Migalhas de Peso

O Projeto de Código Comercial: Um OVI (Objeto Voador Indesejável)

Vivemos em um mundo de faz de conta, no qual os profissionais liberais não têm direito a fazerem a publicidade dos seus escritórios, enquanto os hospitais são livres para se mostrarem no mercado.

18/7/2016

No começo da década de 70 do século passado, milênio vencido, tivemos o nosso Conselheiro Acácio na figura de Pedro Bó, parte do inesquecível elenco do programa de TV Chico City, criado pelo eterno Chico Anísio. Tal como seu modelo português, Pedro Bó somente falava evidências evidentes. Mas no caso do projeto de Código Comercial em andamento, ele teria mais do que razão.

Rememoremos a história desse objeto OVI. Seu autor original elaborou um anteprojeto, na forma de um livro que publicou. Um deputado o encampou, tornando-o projeto e um ministro da Justiça o levou adiante. Por coincidência todos os personagens eram/são do PT. Mais de uma vez este comentarista se insurgiu contra o malfadado projeto por meio de diversos artigos publicados neste "Migalhas" e em outros meios da mídia, tendo se formado um grupo coeso de juristas renomados que o contrariavam. Dito projeto, dizem, foi "melhorado" pelo trabalho de uma comissão designada na Câmara dos Deputados e se encontra pronto para votação.

Não tenho aqui a pretensão de buscar algumas das muitas falhas do projeto no "varejo", mas de, uma vez mais, mostrar a sua impropriedade, atemporalidade e desvio do verdadeiro rumo que deveria ser adotado no aperfeiçoamento da legislação mercantil pátria.

Acho que todos nós sabemos que nos encontramos no século XXI, muito tempo depois que foram engendrados e tornados em lei os famosos códigos de natureza civil e comercial da Europa continental. O mundo mudou sensivelmente, nem é preciso falar, tanto do ponto de vista da natureza das relações humanas, quanto da velocidade em que elas se desenvolvem. Se é que nas operações online se pode falar em velocidade, tão instantâneas elas parecem ser. A complexidade da atividade mercantil é cada vez mais acentuada e claramente não cabe mais no bojo de um corpo de leis uno, que não pode contemplar todas as operações mercantis, afetadas de repente em um dos setores mais importantes, por exemplo, por um surpreendente Brexit. Neste último caso o desavisado eleitor inglês com o seu voto pode ter dado fim a um centro financeiro que necessitou de séculos para consolidar-se, a City Londrina.

É certo que alguns países ainda mantêm os seus códigos centenários, como acontece com a Itália e a França, entre outros. Mas tais códigos vêm sendo atualizados progressivamente, a par de terem ao seu lado leis especiais que regem determinadas matérias mais especializadas. O Brasil poderia ter feito isto com o Código Civil de 1916 e o Código Comercial de 1850, tendo preferido jogar na lata do lixo aqueles dois monumentos legislativos, na sua integralidade. E o que era bom no nosso Código Comercial não foi aproveitado no Civil de 2002. Pelo contrário, o Direito Mercantil foi enxertado de baboseiras que o desfiguraram, especialmente no campo da liberdade de contratar do empresário mercantil.

Já que assim foi feito, tendo em conta a necessidade de atualização de diversos institutos do Direito Comercial a solução mais viável seria a de se trabalhar com microssistemas especializados, devidamente integrados entre si por leis mais gerais. Por exemplo, ao invés de se jogar no Código Comercial a tutela das sociedades mercantis, deveríamos ter uma lei societária geral, que acolhesse todas as sociedades necessárias a esse campo de atividade. No tocante às companhias, o andor teria de ser levado com muito cuidado para que ele não caísse. Afinal de contas, essa lei tem sido um modelo de coerência, algumas vezes amarrotada pelo legislador desavisado. E se o projeto apresenta uma seção geral para tal fim, ele se perde em banalidades desnecessárias. Além disto, continua retrógrado em não acatar a sociedade unipessoal, já tão conhecida em outros ordenamentos jurídicos e deixa a EIRELI pendurada no vácuo.

