1. Introdução1
Foi publicada em 12 de maio de 2016 a MP 727, que institui o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).2
O art. 1o, § 1o, da MP 727 delimita o âmbito do PPI mediante referência a três conjuntos de empreendimentos ou medidas:
a) “empreendimentos públicos de infraestrutura executados por meio de contratos de parceria celebrados pela administração pública direta e indireta da União”,
b) “empreendimentos públicos de infraestrutura que, por delegação ou com o fomento da União, sejam executados por meio de contratos de parceria celebrados pela administração pública direta ou indireta dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios” e
c) “demais medidas do Programa Nacional de Desestatização a que se refere a lei 9.491/97”.
O conceito de contrato de parceria é estipulado no art. 1o, § 2o, da MP 727. Nota-se que o elemento comum a todas as figuras referidas na definição de PPI é o seu caráter público. Todas asmodalidades de “negócios público-privados” envolvem a Administração Pública. A maior parte delas se enquadra como “empreendimentos públicos”, ainda que realizados por meio de concessão ou arrendamento. A preocupação do legislador (provisório) parece ter sido a de incentivar a realização de empreendimentos sujeitos a regime público, embora geridos ou explorados por parceiros privados. É o caso típico das concessões, PPPs e arrendamentos.
No entanto, em seu art. 21, a MP 727 traz regra com a seguinte redação: “Aplicam-se as disposições desta lei, no que couber, aos empreendimentos empresariais privados que, em regime de autorização administrativa, concorram ou convivam, em setor de titularidade estatal ou de serviço público, com empreendimentos públicos a cargo de entidades estatais ou de terceiros contratados por meio de parceiras”.
O dispositivo vai no sentido oposto da diretriz aparentemente extraída das definições do art. 1o e estende as previsões da MP 727, “no que couber”, a “empreendimentos empresariais privados” que sejam objeto de autorização administrativa e “concorram ou convivam” com empreendimentos públicos.
A alusão legal a tais empreendimentos empresariais privados não se deu de modo sistemático, na definição e delimitação do conceito jurídico de contratos de parceria (art. 1º), mas por remissão genérica e aberta por meio do referido dispositivo. Isso exige do intérprete que extraia do contexto da MP 727 os parâmetros para identificação dos empreendimentos privados passíveis de inclusão no PPI. O desafio é ampliado pela necessidade de compreensão do significado jurídico de convívio entre empreendimentos privados e públicos, uma vez que o texto legal (provisório) adotou duas expressões distintas e de sentidos diversos (concorrência e convívio) para abranger as situações jurídicas tidas como relevantes para a aplicação da regra.
Estes breves comentários exploram especificamente este último ponto. O que se deve compreender como “convívio” entre empreendimentos privados e públicos? Em que medida essa figura se distingue da concorrência? O texto legal oferece parâmetros para a delimitação da competência oriunda do art. 21 da MP 727?
2. A definição legal de parceria
As duas primeiras alíneas do art. 1o, § 1o, da MP 727, aludem a um conceito novo de “contratos de parceria”, inexistente no sistema jurídico brasileiro até agora.
A terceira alínea faz referência a um conceito pré-estabelecido de desestatização, cujos parâmetros e procedimentos são definidos especialmente na Lei 9.491/97. A desestatização abrange a privatização em sentido restrito e mecanismos de delegação. Há procedimentos específicos, como a aprovação por órgãos determinados e a exigência de formalização e publicidade por instrumentos próprios.
O art. 1o, § 2o, da MP 727, define contratos de parceria nos termos seguintes: “consideram-se contratos de parceria a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante”.
Os contratos de parceria correspondem ao que a MP 727 reúne sob o rótulo de “negócios público-privados”. Este também não consiste em um conceito pré-existente. Pode-se supor que, como mínimo, um negócio público-privado tenha, como partes, pelo menos um ente da Administração Pública direta ou indireta (“público-privado”) e, como forma, um ato que traduza manifestação de vontade (“negócio”), como um negócio jurídico ou atos jurídicos unilaterais contrapostos (como um ato-condição).
