Os brasileiros acabam de enfrentar, mais uma vez, a privação temporária de um instrumento de comunicação digital, o WhatsApp, por decisão de Juiz Estadual de Lagarto, SE. Seria uma providência retaliatória da resistência dos responsáveis daquele aplicativo em promoverem a interceptação e coleta de informações de determinados usuários que estariam sendo investigados pela prática de crimes. Em recente decisão, o mesmo magistrado já havia determinado a prisão de executivo responsável pela empresa no Brasil, com os mesmos objetivos.
As razões do enfrentamento entre o magistrado e a empresa responsável pelo WhatsApp exprimem uma questão de grande importância para o futuro da democracia e da liberdade individual não apenas no Brasil, como em todo o mundo.
Essencialmente, o conflito consiste na exigência, feita pelo Juiz do Estado de Sergipe, de que os responsáveis pelo WhatsApp promovam a “interceptação” da comunicação de determinados usuários do WhatsApp, a fim de colher provas do envolvimento de tais usuários com a prática de crimes investigados pela polícia. O WhatsApp, de outro lado, se afirma impedido de concretizar a interceptação solicitada por razões técnicas, mas também estratégicas. Afim de garantir a privacidade de seus usuários o WhatsApp implementou um processo de encriptação “ponto a ponto” da comunicação pelo aplicativo, o que impede que os servidores da Empresa – ainda que estejam trafegando as mensagens trocadas –, possam interpretar o conteúdo das comunicações entre os usuários. Mais que uma limitação técnica, essa tecnologia atende a uma importante necessidade de preservação da privacidade dos usuários, em um ambiente em que a vulnerabilidade é crescente assim como os riscos e os prejuízos que podem ser causados aos usuários.
A interceptação telefônica é corriqueira no âmbito da justiça criminal, sendo, entretanto, dirigida às companhias telefônicas e voltadas à interceptação de comunicações telefônicas, atividade que é objeto de ampla regulamentação legal. São essas prerrogativas da justiça criminal, associadas aos deveres instrumentais previstos no recente Marco Civil da Internet, que são manejadas pelo Juiz de Lagarto na determinação feita ao WhatsApp para que promova a interceptação.
"Pode a justiça brasileira (e, portanto a lei) impedir ou restringir a aplicação de tecnologias garantidoras da privacidade dos usuários de serviços digitais?"
A grande questão por trás do enfrentamento entre o WhatsApp e a Justiça, portanto, pode ser formulada nos seguintes termos: pode a justiça brasileira (e, portanto a lei) impedir ou restringir a aplicação de tecnologias garantidoras da privacidade dos usuários de serviços digitais? Ou, dito de outra forma, a lei brasileira e, notadamente, o Marco Civil da Internet, obriga as empresas provedoras de aplicativos na internet a dotarem-se dos meios técnicos para colher (interceptar) o conteúdo privado das comunicações de seus usuários, mesmo quando tenham adotado estratégias tecnológicas que as afastam dessa possibilidade?
A questão por trás do enfrentamento entre o WhatsApp e a Justiça Brasileira, como se vê, está longe de se limitar ao enorme prejuízo com o bloqueio do aplicativo para milhões de usuários brasileiros. Na verdade, reflete a versão brasileira para o recente enfrentamento que opinião pública internacional acompanhou entre o FBI e a Apple, em torno da quebra da encriptação do Iphone pertencente ao responsável pelo ataque terrorista ocorrido em San Bernardino, Califórnia, em Dezembro de 2015. Naquele confronto, a Apple resistiu às requisições do FBI, alegando a mesma razão aqui defendida pelo WhatsApp: quebrar a encriptação do Iphone, ainda que sob as altamente justificáveis razões apresentadas, representaria um mal ainda maior, a destruição da proteção construída pela Empresa para a privacidade de todos os seus usuários.
De fato, é preciso observar a grande diferença existente entre a antiga interceptação telefônica, praticada largamente pela justiça criminal e amplamente regulada na legislação vigente, e o novo ambiente digital. A telefonia, original e tradicionalmente, se organiza em uma rede exclusiva e especializada, controlada a partir de centrais de comunicação. Nesse ambiente a “interceptação clandestina” não era impossível, mas muito difícil, e implicava na identificação das conexões finais do usuário em algum ponto do percurso entre a central telefônica e seu terminal, ou na atuação desautorizada na própria central de telefônica, onde esses abusos são mais fáceis de serem controlados.
No ambiente digital, entretanto, a arquitetura é completamente diferente. Todos os dispositivos conectados à internet, em princípio, são acessíveis entre si. Os sistemas operacionais e as plataformas tecnológicas, portanto, são amplamente disponíveis ao conhecimento e ao desenvolvimento tecnológico, o que permite a disseminação das atividades de hackers e outras formas de pirataria de dados e informações de toda ordem, em todo e qualquer sistema de informações.
As situações de ameaça aos usuários de serviços conectados à internet são cada vez mais surpreendentes, como exemplifica o caso recente do Hollywood Presbyterian Medial Center que teve os dados indispensáveis ao funcionamento do Hospital “sequestrados” por hackers que só os devolveram depois de receber um “resgate”.
"As tecnologias de defesa da privacidade exprimem uma necessidade essencial para a proteção do cidadão."
Nesse novo contexto, portanto, as tecnologias de defesa da privacidade exprimem uma necessidade essencial para a proteção do cidadão. Essa constatação nos leva ao ponto em que, no conflito entre o princípio de defesa do direito à privacidade e o princípio da responsabilidade civil e criminal, não se mostra razoável afirmar que a Constituição admita a supressão de toda a privacidade em prol de uma reserva de poder e autoridade ao Estado, para a persecução da responsabilização civil ou criminal de alguns.
A reserva de poder ao Estado para a interceptação da correspondência e da comunicação, na verdade, corresponde a uma exceção ao preceito constitucional que afirma a inviolabilidade do sigilo da correspondência e da comunicação. A coibição ou restrição à aplicação de tecnologias verdadeiramente eficazes para a proteção da privacidade em ambientes tecnológicos representaria a inversão do acessório sobre o principal. A afirmação da autoridade estatal para a persecução criminal não pode ser feita ao custo da desproteção de toda a cidadania.
As consequências dessa afirmação da autoridade sem limites, além disso, não ficariam restritas às graves consequências da pirataria e do ataque de meliantes digitais. Caso aceitemos a prevalência do princípio da autoridade sobre o direito à privacidade assistiremos à grave degradação do status do cidadão, que de titular de direito inalienáveis será transformado em mero súdito do poder onipresente do Estado, que decidirá por conveniência, se e quando lhe conceder direitos.
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*Eduardo Augusto de Oliveira Ramires sócio do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.