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A preservação da "trava bancária" no caso de recuperação judicial – prestígio à legalidade da cessão fiduciária de direitos creditórios em garantia

Autorizar a "quebra da trava bancária" culminaria numa grave ofensa à supremacia das regras instituídas pelo Poder Legislativo, além de, obviamente, ferir a força vinculante dos contratos e, ainda, a jurisprudência pacificada no âmbito do STJ.

15/6/2016

Atualmente as operações de venda de produtos realizadas por empresas por meio de cartões de crédito vem servindo como garantia para empréstimos contraídos junto às instituições bancárias.

Nesse sentido, parte do produto de determinada bandeira de cartão de crédito, ou, ainda, toda a arrecadação do cartão de crédito da referida bandeira, pode ser destinada a uma conta vinculada ao pagamento de determinado empréstimo contraído por uma empresa com uma instituição bancária.

Referidas operações propiciam uma tomada de capital com a contrapartida do pagamento de juros inferiores ao que regularmente se praticaria com outros tipos de garantia, já que, obviamente, a operação está sendo lastreada em dinheiro.

Ocorre que, com as dificuldades sofridas pelas empresas no atual momento econômico, várias delas tentam flexibilizar o que foi contratado com a instituição bancária, buscando liberar o saldo mantido na conta garantidora do empréstimo, principalmente nos casos das empresas que são submetidas à recuperação judicial. Resta saber se a regra contratual estabelecida entre as partes deve ser superada nesses casos.

Em princípio é preciso consignar que qualquer crédito, presente ou futuro, pode ser dado em garantia de obrigações, a configurar alienação fiduciária em garantia de coisa móvel fungível, nos termos do artigo 66-B, §3º da lei 4.728/65.

A garantia em questão, que recai sobre recebíveis de cartão de crédito, consiste em alienação fiduciária de coisa móvel fungível, na forma do artigo 66-B, §3º, da lei 4.728/65, de modo que a instituição bancária se amolda ao conceito de proprietário fiduciário de bens móveis.

Sobre o tema, importante ressaltar, ainda, que o STJ já sedimentou entendimento acerca da legalidade da cessão fiduciária de créditos em garantia ("trava bancária"), que confere ao credor a propriedade fiduciária dos créditos. Nesse sentido, em recentes julgados, assim se pronunciou o STJ sobre a manutenção da "trava bancária" no caso de recuperação judicial:

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO GARANTIDA POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. NÃO SUJEIÇÃO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. "TRAVA BANCÁRIA". 1. A alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, possuem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitando aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da lei 11.101/05. 2. Recurso especial não provido. (STJ, Terceira Turma, Recurso Especial nº 1.202.918/SP, Relator Ministro, julgamento em 7/3/13)

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONTRATO DE CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DUPLICATAS. INCIDÊNCIA DA EXCEÇÃO DO ART. 49, § 3º DA LEI 11.101/05. ART. 66-B, § 3º DA LEI 4.728/65. 1. Em face da regra do art. 49, § 3º da lei 11.101/05, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial os créditos garantidos por cessão fiduciária. 2. Recurso especial provido. (STJ, Quarta Turma, Recurso Especial nº 1.263.500/ES, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, julgamento em 5/2/13).

Neste último julgamento (Recurso Especial nº 1.263.500/ES), assim se manifestou a eminente Relatora sobre a matéria:

A circunstância de o § 3º do art. 49 da LFR, em seguida à regra de que o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis "não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial", estabelecer que "prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial", não permite inferir que, não sendo o título de credito "coisa corpórea", à respectiva cessão fiduciária não se aplicaria a regra da exclusão do titular de direito fiduciário do regime de recuperação.

Com efeito, a explicitação contida na oração "prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa" tem como escopo deixar claro que, no caso de bens corpóreos, estes poderão ser retomados pelo credor para a execução da garantia, salvo em se tratando de bens de capital essenciais à atividade empresarial, hipótese em que a lei concede o prazo de cento e oitenta dias durante o qual é vedada a sua retirada do estabelecimento do devedor.

