Caminha-se para a eleição do novo inimigo1 – reitere-se que as construções e desconstruções dos inimigos são, lamentavelmente, um eterno devir do sistema penal – desta vez, pretende-se atacar não o criminoso (sujeito que sofre o processo de criminalização), mas sim, aqueles que cumprem o mister de assegurar as garantias do devido processo legal, tarefa esta que, em tese, deveria ser uma imposição a todos os personagens da justiça.
Progressivamente, se busca incutir no senso comum a triste e nefasta ideia da torpeza e fragilidade moral daqueles que labutam em prol da defesa dos cidadãos – inocentes ou culpados. Faz parte do artificioso engenho de controle a todo custo: demonizar a advocacia.
Não bastassem as baboseiras proferidas em tom aviltante, tal qual a injusta afirmação de que “advogados só acordam às 11 horas da manhã”2, as garantias profissionais são diuturnamente violadas, em um evidente ensaio da criminalização do exercício da advocacia. Quiçá pretenda-se a justiça tupiniquim metamorfosear a função do advogado em simples colaborador... Talvez, na visão míope dos violadores dos direitos humanos de plantão, o bom advogado não é mais aquele enérgico, altivo, corajoso... Para eles, bom advogado e que se curva, quem se apequena.
Faz sentido.
Talvez o sistema penal tenha notado que não há meio mais eficiente e adequado para atender o völkisch (populismo, sobretudo o midiático) senão o combate direto àqueles que resguardam e, ao fim e ao cabo, representam o último bastião da dignidade dos dissidentes/indesejáveis. Não que seja este o espírito do julgado decidido pela Corte Europeia de Direitos Humanos. De toda sorte, os argumentos ali invocados representam (ainda que não ditos expressamente – pois os discursos contra os inimigos podem ser escamoteados –) esta onda – pelo visto mundial – da execração das garantias (sempre em nome da famigerada e perigosa tese da defesa social e seus corolários – a ordem pública e o discurso do medo/ódio).
No dia 16 de junho, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) publicou o veredicto do caso “Versini-Campinchi e Crasnianski v. França”, em que se concluiu não existir violação do direito à vida privada, ao se interceptar conversa telefônica entre advogado e cliente. Resumidamente, tratou-se de interceptação autorizada pela Justiça Francesa para investigação de um suposto crime de violação de embargo (início do século 21). Ocorre que, no âmbito dessa interceptação colheram-se elementos outros que demonstravam possíveis atos ilícitos dos advogados dos então investigados. Assim, as conversas entre os investigados e advogados foram transcritas e utilizadas, inclusive, em procedimento disciplinar na Ordem dos Advogados de Paris.
Final dos tempos...
O pedido de interceptação originário (com o fito de investigar suposto crime de desrespeito à norma de embargo) parece e certamente foi legítimo/legal. Por outro lado, revela-se indevida a utilização de conversas entre advogados e clientes para servir de lastro probatório contra os sujeitos processuais responsáveis pela defesa dos interesses dos investigados. Ao que exsurge, prevalece mais uma vez a lógica do eficientismo, do desrespeito aos direitos fundamentais em nome de uma pretensa e inexistente proporcionalidade.
A principal tese invocada pela Corte Europeia foi a legalidade da interceptação, pois que proporcional e tendente a alcançar um objetivo pretensamente legítimo. O decisum se estrutura sob quatro pilares: proporcionalidade, prevenção da desordem, necessidade da medida diante de uma sociedade democrática, não prejuízo ao direito de defesa. Como se percebe, a vagueza dos conceitos acima mencionados denota a própria arbitrariedade da medida.
Mais uma vez, se apela para termos genéricos e abstratos, a fim de conferir alguma legitimidade às constantes violações aos direitos e garantias fundamentais. Alegou-se a proporcionalidade da medida. Demais disso, a afronta à vida privada foi justificada sob o pálio de que objetivara alcançar um objetivo legítimo – a prevenção da desordem. O que é desordem? O que é prevenção da desordem?
Rememore-se o conceito do direito à privacidade. Segundo Paulo Gustavo Gonet Branco:
“O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público.”3
Curiosamente, na mesma obra, o Constitucionalista traz à baila entendimento da lavra da mesma Corte Europeia de Direitos Humanos:
“A propósito, um antigo presidente da Corte Europeia de Direitos Humanos apontou que, na expressão, estaria abarcada a proteção contra ‘ataques à integridade física, moral e sobre a liberdade intelectual e moral [do indivíduo] e contra o uso impróprio do nome e da imagem de alguém, contra atividades de espionagem ou de controle ou de perturbação da tranquilidade da pessoa e contra a divulgação de informações cobertas pelo segredo profissional’.”4
A premissa olvidada no caso “Versini-Campinchi e Crasnianski v. França” é patente: o advogado é, antes de tudo, cidadão. A hipótese aqui levantada é a tentativa, ainda que indireta, de tentar-se retirar tal condição desses profissionais, assim legitimando o abuso.
