolução automática do contrato, mas tal disposição pode ser expressamente estipulada livremente pelas partes4. Logo, restando configurado o inadimplemento do encargo, o donatário deverá ser constituído em mora, para que seja procedida a revogação da doação.5

E quais são encargos podem ser estipulados no contrato de doação modal? É possível estabelecer um encargo como prestação moral apenas, ou precisa haver um retorno econômico? Nos filiamos à posição de Nelson Nery Junior, ao aduzir que “o modo, carga ou gravame, pode ser de qualquer tipo de atuação ou conduta, mesmo que sem valor econômico, ou pode ser um motivo, uma finalidade, desejo ou recomendação, ou definitivamente, o cumprimento de uma obrigação como determinação acessória da vontade do doador.”6

Encargo de prestação moral também pode ser traduzido como uma homenagem, uma honraria, um ato que o donatário se compromete a realizar, uma reverência ao doador (ou a quem o doador indicar), dentro dos termos e condições estipulados no contrato. Repise-se, não se trata de uma questão financeira relevante, mas, sim, de uma prestação solene de saudação.

Em se tratando de doação modal, vale relembrar um caso interessante: em meados de 2009, fora realizada uma doação em pecúnia (por volta de R$1 mi) à Faculdade de Direito da USP. Tal valor foi empregado na reforma de banheiros e de um auditório. Como contrapartida, a título de homenagem, o Instrumento Particular de Doação com Encargo estabelecia que o auditório reformado deveria ser batizado com o nome do pai do doador (ambos ex-alunos da Faculdade de Direito da USP), como “Sala Pedro Conde”7, assim como guardar um retrato do homenageado, nas dependências, pintado a óleo por renomado artista nacional.

Pois bem. Um ano após a reforma do auditório, a Faculdade de Direito da USP desfez aludida homenagem8. O doador, Sr. Pedro Conde Filho, em virtude disso ajuizou ação judicial com o intuito de revogar a doação e reaver o correspondente montante. O juízo de primeira instância compreendeu que a USP deveria ressarcir o valor doado, tendo em vista o não cumprimento do encargo. E, aos 10/3/14, o TJ/SP, por sua vez, manteve a decisão de primeira instância (de forma não unânime – 2x1).

Cumpre destacar alguns trechos do voto divergente do Desembargador Leonel da Costa. Segundo ele:

(1) “não houve doação de dinheiro que enseje restituição. A doação foi de entrega de coisa certa”;

(2) “houve manifesta irregularidade no negócio jurídico (...) abrindo oportunidade para eventual indagação sobre a ocorrência de improbidade administrativa e cabimento de ressarcimento ao erário público”;

(3) “Era notório que a aceitação e cumprimento do encargo exigiam atividade de natureza complexa”;

(4) “Sugere a leitura dos fatos e documentos que a doação era mesmo de arcar com despesas destinadas à reforma e atualização de dependências do prédio histórico da Faculdade de Direito e que em algum momento posterior, foi feito o instrumento particular do negócio jurídico para a estipulação do “encargo” de prestação de honraria”;

(5) “A honraria desejada e prevista no instrumento particular não pode constituir o encargo na doação, na acepção da lei civil, a permitir a revogação e comprometer a Administração Pública, que se sujeita às regras severas de licitação e outras de legalidade, moralidade, etc. (art. 37 da Constituição da República) de controle do dinheiro público e sua oneração, e que exigiria prévia autorização legislativa estadual”;

(6) “entende-se que se atingiu a alma ou o objetivo do “encargo”, que estava sob condição implícita, materializando-se o conteúdo a que o “encargo” visava, ainda que não exatamente da forma idealizada pelo autor, que sabe do valor honorífico e grandiloquente de ter o nome paterno eternamente jungido às Arcadas do Largo de São Francisco por mérito, e não por escambo.”

Depreende-se do voto em apreço, ao menos, seis argumentos relacionados ao mérito da matéria. Num dado momento, aduziu ser lícita, por parte da Faculdade de Direito da USP, a prestação de homenagem alternativa à estipulada no Instrumento Particular de Doação com Encargo9.

Não se pretende aqui refutar ponto a ponto da argumentação vencida no Tribunal. Do ponto de vista jurídico, o que gera desconforto é o fato de que não somente o desembargador, como uma tradicional instituição de ensino superior, a Faculdade de Direito da USP, simplesmente, olvidaram a existência e validade do contrato em comento. Do ponto de vista social, os efeitos são ainda mais nefastos: ao tratar o doador desse modo, a USP passou uma péssima imagem a potenciais e futuros filantropos, no Brasil e no mundo10.