O conceito definido na MP 727 abrange certas figuras típicas, como as várias modalidades de concessão (comum, patrocinada, administrativa e setoriais), a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público e a concessão de direito real. Também inclui uma referência aberta a determinados “negócios públicos-privados” que preencham certos requisitos materiais ligados ao seu porte, relevância e estrutura jurídica. Assim, por exemplo, uma concessão de uso de bem público, instrumento típico de direito administrativo não expressamente referido, configuraria um “negócio público-privado” abrangido no PPI desde que preenchidos os requisitos da parte final do dispositivo.
Na literalidade do texto legal, tais requisitos não se estendem às figuras expressamente referidas. A alusão final à “estrutura jurídica semelhante” denota que esta parte da regra se refere apenas aos “outros negócios público-privados”, não às estruturas típicas mencionadas. Desse modo, o “negócio público-privado” passível de submissão ao PPI deve ser estruturalmente similar a alguma dessas figuras.
Porém, é possível compreender sistematicamente a regra como prevendo que um contrato de parceria, para se submeter ao PPI, deve ser avaliado “em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos” e só poderá ser incluído no PPI se atendidos certos parâmetros. O PPI envolve um especial comprometimento dos órgãos públicos com a agilidade na implantação do empreendimento. Uma ampliação desmesurada de sua abrangência poderia provocar saturação que tornasse inviável a sua realização prática pela mera impossibilidade material de processamento. Mesmo que não existam atos normativos que regulamentem esses critérios, caberá aos órgãos encarregados da inclusão de determinado empreendimento no PPI motivar essa inclusão à luz dos parâmetros derivados da regra legal.
3. Concorrência e convívio
O art. 21 da MP 727 alude a empreendimentos empresariais privados que concorram ou convivam com empreendimentos públicos.
A concorrência entre tais empreendimentos é questão amplamente discutida e disseminada. Em um mesmo setor econômico, pode haver competidores sujeitos a regimes jurídicos distintos, configurados alguns como empreendimentos privados e outros como públicos, e estes podem ser executados diretamente pela Administração Pública ou indiretamente por meio de concessões, PPPs e figuras análogas. Em certos setores essa concorrência assimétrica é adotada de modo ordenado e dirigido à construção de um mercado mais sofisticado, como ocorreu com o setor de telecomunicações a partir da edição da Lei Geral de Telecomunicações (lei 9.472/97). Em outros a concorrência é estabelecida de modo desordenado. É o caso do setor portuário com a sucessão de normas regulatórias infralegais como a Resolução ANTAQ no 517, o Decreto 6.620, a MP 595, a lei 12.815 e o decreto 8.033.
Seja como for, em cada uma dessas situações encontram-se empreendimentos sujeitos a regimes distintos e em situação de concorrência. Ou seja, disputam entre si um mesmo mercado. Ainda que se possa reconhecer que a pluralidade de competidores em certos casos possa ampliar o mercado e fazer com que todos os competidores, a despeito da concorrência, tenham um incremento em sua própria atividade, o mecanismo de relacionamento entre eles é concorrencial. Um pretende ampliar suas atividades ou seus resultados em detrimento das atividades do outro. Essa realidade implica intervenção regulatória para evitar práticas anticoncorrenciais tanto em um sentido predatório (abuso de posição dominante) quanto colusivo (cartel). Especialmente a partir da década de 1990, com o surgimento das agências reguladoras e sua interação com os órgãos de defesa da concorrência, desenvolveu-se o tratamento jurídico das situações de concorrência assimétrica entre empreendimentos privados e empreendimentos públicos explorados por particulares ou diretamente pela Administração. O fenômeno é conhecido, assim como são conhecidos os problemas e as dificuldades relacionados com ele.
A novidade instaurada pelo art. 21 da MP 727 é a noção de convívio entre empreendimentos públicos e privados. Como se trata de texto provisório, não se sabe se a expressão ou mesmo o próprio dispositivo serão mantidos na lei de conversão. Porém, cabe neste momento investigar o significado e, em especial, a potencialidade da inclusão dessa nova figura na delimitação das relações entre empreendimentos sujeitos a regimes distintos dentro de um mesmo setor econômico.
A premissa fundamental é que o texto legal pretendeu separar as noções de “concorrência” e “convívio”. Pode-se arriscar incialmente uma definição negativa, de modo que convívio deva corresponder a algo que não se enquadre na noção de concorrência. Desse modo, tudo o que estiver abrangido na noção de concorrência deve ser considerado alheio à noção de convívio.