Em se tratando de cessão fiduciária de crédito, bem móvel incorpóreo, não seria necessária a explicitação e nem a consequente ressalva, pois o art. 18 da lei 9.514/97, aplicável à cessão fiduciária de títulos de crédito (66-B, § 4º, da lei 4.728/65, com a redação dada pela lei 10.931/04, acima transcrito), dispõe que "o contrato de cessão fiduciária em garantia opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida (...)", seguindo-se o art. 19, o qual defere ao credor o direito de posse do título, a qual pode ser conservada e recuperada "inclusive contra o próprio cedente" (inciso I), bem como o direito de "receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente" (inciso IV), outorgando-lhe ainda o uso de todas as ações e instrumentos, judiciais e extrajudiciais, para receber os créditos cedidos (inciso III).

Conclui-se, portanto, que a explicitação legal das garantias dos titulares de propriedade fiduciária de bens corpóreos (coisas) em nada diminui a garantia outorgada por lei aos titulares de cessão fiduciária de bens incorpóreos.

De fato, conforme bem pontuado pela excelentíssima Ministra, o artigo 66-B, §4ºda Lei 4.728/65, prevê que "No tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito aplica-se, também, o disposto nos artigos 18 a 20 da lei 9.514, de 20 de novembro de 1997".

A referida lei 9.514/97, por sua vez, dispõe, em seu artigo 18, que "O contrato de cessão fiduciária em garantia opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida".

Não restam dúvidas, portanto, da absoluta legalidade "trava bancária", e da consequente falta de amparo legal e jurisprudencial à eventual decisão pela liberação da garantia fiduciária, que se levada a cabo, poderia atentar contra o que Ronald Dworkin denomina doutrina da "supremacia do Poder Legislativo" (DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, p. 60):

Na segunda maneira de considerar o problema, um juiz que se propõe a modificar uma doutrina existente deve levar em consideração alguns padrões importantes que se opõem ao abandono da doutrina estabelecida; esses padrões são, na sua maior parte, princípios. Esses padrões incluem a doutrina da "supremacia do Poder Legislativo", um conjunto de princípios que exige que os tribunais mostrem uma deferência limitada pelos atos do Poder Legislativo. Eles incluem também a doutrina do precedente, outro conjunto de princípios que reflete a equidade e a eficiência que derivam da consistência. As doutrinas da supremacia do Poder Legislativo e do precedente inclinam em favor do status quo, cada uma delas na sua própria esfera, mas não o impõe. Os juízes, no entanto, não têm liberdade para escolher entre os princípios e as políticas que constituem essas doutrinas – também neste caso, se eles fossem livres, nenhuma regra poderia ser considerada obrigatória.

A partir da preleção acima, pode-se afirmar que: a) estando presentes os requisitos para incidência de uma regra jurídica, uma lei, não cabe ao juiz decidir, por mera conveniência, afastá-la; b) o juiz deve ser fiel ao seu dever de integridade, colocando-se como um autor e, ao mesmo tempo, como um crítico "de um romance em cadeia, escrito por diversos autores". O "capítulo seguinte de cada romance" deve necessariamente "guardar correlação com o capítulo anterior". Um rompimento total entre similaridade das decisões somente é possível, mediante uma carga de argumentação extrema que se justifique, com base nas peculiaridades do caso concreto. Assim explica Ronald Dworkin (DWORKIN, Ronald O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 275-277):

Podemos comparar o juiz que decide sobre o que é direito em alguma questão judicial, não apenas com os cidadãos da comunidade hipotética que analisa a cortesia que decidem o que essa tradição exige, mas com o crítico literário que destrinça as várias dimensões de valor em uma peça ou um poema complexo.

Os juízes, porém, são igualmente autores e críticos.

[...]