O Brasil precisa consolidar uma cultura de filantropia e incentivos no âmbito universitário. Um investimento vultuoso em infraestrutura universitária não é algo banal, comum ou ordinário. Tratá-lo como tal, e ainda, encetar ao doador (de quem partiu o investimento) a imagem de alguém que cometeu improbidade administrativa, violou a lei, e tem o interesse de realizar escambo com a instituição da qual é egresso, é vituperar não só a pessoa do doador, mas o seu simbólico gesto, que poderia servir de incentivo a toda uma geração.

Considerando que, no Brasil, parte significativa das universidades renomadas é pública, então a atitude perpetrada pela universidade e o voto vencido (supracitado) nos trazem um cenário desalentador que envolve burocracia excessiva, a completa falta de estímulo ao doador, e o desapreço pelo Poder Público ao contrato de doação modal firmado.

______________

1 NERY JUNIOR, Nelson. Soluções práticas de direito: contratos e obrigações, direitos reais e direito das sucessões. 2ª edição ver. amp. atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pág. 585.

2 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática – 5ª edição, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2014, pág. 537.

3 Vale frisar que a doação modal se sujeita às regras jurídicas que norteiam os negócios jurídicos no Código Civil (e.g.: capacidade, forma, validade, etc.).

4 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2008, 26ª Edição, pág. 255.

5 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2008, 26ª Edição, pág. 259.

6 NERY JUNIOR, Nelson. Soluções práticas de direito: contratos e obrigações, direitos reais e direito das sucessões. 2ª edição ver. amp. atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pág. 586.

7 A Faculdade de Direito da USP deveria fixar uma placa na entrada do auditório e se referir ao local nos seus documentos como “Sala Pedro Conde”.

8 Conforme explica o acórdão do caso em apreço: “(...) a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, por seu diretor à época da doação, decidiu, por meio da Portaria GDI 07/2010 (fls. 29/31), aceitar o encargo, homenageando o ex-aluno. O assunto foi, então, submetido à aprovação da respectiva Congregação, que confirmou a legalidade e conveniência da referida Portaria, em sessão realizada em 29.04.2010. Por insurgência de discentes da Universidade contra o referido ato, foi interposto Recurso Administrativo, objetivando a invalidação da mencionada Portaria, quanto à nomeação do auditório como “Sala Pedro Conde”, o que teria ocorrido sem a aprovação dos órgãos competentes. O recurso foi acolhido, determinando-se a retirada da placa com o nome do ex-aluno na entrada do auditório. É inquestionável que, a partir desta mencionada decisão, a donatária tornou-se inadimplente quanto ao encargo assumido no Instrumento de Doação, submetido à aprovação da Congregação da Universidade, denotando a mora contratual passível de revogação, com fundamento no artigo 555 do Novo Código Civil.” (Acordão na Apelação nº 0011162-47.2011.8.26.0053, Rel. Des. Francisco Bianco, j. 10/03/2014, acessado em 16/06/2016. Grifos nossos)

9 Discorre o Desembargador Leonel Costa nos autos da apelação supracitada: “A razoabilidade autoriza a interpretação judicial ponderada de que o conteúdo do “encargo” era de homenagem ao pai do autor por meio de exposição do seu nome nas dependências da Faculdade, de cumprimento condicional, implícito no instrumento, se aprovada fosse regularmente pelos demais órgãos da Faculdade. E esse conteúdo foi realizado e o “encargo” pode ser considerado como cumprido, porque a Faculdade de fato atribuiu ao auditório o nome indicado pelo doador inicialmente, mas como houve lícita revisão do ato pela Egrégia Congregação da Faculdade, que, dentro de suas atribuições estatutárias e regimentais, decidiu por prestar justa homenagem ao Bacharel Pedro Conde de forma alternativa, apondo placa de agradecimento à generosa e importante doação para a reforma daquela dependência do prédio da Augusta Faculdade Histórica (fls. 230)”. (Grifos nossos)

10 Aludida prática, apensar de incomum no Brasil, é corriqueira mundo afora. Em especial nos EUA, onde só Harvard arrecada US$ 30 bilhões por ano. "Inspiradas nos EUA, universidades brasileiras pedem doações a ex-alunos". No ano passado, Harvard anunciou que o ex-aluno John A. Paulson (M.B.A.’80), fundador e presidente da Paulson & Co., fez a maior doação na história da Universidade, um investimento de $400 milhões de dólares para financiar a Faculdade de Engenharia e Ciências Aplicadas de Harvard. Para honrar sua generosidade, a Faculdade foi renomeada para Faculdade John A. Paulson de Engenharia e Ciências Aplicadas de Harvard (como é possível conferir aqui).

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*Marco Antônio M. da Costa é sócio do escritório Da Costa & Nosé Advogados. Professor de Direito Constitucional e doutorando em Direito (PUC-SP).








*Rodrigo M. da Costa é advogado, consultor do escritório Da Costa & Nosé Advogados. Mestrando em Direito (PUC-SP).



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