Outro ponto trazido no julgado e que justificaria o injustificável seria o não prejuízo ao direito de defesa (aliás, a suposta ausência de prejuízo para a defesa virou uma espécie de licença, de salvo conduto, para qualquer arbitrariedade processual). É dizer, trata-se aqui de, uma vez mais, construir no imaginário coletivo a seguinte percepção: “estar-se a violar direitos fundamentais, mas tal fato não acarretará maiores prejuízos”. De fato. É possível que no caso concreto não se demonstre prejuízo considerável, contudo, quando se viola tal garantia a projeção dessa afronta é o que há de mais perigoso e danoso ao Regime Democrático de Direito. Muito mais que o caso concreto, o que se macula é a observância futura dos direitos fundamentais.
A (má) utilização do conceito de proporcionalidade se revela como um dos principais instrumentos no (neo) processo de aviltamento dos direitos fundamentais. O critério da razoabilidade – que deveria vincular o legislador materialmente aos direitos fundamentais5 – é invocado reiteradas vezes com o propósito de justificar, até mesmo, desrespeito às normas legais e constitucionais. De proteção às garantias fundamentais, o discurso do medo e da defesa social fez com que a proporcionalidade se transformasse primordialmente em elemento motriz do processo de deturpação Constitucional.
Relembre-se o que se fez com o Professor e Advogado Juarez Cirino dos Santos. Um dos maiores expoentes do Direito Brasileiro foi barrado quando tentava ter acesso a um assistido, que se encontrava preso na Polícia Federal de Curitiba6. Repise-se: quando se esgotam as afrontas às garantias fundamentais do inimigo, necessário continuar o processo de “eliminação” destes. Nada mais “eficiente” – para não perder de vista a palavra da moda – que maltratar e desrespeitar aquele que se presta a representar o malvado, o vil, o perverso...
Recentemente causou perplexidade o grampo levado a cabo em escritório de advocacia7. Conversas de todos os advogados que compõem a Banca foram grampeadas. Ou seja: escancarou-se, definitivamente, o vale tudo processual.
E quem grita em defesa dos quem defendem?
O que há de comum entre o julgamento proferido pela Corte Europeia e o citado grampo no escritório de advocacia é o ideal projetado na sociedade, fundamentalmente, no bojo do fenômeno do populismo midiático. É dizer, as arbitrariedades e abusos são justificados a partir da lógica do eficientismo. A ponderação transformou-se na balança das ilegalidades, como se a proporcionalidade servisse aos déspotas. O utilitarismo – no sentido vulgar do termo – serve de amparo às escutas ilegais, afinal, como deixar de lado, como desprezar elementos que comprovam a existência do ilícito. É o Estado policialesco – para nos valermos de outra expressão utilizada pelo mestre Zaffaroni – a optar pela deturpação da Constituição em detrimento das garantias fundamentais.
Volta-se agora para o início deste ensaio: o grande problema, que a sociedade certamente não se deu conta, é que a escolha dos inimigos não se perpetua, e tão logo se transformem e transmudem os interesses, novos inimigos-indesejáveis iniciam o caminho angustiante das perseguições e ultrajes.
Se a consciência acerca da necessidade de preservação do minimum minimorum dos direitos fundamentais não encontra guarida na pós-modernidade eficientista, que ao menos, o medo do amanhã (novas eleições dos inimigos) faça com que as moribundas garantias se revigorem no sistema penal. Os inimigos de hoje – advogados grampeados – podem e certamente serão as vozes dos futuros inimigos, pois, se há certeza da mutabilidade dos desprezados, há ainda mais certeza da permanência dos inconformados – que gostemos ou não – são imprescindíveis para um mundo que se pretende civilizado.
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1 Este escrito tem como base principal a obra "O inimigo no direito penal", da lavra de Eugenio Raul Zaffaroni, a quem, humildemente, se dedica este artigo, por toda clarividência ao perceber o processo de escolha do inimigo, bem como as mais diversas justificativas para impor um sistema criminal seletivo e desproporcional.
2 "Advogado acorda lá pelas 11h", diz Joaquim Barbosa em tom de piada.
3 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 315.
4 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 317.
5 MARTINS, Leonardo. Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional. DIMOULIS, Dimitri (coord). São Paulo: Saraiva 2007, p. 305.
6 "Advogado de Dirceu é barrado no acesso da carceragem da Polícia Federal de Curitiba".
7 "Todos os 25 advogados de escritório que defende Lula foram grampeados".
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