A regularidade fiscal na lei de licitação
Janaína Bittencourt Faneca Mascarenhas*
A ratio legis desta determinação está implicitamente ligada a dois princípios, dentre outros, a que se submete a Administração: o da moralidade e o da igualdade.
Pelo Princípio da Moralidade, a Carta Magna exige dos administradores públicos uma conduta honesta e proba, bem afinada com o interesse público, descartando qualquer possibilidade de o administrador utilizar-se do cargo que ocupa para beneficiar uma ou outra pessoa, de acordo com sua conveniência pessoal.
Pelo Princípio da Igualdade, aplicado às licitações públicas, busca-se oportunizar, a qualquer pessoa que pretenda contratar com o Poder Público, igualdade de condições, dentro dos critérios definidos pela Administração, dando azo a que a Administração selecione a proposta que se lhe apresente mais vantajosa. O saudoso Hely Lopes Meirelles é bastante elucidativo a este respeito, ao dispor que a “Licitação é o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse. Visa a propiciar iguais oportunidades aos que desejam contratar com o Poder Público, dentro dos padrões previamente estabelecidos pela Administração, e atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos”¹.
Sendo um procedimento administrativo, a licitação sujeita-se a uma série concatenada de atos, que culmina com a adjudicação do objeto da licitação ao vencedor do certame.
O edital, que é a lei da licitação, traça todas as diretrizes a serem seguidas por aqueles que pretendam se habilitar a participar da seleção, não se podendo olvidar que nos pontos omissos, haverá regência supletiva da Lei de Licitações e Contratos, Lei nº 8.666/93.
A princípio, cumpre ao licitante preencher os requisitos de habilitação previstos no Edital. Tais requisitos funcionam como os requisitos de admissibilidade do Direito Processual, e a ausência de qualquer deles impede que as propostas (mérito, no Direito Processual) sejam apreciadas pela Comissão de Licitação (juiz, no Direito Processual).
Os requisitos de habilitação limitam-se a documentos relativos a habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira, regularidade fiscal e comprimento do disposto no art.7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal. O rol do art. 27, da Lei nº 8.666/93 é declaradamente taxativo.
A habilitação tem como objetivo reunir elementos para aferir a idoneidade do licitante e a possibilidade concreta de cumprimento das obrigações a serem pactuadas com a Administração. Dispõe Jessé Torres Pereira Júnior que “A Administração deverá formular exigências de habilitação preliminar que, segundo a natureza do objeto por licitar e do grau de complexidade ou especialização de sua execução, forem reputadas como indicadores seguros de que o licitante reúne condições para bem e fielmente realizar tal objeto, nos termos do contrato, caso lhe seja adjudicado” ².
Acerca deste tema, sérias discussões foram travadas, pondo em xeque a constitucionalidade da exigência, argumentando-se que seriam elas meios indiretos de cobrança de dívidas fiscais, cerceando o acesso à licitação.
Instado a se manifestar sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se no sentido de que a irregularidade fiscal não pode impedir o exercício de atividades empresariais, o que não significa, todavia, que a regularidade fiscal não possa ser exigida em procedimentos licitatórios, haja vista que a limitação a que uma empresa participe de uma licitação, em face de sua irregularidade com a Fazenda, não acarreta, de per se, inviabilização do exercício de sua atividade empresarial.
Sendo assim, parece perfeitamente legítima a exigência, como requisito de habilitação, da comprovação de regularidade em face do Fisco, até porque, tal comprovação, somada aos demais requisitos exigidos na fase de habilitação, ajudará a que a Administração possa traçar um perfil do licitante, que lhe permita concluir pela sua idoneidade e aptidão para cumprir um futuro contrato administrativo.
Partindo, portanto, da premissa da constitucionalidade e adequação da exigência de comprovação de regularidade fiscal, cumpre tocar num ponto pouco abordado pela doutrina pátria: o que quer exigir a Lei nº 8.666/93 quando faz referência, em seu art.29, inciso III, a prova de regularidade com a Fazenda Federal?
A comprovação de regularidade com as “Fazendas” normalmente se faz mediante apresentação de certidões, emitidas pelos órgãos próprios, dentro do prazo de validade. No que pertine à Fazenda Federal, duas certidões existem para atestar a situação do contribuinte perante o Fisco: a expedida pela Secretaria da Receita Federal e a expedida pela Procuradoria da Fazenda Nacional.
Diante desta circunstância, pode pairar dúvida acerca de qual certidão seria de apresentação obrigatória pelo licitante, para legitimar sua participação no certame.
Embora a discussão possa parecer, à primeira vista, irrelevante, é de se observar que uma interpretação equivocada do dispositivo poderia levar o licitante a ser excluído de um procedimento licitatório, já que não há previsão, no procedimento referido, de momento para apresentação de documentos complementares.