Teremos então um regime de sociedades civis no código próprio e outro para as sociedades mercantis, coisa para gerar confusão prá lá de metro, como diz o caipira. E observe-se que as normas gerais do projeto certamente brigarão com as normas regedoras das sociedades em espécie, o que criará grandes celeumas judiciárias.

Além disto, está já vencido o tempo da separação da atividade econômica em empresarial e não empresarial. No mundo moderno a diferença entre elas não mais existe. Não há qualquer diferença entre uma grande sociedade de advogados, de auditores, de engenheiros, etc. e uma indústria, do ponto de vista organizacional e até mesmo da marca que os primeiros criam no mercado. É por isto que em países de direito moderno já encaram a atividade liberal como qualquer outra, tendo se visto sociedades de advogados na categoria de companhias abertas na Inglaterra e na Austrália.

Vivemos em um mundo de faz de conta, no qual os profissionais liberais não têm direito a fazerem a publicidade dos seus escritórios (mas o fazem ainda assim, por meio dos seus sites na internet), enquanto os hospitais são livres para se mostrarem no mercado. O tipo serviço de uma clínica de dois médicos é o mesmo prestado por um hospital. O que varia é a estrutura. E os hospitais tradicionalmente têm sido reconhecidos como empresas mercantis. Não, não é para entender. A partir de que tamanho uma clinica medica vira um hospital? Eu não sei, caro leitor.

Dificultamos e encarecemos precisamente a atividade liberal porque ainda proibimos as sociedades constituídas por sócios com diversa profissão. Desta maneira um escritório de advocacia atuante na área da propriedade intelectual não pode ter um sócio engenheiro, farmacêutico, médico, etc. Essa possibilidade levaria a uma sensível redução de custos de transação em beneficio do mercado e, uma vez devidamente regulada, nada impediria a atribuição de responsabilidade dos sócios por culpa ou dolo no exercício de suas funções. Neste sentido, o Brasil ainda é uma paróquia, na qual cada padre só pode atuar nos seus limites geográficos, muuuito limitados.

Há um claro descasamento no projeto, na medida em que ele define o empresário e regula a sua atividade nos arts. 12 e segs, mas tem como objeto da proteção a empresa nos arts. 73 e segs, sem definí-la.

Em substância, qual seria a diferença entre o negócio jurídico civil e o empresarial, que recebe um regramento próprio no projeto? Para mim Emilio Betti teve um ataque cardíaco no túmulo ao tomar conhecimento dessa parte do projeto. O mesmo pode ser dito no que diz respeito à interpretação do negócio jurídico empresarial, cuja diferença, a meu ver, estaria apenas no atendimento aos costumes mercantis, o que não se vê no campo civil. Modus in rebus.

E o comércio eletrônico? Será ele apanágio do empresário (mercantil), tendo em conta a miríade de novas atividades que se desenrolam nesse meio? O Google é um empresário mercantil?

A regência dos grupos societários (de direito) continua na mesmice da legislação atual, não tendo avançado sequer um milímetro na apresentação de soluções dos problemas que tem se mostrado, não servindo para torná-los uma realidade no direito brasileiro, tendo sido praticamente uma figura de retórica jurídica.

O projeto tem, ainda, uma seção destinada aos contratos empresariais. Mais uma vez, que diferença ontológica existe entre estes e os contratos civis? O que de especial se apresenta em termos da interpretação do contrato empresarial, conforme está colocado no art. 281 do Projeto? Somente o contrato empresarial detém uma função econômica? Emilio Betti, coitado, teve um segundo enfarte dentro do seu caixão.

Depois o projeto passa a cuidar de alguns contratos em particular. Eles estarão ao lado de contratos da mesma espécie no Código Civil e quando identificadas diferenças de tratamento, certamente teremos muita discussão no Judiciário, atrás o perdedor de uma condição mais favorável em uma ou outra situação. Afinal de contas, não se trataria de isonomia? Dessa forma, como ficariam os empresários civis que celebram os mesmos contratos?

Como novidade o projeto cuida dos contratos de logística, cuja definição jurídica é desconhecida, abrangendo o armazenamento e o transporte de cargas. É só isto de que trata a tal logística?

Vamos ficar por aqui nesta jornada.

Ainda há muito o que falar (mal) do projeto.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.





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