Portanto, podemos encontrar uma comparação ainda mais fértil entre literatura e direito ao criarmos um gênero literário artificial que podemos chamar de "romance em cadeia".

Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade.

[...]

Em nosso exemplo, contudo, espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidades de continuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível.

[...]

Deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso, como produto de muitas mãos diferentes. Isso exige uma avaliação geral de sua parte.

O direito deve ser considerado como bem mais do que o produto da consciência do sujeito pensante em relação ao objeto – norma jurídica – pensado. Ponderar o contrário seria admitir que esse mesmo sujeito se apoderasse do objeto em si e o tratasse da forma que melhor lhe aprouvesse, o que, neste quadro absurdo, justificaria que as diferentes experiências pessoais de vários juízes aplicadas à interpretação normativa, caso a caso, culminassem na formulação de decisões judiciais distintas acerca de uma mesma situação, ao seu mero arbítrio.

Deve-se evitar a armadilha em que alguns intérpretes das normas têm caído, ao ponderar, mesmo de forma velada, que a inexistência de um método cartesiano para se distinguir as decisões corretas das erradas tornaria o raciocínio jurídico uma perda de tempo. O direito não pode ser aquilo que o intérprete almeja que ele seja. O jurisdicionado, que busca no estado democrático, além da justiça, o valor da segurança, tem direito a uma decisão fundamentada, que seja exarada a partir de uma regra hermenêutica coerente. Em primeira análise, este significado deve ser extraído do texto das regras jurídicas, formuladas pelo legislativo como a manifestação da vontade do povo.

A exigência de que o ato decisório deve ser praticado levando em consideração um dever de exaustiva motivação, decorrente da aplicação estrita do artigo 93, IX da Constituição Federal, norma na qual fica claro que, conforme consta na Constituição Federal da República Federativa do Brasil:

[...] todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Imaginar o contrário seria fazer tabula rasa à Constituição Federal e, ao mesmo tempo, descartar centenas de anos de evolução da ciência hermenêutica, a qual jamais permitiu qualquer uso de relativismo ou prática meramente discricionária no ato decisório e de interpretação da norma jurídica. Observa-se, atualmente, que o princípio da segurança jurídica vem sendo tangenciado, em detrimento do protagonismo e da discricionariedade de alguns atos decisórios que ocultam verdadeiras posturas ideológicas e violam regras democraticamente validadas pelo legislativo, como bem alerta Lenio Streck (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4 ed., São Paulo: Saraiva, 2011p. 538-539):

Numa palavra final, não podemos admitir que ainda nessa quadra da história, sejamos levados por argumentos que afastam o conteúdo de uma lei – democraticamente legitimada – com base em uma suposta "superação" da literalidade do texto legal. Insisto: literalidade e ambiguidade são conceitos intercambiáveis que não são esclarecidos numa dimensão simplesmente abstrata de análise dos signos que compõem um enunciado. Tais questões sempre remetem a um plano de profundidade que carrega consigo a "dobra da linguagem", vale dizer, o contexto no qual a enunciação tem sua origem. Esse é o problema hermenêutico que devemos enfrentar! Problema esse que argumentos despistadores, como o da "superação" da literalidade da lei, só fazem esconder e, o que é mais grave, com riscos de macular o pacto democrático.

Conclui-se, pelo que foi exposto, que autorizar a "quebra da trava bancária" culminaria numa grave ofensa à supremacia das regras instituídas pelo Poder Legislativo, além de, obviamente, ferir a força vinculante dos contratos e, ainda, a jurisprudência pacificada no âmbito do STJ.

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*Francis Ted Fernandes é mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Pós-graduado em Administração de Organizações pela USP. Professor Assistente de Direito Constitucional da PUC-SP. Advogado e sócio de Tortoro, Madureira e Fernandes Advogados.

*Fillipi Marques Borges é advogado do escritório Tortoro, Madureira e Fernandes Advogados.

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