A concorrência não se materializa apenas em atividades contrapostas, mas pode ser instrumentalizada por mecanismos de colaboração, como a participação em joint ventures. Bem por isso, tais formas cooperativas são objeto de preocupação das autoridades de defesa da concorrência, pois podem traduzir práticas anticoncorrenciais. A união episódica ou permanente de competidores naturais se insere na noção de concorrência, seja pelos riscos de frustração da competição, seja pela concorrência entre a resultante de tal união e os agentes remanescentes do mercado em questão. Essa união não configura, portanto, o que o art. 21 pretende denotar com a referência a “convívio”. Para que essa atuação cooperativa estivesse abrangida pelo âmbito material de aplicação do art. 21, bastaria a alusão a “concorrência”, sendo despicienda a alusão a “convívio”.
Destaque-se que o mero fato de uma determinada união entre agentes econômicos ser objeto de preocupação das normas antitruste não implica que a relação entre eles seja de concorrência. A relação entre dois prestadores de serviço público pode ser alvo de atenção da autoridade antitruste sem haja concorrência entre eles. É o caso dos clusters – por exemplo, uma associação entre uma ferrovia, monopólio natural, e um de vários terminais portuários que operem em regime de concorrência. A associação pode frustrar a concorrência e ser objeto de preocupação, embora não haja concorrência entre a ferrovia e o terminal portuário em questão.
Portanto, cabe concluir que o convívio entre empreendimentos corresponde a uma relação de complementariedade, em que os empreendimentos em questão não estejam direta nem indiretamente submetidos a situação de competição atual ou potencial entre si.
Ao se referir a “convívio” entre empreendimentos, a MP 727 pretendeu abarcar a realidade dos empreendimentos complementares, sinérgicos, simbióticos, os que possam atuar de modo conjugado a fim de realizar seus objetivos comuns. Imagine-se, por exemplo, a situação entre um empreendimento portuário público voltado ao setor de minérios e os empreendimentos privados minerários que dão àquele sua justificativa técnica e econômica. Trata-se de empreendimentos que “convivem”, não “concorrem”, para os fins da MP 727. Faz sentido que ambos sejam submetidos ao regime favorecido do PPI, na medida em que de pouco adiantaria facilitar e acelerar os procedimentos de liberação e de implantação do empreendimento portuário se as unidades de produção que o justifiquem estiverem sujeitas a sistemas mais precários de autorização, licenciamento ou obtenção de financiamento público. A MP 727 parece ter-se preocupado com esta realidade ao identificar a situação de convívio entre empreendimentos como relevante para a plena realização dos objetivos do texto legal.
4. Ausência de tratamento sistemático
A despeito de pretender disciplinar uma questão real e relevante, relativa ao relacionamento (concorrencial ou não) entre empreendimentos públicos e privados, e apesar de sua preocupação principiológica com a racionalidade e a transparência, o art. 21 da MP 727 o fez de modo assistemático.
Em lugar de incluir os empreendimentos privados em questão como parte do PPI desde a sua definição no art. 1o, a MP 727 optou por prever simplesmente a extensão do regime da MP 727 a tais empreendimentos privados. Também não estabeleceu com precisão os limites dessa extensão, optando por uma cláusula aberta (“no que couber”). Isso pode permitir soluções casuísticas, em que empreendimentos similares podem ou não vir a se submeter ao PPI ou a parte desse regime conforme uma avaliação das próprias autoridades envolvidas na deliberação sobre a inclusão de empreendimentos no PPI.
Para maior clareza e transparência, a opção legislativa poderia ter sido diversa. É possível que o tema receba tratamento distinto no momento da conversão da MP 727 em lei.
5. Requisitos adicionais do art. 21 da MP 727
Além da própria definição de concorrência e convívio, o art. 21 estabelece alguns requisitos materiais específicos de aplicação.
Primeiro, os destinatários da extensão do PPI devem ser “empreendimentos empresariais privados”. Excluem-se os parceiros privados em contratos de parceria, como concessionários, permissionários, arrendatários e similares. Embora tais pessoas sejam, em geral, privadas, os empreendimentos a que se vinculam são públicos para os fins da MP 727. Já são contemplados pela própria definição do art. 1o.