Em licitação realizada por sociedade de economia mista do Estado da Bahia, o tema foi objeto de recurso, no qual um licitante requereu a inabilitação de outro licitante sob o argumento de que a prova da regularidade fiscal não teria sido cabal, por ausência da certidão de quitação quanto à Dívida Ativa da União, expedida pela Procuradoria da Fazenda Nacional, a qual, por força de texto normativo, segundo seu entender, seria obrigatória.
Trouxe em amparo à sua tese o texto do DECRETO-LEI Nº 147/1967, que dispunha, in verbis:
“Art 62. Em todos os casos em que a lei exigir a apresentação de provas de quitação de tributos federais, incluir-se-á, obrigatoriamente, dentre aquelas, a certidão negativa de inscrição de dívida ativa da União, fornecida pela Procuradoria da Fazenda Nacional competente”.
Surge, então, a dúvida: é obrigatória a apresentação da certidão expedida pela Procuradoria da Fazenda Nacional em todos os procedimentos licitatórios, levando-se em consideração a exigência do art.29, III, da Lei nº 8.666/93?
Para que se tenha uma resposta plausível à indagação formulada, é imprescindível que se faça uma prévia distinção entre os conceitos de regularidade e quitação.
O Tribunal de Contas da União já se manifestou acerca da distinção dos conceitos, valendo a pena trazer à colação o trecho da Decisão 875/1998 – Plenário, Processo 650.347/1996-0, por se apresentar bastante elucidativo:
“A respeito da 3M, que não teria comprovado adequadamente a regularidade fiscal com relação aos tributos federais, por não ter apresentado a Certidão quanto à Dívida Ativa da União, apresentando apenas a Certidão de Tributos e Contribuições Administrados pela Secretaria da Receita Federal, a TELESC esclarece que, também aqui, o Edital não exigia expressamente a apresentação da Certidão quanto à Dívida Ativa dos proponentes, portanto não poderia a Comissão de Licitação exigi-la. E completa: ‘o que a lei e o edital estão a exigir é a comprovação de sua regularidade perante as três Fazendas. A Secretaria da Receita Federal é competente para atestar de forma ampla e global a situação dos contribuintes perante a União”.
Note-se que a decisão foi prolatada em data posterior a do Decreto-lei nº 147/67, sem que se vislumbre afronta ao texto normativo, mas tão-somente, interpretação restritiva do seu comando.
Segue esta linha de entendimento Jessé Torres Pereira Júnior, que assim leciona:
“A prova que se exigirá doravante é a de regularidade para com o Fisco. A lei alude a ‘regularidade’, que pode abranger a existência de débito consentido e sob o controle do credor. E, não, a quitação, que é ausência de débito” ³.
Analisando o dispositivo sob outro ângulo, Marçal Justen Filho, chama atenção para a significação do termo “regularidade fiscal” contido no art.29, III, da Lei n. 8666/93, enfocando com mais afinco sua adjetivação. Esclarece que, como a exigência é de regularidade fiscal, a mens legis é abarcar apenas débitos de natureza tributária, o que se alcançaria com a certidão da Secretaria da Receita Federal. Acrescenta que a certidão quanto à Dívida Ativa da União acusa débitos inscritos de quaisquer naturezas, inclusive multas ou indenizações, por exemplo, o que não se coaduna com a intenção da lei. Neste ponto é seguido por Hely Lopes Meirelles, que assim assevera:
“Regularidade fiscal é o atendimento das exigências do Fisco... Portanto, a situação de regularidade visada é relativa ao recolhimento de tributos, e não referente a qualquer débito fazendário. Por isso, entendemos ilegal a exigência da apresentação de certidão relativa à dívida ativa da União, que pode refletir outras dívidas que não simplesmente as de origem tributária. De outra sorte, as certidões exigidas não precisam demonstrar a quitação do tributo, sendo aceitas também aquelas que declarem parcelamento do débito ou sua discussão em juízo” 4.
Diante do exposto, tendo em vista que a Lei n. 8.666/93 exige, em seu art.29, III, apenas prova de regularidade fiscal com as Fazendas, parece evidente a desnecessidade de apresentação das duas certidões exigidas pelo art. 62 do Dec-lei 147/67, vez que este dispositivo tem seu âmbito de incidência restrito aos casos em que a lei exige prova de quitação com a Fazenda Pública.
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¹(Licitação e Contrato Administrativo, 13ª Edição, Ed. Malheiros, pg.25).
²(Comentários à lei de Licitações e Contratações da Administração Pública, 6ª edição, Ed. Renovar, pg.329).
³(obra citada, pg.338).
4(Licitação e Contrato Administrativo, Ed. Malheiros, 13ª edição, pg.137).
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* Advogada na Desenbahia - Agência de Fomento do Estado da Bahia S/A
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