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Da judicialização do processo de impeachment - Preocupação

O fato inconteste de um ministro do Supremo Tribunal Federal encarnar a jurisdição máxima do Estado brasileiro, não lhe autoriza a invadir competência soberana do Senado Federal outorgada pela Constituição, para afastar o julgamento político do impeachment e impor um julgamento jurídico de mérito.

3/5/2016

Em artigo anterior escrevi sobre a judicialização do processo de impeachment, bem como descrevi alguns SACRILÉGIOS, na lição do saudoso e notável ministro Paulo Brossard, “data maxima venia”, praticados no enfrentamento de diversas causas sujeitas à jurisdição do Supremo Tribunal Federal.

Entre tais sacrilégios recordei dois, praticados com imensa tristeza, pelo eminente ministro Marco Aurélio: o primeiro, quando em despacho cautelar determinou que o presidente da Câmara dos Deputados desse curso a pedido de impeachment contra o vice-presidente da República, anulando ato privativo daquela Casa legislativa e o segundo quando, em entrevistas, afirmou a possibilidade do Supremo Tribunal Federal rever julgamento final do Senado Federal sobre o impeachment, especialmente, quanto ao exame da tipificação do crime de responsabilidade imputado à presidente da República.

Passo ao terceiro sacrilégio que traz em si, viva preocupação, uma vez que o seu possível autor irá presidir a sessão de julgamento do Senado Federal, na qualidade jurídica de Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Ricardo Lewandowski. Refiro-me ao fato de que Sua Excelência informou ao país que a presidente da República poderá recorrer ao Supremo Tribunal Federal, caso queira refutar a decisão do Senado Federal em destituí-la de seu cargo. Com efeito, no final de mais de sete horas de sessão em que os senhores ministros decidiram manter o rito do impeachment estabelecido pela Câmara dos Deputados, rechaçando o alegado cerceamento de defesa, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou: Não fechamos a porta para uma eventual contestação no que diz respeito à tipificação de atos imputados à senhora presidente no momento adequado”. Para Sua Excelência, uma decisão soberana e política do Senado Federal que, eventualmente, venha a destituir a presidente da República de seu cargo, poderá ser revista pela Suprema Corte em apreciação jurídica. E mais se diga: afirmou que faria constar da ata de julgamento, tão despropositada “abertura de porta”. Não sei, pois não tive acesso à ata, se a afirmativa dela passou a constar. Esqueceu-se o ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal de que sua arma é a Constituição e em seus limites deve pautar-se no exercício da jurisdição.

Recordo-me que o ministro Ricardo Lewandowski, durante aquela longa sessão, diversas intervenções fez, procurando levar aos seus pares, a sua visão de que a Suprema Corte tudo pode para examinar quaisquer atos dos demais Poderes, pouco importando o princípio da divisão e harmonia dos Poderes do Estado brasileiro. Disse que a sua posição, como Juiz da Suprema Corte, lhe confere a jurisdição de examinar e, até mesmo rever atos privativos do Poder Legislativo. Recordo-me, ainda, que chegou a mencionar doutrina, arrolando o nome do eminente e saudoso jurista italiano Mauro Cappelletti em defesa de sua, porque não dizer, tão despropositada tese. Foi aparteado pelo eminente ministro Luiz Fux que disse conhecer a obra do inesquecível Mestre peninsular, onde não estaria escrito o que acabava de ser proclamado por Sua Excelência. Fugindo ao debate, como sói acontecer, Sua Excelência disse que não desejava “polemizar”.

Mauro Cappelletti, consagrado jurista italiano, discípulo de Calamandrei, foi professor na Universidade de Florença. Notabilizou-se no estudo e sistematização dos interesses difusos da sociedade, além de outros ensaios e monografias no trato de institutos do Direito Processual e da Filosofia do Direito. Entre suas obras, dois livros se destacam: “Acesso à Justiça”, seu livro mais conhecido no Brasil, em co-autoria com o professor Brynt Garth e “Juízes Legisladores?”, que traz no título um ponto de interrogação.

Defende a tese de que o juiz, na interpretação da lei, deve buscar a solução mais justa, mesmo que o texto da lei lhe sugira hermenêutica diversa. Os princípios gerais do direito, a analogia e a equidade devem guiar o juiz na interpretação e aplicação das leis.

No entanto, jamais chegou ao extremo de fazer coro à corrente doutrinária denominada “escola do direito livre” da segunda metade do século XIX, de que a interpretação tradicional restringe o Direito e lhe tapa os horizontes e, assim, cabe ao juiz criar o direito, tendo como guia a observação da natureza das coisas, dos princípios de justiça, da sociologia, da filosofia etc. Essa atividade criadora de direito novo não está sujeita a limites, tanto que um dos adeptos da “escola do direito livre”, qual seja Sclosmmann, reduz a lei a uma folha de papel, não se podendo, portanto, descobrir-lhe uma vontade. Em suma, advoga-se a ditadura dos juízes na interpretação e aplicação da lei.

Cappelletti, ao contrário, deixa expresso que discricionariedade não quer dizer arbitrariedade e o juiz não é necessariamente um criador, completamente livre de vínculos. Para ele, “na verdade, todo o sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial, tanto processuais quanto substanciais”.

Aliás, a indagação contida no título de sua obra diz respeito a “Juízes legisladores e não a “Juízes constituientes.

Por mais que se admita ao juiz a possibilidade de criar direito novo, não se pode admitir tenha ele a possibilidade de buscar um significado que não seja oriundo do texto constitucional. O juiz não pode desgarrar-se da responsabilidade de cumprir os ditames contidos na Constituição. Em suma, o limite supremo da possível criação de direito novo, por parte dos juízes, está na Constituição, que assume, notadamente, a partir da concepção do Estado Democrático de Direito, o topos pelo qual toda a atividade jurisdicional estará submetida.

O fato inconteste de um ministro do Supremo Tribunal Federal encarnar a jurisdição máxima do Estado brasileiro, não lhe autoriza a invadir competência soberana do Senado Federal outorgada pela Constituição, para afastar o julgamento político do impeachment e impor um julgamento jurídico de mérito. Trata-se do desrespeito frontal ao princípio constitucional da divisão e harmonia dos poderes da República. De um enorme sacrilégio, fazendo coro com o notável e saudoso Ministro Paulo Brossard.

Se existe um ministro capaz de defender a possibilidade, como juiz, de imiscuir-se em analisar e julgar atos legislativos de competência exclusiva do Senado Federal conforme estabelece a Constituição, não deixa de ser preocupante a posição que terá, como presidente, na condução dos trabalhos de instrução e julgamento da presidente da República por aquela Casa do Congresso Nacional.

Poderá tentar – note bem, tentar - judicialiizar o julgamento político do Senado Federal? É a pergunta que fica.

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*Ovídio Rocha Barros Sandoval é advogado, magistrado aposentado, autor de obras e artigos jurídicos, atualizador de obras clássicas do Direito brasileiro.


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