O segundo requisito é que devem ser sujeitos a um regime de autorização administrativa. A exigência pode ser excessivamente restritiva se tomada de modo literal, com possíveis reflexos sobre o princípio da isonomia. Não há distinção entre empreendimentos sujeitos ou não a autorização no que se refere ao seu “convívio” com empreendimentos públicos. A sujeição a regime de autorização administrativa, em contraposição a um regime de delegação (concessão, permissão ou arrendamento, por exemplo), é relevante apenas para a delimitação das condições de regulação assimétrica ou assimetria concorrencial. Mas não tem relevância para a aplicação da noção de convívio entre empreendimentos. Para este fim específico, não há diferença se o empreendimento privado que convive com um empreendimento público é uma pequena central hidrelétrica (PCH), autorizada, ou uma fazenda de produção de soja, não sujeita a autorização administrativa. Ambas podem estar em situação de convívio (complementariedade, sinergia, cooperação) com empreendimentos públicos. Ambas podem depender igualmente da agilidade no exercício de funções regulatórias públicas para que se possam realizar com plenitude os objetivos do PPI.
Por fim, a extensão deve ser realizada “no que couber”. O dispositivo não apenas admite a aplicação, mas a determina no que for cabível. A interpretação dessa expressão deve ser cuidadosa para evitar tratamentos discriminatórios e ofensa à concorrência equilibrada, ainda que assimétrica. Sua aplicação desmesurada, especialmente no campo da concorrência (não o de convívio) entre empreendimentos públicos e privados, pode implicar graves riscos à concorrência.
O sistema de concorrência assimétrica pressupõe que cada regime jurídico próprio tem suas vantagens e desvantagens. Os empreendimentos públicos, executados por empresas privadas (concessões, PPPs, arrendamentos), têm ônus e vantagens em comparação com empreendimentos privados. A aplicação excessivamente ampla do art. 21 da MP 727 pode desequilibrar esta relação entre os dois regimes e eliminar a própria justificativa e os efeitos da assimetria regulatória.
Esse problema não se verifica com a mesma intensidade no caso dos empreendimentos privados que “convivem”, não “concorrem”, com os empreendimentos públicos. Ao contrário, a extensão a estes do regime do PPI pode levar à efetiva realização dos objetivos das parcerias definidas no art. 1o da MP 727.
6. Conclusão: convívio entre empreendimentos e desenvolvimento integrado
A exposição precedente revela que a MP 727 parece ter adotado uma solução específica para eliminar um possível descolamento entre a eficiência na implantação dos empreendimentos públicos e a dos empreendimentos privados que lhes dão sustentação e justificativa – os que, portanto, convivem com aqueles no sentido legal.
Pode-se cogitar de situação em que um empreendimento rodoviário ou ferroviário seja favorecido pelo PPI no seu processo de implantação, ao passo que os empreendimentos privados a cujo atendimento tais infraestruturas públicas se destinem permaneçam obstados por dificuldades regulatórias. Ao possibilitar a extensão do regime jurídico do PPI a empreendimentos privados que convivam com as parcerias do art. 1o, a MP 727 parece ter adotado uma noção de desenvolvimento integrado, em que a atuação regulatória estatal seja compreendida como um instrumento abrangente de incentivo ao crescimento e à atividade econômica.
1 O autor agradece a Roberta Jardim de Morais, Marçal Justen Filho e Rafael Wallbach Schwind por seus comentários e meditações sobre algumas das ideias aqui propostas.
2 Sobre uma visão geral das premissas da MP 727, v. SUNDFELD, Carlos Ari. Desafios do Governo Temer para Recuperar a Regulação e as Parcerias: as respostas da MP 727, em https://www.direitodoestado.com.br/colunistas
, acesso em 24.5.2016.__________________
Bibliográfica
PEREIRA, Cesar. Convívio entre empreendimentos públicos e privados na MP 727: o desenvolvimento econômico integrado no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 111, maio de 2016, disponível em https://www.justen.com.br/informativo, acesso em [data].
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*Cesar A. Guimarães Pereira é doutor e Mestre pela PUC/SP , Visiting Scholar da Columbia University , EUI e Public Procurement Research Group (Nottingham) e sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados.