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A inconstitucionalidade da multa prevista no art. 8º da lei do Vale-Pedágio

Évidente que tal multa é desarrazoada, por qualquer ângulo que seja analisada, já que potencialmente poderia dar ensejo ao enriquecimento indevido de alguns transportadores rodoviários que viessem a obter sucesso em demandas judiciais.

20/5/2016

A MP 2.024/00 instituiu o vale-pedágio obrigatório, tendo sido, após sucessivas reedições e alterações em seu texto, convertida na lei 10.209/01 que, no que é aqui relevante, disciplinou, em seu artigo 3º, que, "a partir de 25 de outubro de 2002, o embarcador passará a antecipar o Vale-Pedágio obrigatório ao transportador, em modelo próprio, independentemente do valor do frete...".

Em caso de descumprimento desse preceito, nos termos do artigo 5º da aludida norma, deveria ser o infrator punido com a aplicação da multa administrativa de R$ 550,00 e, na forma de seu artigo 8º, "sem prejuízo do que estabelece o art. 5º, (...) o embarcador será obrigado a indenizar o transportador em quantia equivalente a duas vezes o valor do frete."

A partir do estudo do histórico da tramitação legislativa que culminou com a sanção dessa norma, a ratio legis tem suporte em 3 pleitos principais, de diferentes agentes econômicos.

Primeiro, por parte dos transportadores rodoviários de carga que, com o implemento dessa norma, (i) passaram a contar com maior garantia de recebimento das tarifas de pedágios por eles suportadas e (ii) puderam destacar da base de cálculo de tributos por eles pagos os valores referentes aos vale-pedágios, que não mais poderiam ser confundidos com o frete pago pelos serviços prestados.

Em segundo lugar, por parte dos embarcadores que teriam maior controle sobre as rotas a serem seguidas, já que poderiam estipulá-las, a partir do vale adiantado, calculado com suporte nas praças de pedágio por onde transitaria o transportador rodoviário.

Em terceiro lugar, das concessionárias de rodovias que, além de arrecadar antecipadamente os valores devidos a título de pedágio, contemplariam a redução do uso de rotas alternativas para o não pagamento dessa tarifa (a utilização de tais rotas, usualmente mais perigosas quando se tem em mira o risco de roubo de carga, passaria a ser coibida mais firmemente pelos embarcadores).

Diante disso, infere-se que a ratio essendi da norma pode até ser legítima, mas, indiscutivelmente, a sanção imposta em caso de seu descumprimento é inconstitucional (viola os princípios da proporcionalidade/razoabilidade e da igualdade), especialmente no que diz respeito à multa prevista pelo referido artigo 8º anteriormente transcrito.

A razão é simples e até mesmo intuitiva. Não poderia a pena concernente ao descumprimento da antecipação do vale-pedágio (mero acessório, vale dizer, ressarcimento de despesas para o desempenho da obrigação principal), ter como base de cálculo o frete (obrigação principal, a remuneração do transportador).

Nesse cenário, o transportador rodoviário lesado, nos termos da lei federal 10.209/01, poderia pleitear, perante o Poder Judiciário, além do ressarcimento do pedágio não adiantado, o pagamento dessa multa. Logo, ao final da demanda, se vencedor, receberia a compensação concernente ao pedágio dispendido, bem como o montante de 3 (três) vezes o valor do frete (uma a título de pagamento, já recebida por ocasião da execução do serviço, e outras duas a título de multa).

Em decorrência dessas razões, após anos de árdua disputa judicial, finalmente foi possível submeter essa questão ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo ("TJ/SP", autos nº 0062093-77.2015.8.26.0000), que, mesmo em controle difuso, declarou a inconstitucionalidade do referido artigo 8º da lei 10.201/01, decisão essa que deverá ser seguida nos demais julgamentos proferidos por aquele Pretório. Isso porque "se o STF ou o plenário da Corte de segunda instância, já tiverem se pronunciado a respeito da inconstitucionalidade de lei, o órgão fracionário do Tribunal de Justiça está dispensado de suscitar o incidente, devendo simplesmente invocar o precedente da Corte ou do STF, a cuja orientação fica vinculado" (STJ, REsp 759.571 – RR, j. 3/11/09).

E, de fato, tal decisão foi absolutamente acertada e, somente por isso, deverá firmar jurisprudência no TJ/SP sobre essa questão.

Primeiro porque o princípio da proporcionalidade, embora não explícito, decorre da interpretação, dentre outros dispositivos, do caput e dos incisos V, X e XXV, do artigo 5º, da Constituição Federal. De todo modo, a "circunstância de ele não estar previsto expressamente na Constituição de nosso País não impede que o reconheçamos em vigor também aqui, invocando o disposto no § 2º do artigo 5º. Ademais, entende-se que o princípio da proporcionalidade encontra-se previsto implicitamente na Constituição Federativa de 1988, seja decorrente do Estado Democrático de Direito, seja decorrente do aspecto processual do devido processo legal" (OLIVEIRA, Daniela Fernandes, O Princípio da Proporcionalidade Frente aos Fenômenos Civis Pós-Modernos, in RT v. 952, pp. 59/84).

Aliás, mesmo que com o foco em matéria tributária, vale consignar que o Supremo Tribunal Federal "entende plenamente cabível o controle de constitucionalidade dos atos de imposição de penalidades, especialmente à luz da razoabilidade, da proporcionalidade e da vedação do uso de exações com efeito confiscatório..." (2º AgReg no RE nº 595.553 – RS, j. 8/5/12).

Nessa trilha, simplesmente não tem fundamento indenizar o transportador rodoviário pela quantia de duas vezes o valor do frete que lhe foi pago, pela suposta não entrega do vale-pedágio. Empregando base de cálculo diversa daquela do dano provocado, por vezes a multa imposta ao embarcador alcança 20 (vinte) vezes o valor do pedágio não adiantado, o que é inadmissível com pedra angular no mencionado princípio da proporcionalidade.

Em segundo lugar (e esse foi o principal fundamento que levou o Órgão Especial do TJSP a declarar a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal), "o artigo 8º da lei 10.209/01 inaugurou a possibilidade de que casos/ilegalidades idênticos alcancem desfechos jurisdicionais desiguais, o que fere o artigo 5º, caput, inciso I, da Constituição Federal" (autos nº 0062093-77.2015.8.26.0000), vale dizer, o princípio da igualdade.

"Isso porque, ao atrelar o valor de cobrança ao dobro do frete no lugar do dobro do vale-pedágio não honrado, percebe-se que dois transportadores com problemas idênticos, ao acionarem o Poder Judiciário, terão de cobrar valores diversos em suas respectivas lides." Por exemplo, se "dois transportadores que levassem mercadorias distintas, com fretes distintos, pelo mesmo trecho rodoviário, por certo teriam tratamento desigual: no exemplo anterior, se outro motorista tivesse contratado para o mesmo trecho frete maior, v.g. de R$ 10.000,00, pelo transporte de mercadoria de maior valor ou risco, receberia o mesmo valor pelo reembolso do pedágio (R$ 199,50, mais correção e juros), porém a multa lhe seria devida no valor de R$ 20.000,00. Pelo mesmo trecho, em caminhões similares, o primeiro transportador receberia o valor do pedágio (R$ 199,50) e mais a multa de R$ 4.834,46, enquanto o segundo transportador receberia o valor do pedágio (R$ 199,50) e mais a multa de R$ 20.000,00, em evidente afronta ao citado princípio da igualdade (isonomia)" (autos nº 0062093-77.2015.8.26.0000).

Logo, é evidente que tal multa é desarrazoada, por qualquer ângulo que seja analisada, já que potencialmente poderia dar ensejo ao enriquecimento indevido de alguns transportadores rodoviários que viessem a obter sucesso em demandas judiciais. Destarte, não há como deixar de considerar a decisão proferida pelo Órgão Especial do TJ/SP como uma vitória, não só dos embarcadores, mas, sobretudo, da justiça.

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*Wilson de Toledo Silva Junior é sócio do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados.

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