A literatura pode ser singelamente definida como uma das formas de transmissão do conhecimento humano, registrada em algum tipo de suporte. Estes evoluíram desde a pedra até os bytes, passando pela argila, pelo pergaminho, pelo couro, pelo papel, etc. Na modalidade mais primitiva encontra-se sob a forma dos registros pictóricos rupestres, ou seja, presentes nas paredes de cavernas (as mais conhecidas situadas em França, datadas de cerca de trinta mil anos a.C.
No sentido acima, não se deve tomar a tradição oral como literatura porque o que as separa é, precisamente, a ausência de um registro permanente e imutável da segunda, em regra. Claro que frequentemente a tradição oral se consolida na forma de literatura, presente o risco do acréscimo, decréscimo ou mudança de inflexão do seu conteúdo. Como se sabe, quem conta um conto, aumenta um ponto. Sem contar as apropriações indevidas e as falsificações.
Por outro lado, a transmutação da tradição oral em literatura serviu como instrumento para o salvamento de conteúdos de extrema importância para a humanidade. Alguns exemplos são marcantes, como o Livro dos Mortos egípcio; a lenda de Gilgamesh originada na antiga Suméria; o registro vétero testamentário hebraico; e até mesmo as peças de Shakespeare. No primeiro caso, o achado da mais antiga versão do profeta Isaias na caverna de Qumran em 1948 tem permitido aos historiadores e teólogos a identificação da fidelidade de outras cópias mais recentes de um original há muito perdido. A mesma coisa se pode dizer quanto aos “in folio” das obras daquele poeta e dramaturgo, registrando-se que mais um deles foi encontrado recentemente na ilha de Bute, Escócia, segundo notícia publicada no NY Times do dia 6 deste mês.
Os próprios ensinamentos de Sócrates colocam-se no plano da tradição filosófica oral, pois ele não teria deixado na forma escrita qualquer texto de sua autoria, tendo ficado a cargo do seu discípulo Platão fazer o devido registo, com relação ao qual remanescem dúvidas eternas a respeito da completude e da fidelidade daqueles.
O conteúdo da literatura mais primitiva foi de natureza sacra, conhecida desde os remotos tempos das civilizações da Antiguidade, destacando-se os textos emanados da já mencionada Suméria, do Egito, da Babilônia, da Pérsia e da Palestina, deixando aqui de ser considerada a história do Extremo Oriente. O registro literário mais conhecido e utilizado como fonte teológica desde tempos remotos até os presentes dias corresponde ao chamado Antigo ou Velho Testamento, que formou originariamente o cânon judaico e que depois veio a ser apropriado em parte pelo cristianismo.
Em uma época mais avançada no tempo a literatura sacra evoluiu gradativamente para a profana, com os mais variados conteúdos, até chegar à completa separação da sua origem. Na modernidade, são publicados anualmente milhões de textos sobre todo tipo de assunto, cada vez mais presentes sob a forma eletrônica, dos mais profundos aos mais prosaicos (para não mencionar os absolutamente inúteis), sabendo-se que a quantidade prejudica enormemente a qualidade. Para comprovar esta assertiva, basta verificar quais têm sido as obras mais vendidas, periodicamente identificadas em fontes apropriadas, verdadeiramente assustadoras para nós outros. Se aquilo que uma sociedade lê (ou deixa de ler) é o que ela é, por favor, alguém me leve o mais cedo possível para outro sistema planetário, bastante colorido na sua qualidade literária, entretanto sem tons de cinza.
Sob o aspecto acima, é interessante observar que serão publicados brevemente em mandarim obras de três autores brasileiros, a seguir indicados pela ordem da importância que lhes foi dada: Graciliano Ramos, Ligia Fagundes Telles e Clarice Lispector. Na relação de interesse Machado de Assis foi o quinto colocado1. Pelo visto os chineses estão se interessando por autores brasileiros que não têm sido valorizados em sua justa medida na nossa terra pátria. É uma grande pena! Meu jovem leitor, você já ouviu falar de Graciliano Ramos? Pois não sabe o que está perdendo.
Observe-se uma infeliz inversão do sistema educacional brasileiro como um todo, que está voltado para a aprovação do aluno no vestibular para ingresso em universidades. Como para tanto as exigências no campo da literatura são sofríveis quando não inexistentes (o que acontece até na USP, considerada a melhor universidade brasileira), as escolas evidentemente deixam de dar ênfase a esse aspecto do aprendizado. Sob este ponto de vista uma pesquisa feita há alguns anos identificou a grande maioria dos professores do ensino primário no Brasil veio a ler o seu primeiro livro completo quando entrou para a faculdade.
Quanto à literatura jurídica, esta passou pelo mesmo processo de oralidade para a forma escrita, ainda que se conheçam registros extremamente antigos da última, como é o caso do conhecido Código do rei Hamurabi (certamente muito mais falado do que lido). Ainda nos dias atuais a lei não escrita sobrevive sob o ordenamento da common law ou dos princípios gerais de direito, reconhecidamente presentes na civil law.
Entre nós os clássicos do direito servem boa parte das vezes para enfeitar salas de reuniões de escritórios, comprados por metro e dispostos nas estantes segundo um sistema científico de cores e tamanhos. Professores e alunos eram até quatro décadas atrás, sectários dos autores franceses e italianos (principalmente) lidos, com sofreguidão, observada a grande dificuldade de aquisição de obras estrangeiras, especialmente pelo motivo de acesso e custo. Autores brasileiros, entre tantos outros, como Clóvis Bevilaqua, J. X. Carvalho de Mendonça, Waldemar Ferreira, Washington de Barros Monteiro, Orlando Gomes, Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Silvio Rodrigues, Oscar Barreto Filho, Waldírio Bulgarelli, alcançaram seu grande conhecimento jurídico por terem se abeberado naquelas fontes. Pontes de Miranda apresentou uma nota diferenciada, uma vez que transitava também pelo direito alemão. É importante notar que eles não localizavam o seu aprendizado apenas em uma área específica do conhecimento do direito. Eles dominavam a sua teoria geral, faltante em quase todos os juristas modernos, especialistas no calo do dedo mindinho do pé esquerdo.
As obras jurídicas dos tempos atuais se apresentam sob duas características fundamentais: algumas de natureza geral (especialmente os cursos)são um resumo do resumo das matérias nele tratadas, usando-se o sistema da metralhadora giratória. Um mero capítulo para cada instituto que foi erigido durante séculos de cultura jurídica. Ir mais fundo não vende. Quem sabe, seus autores algum dia os farão publicar em curtas mensagens de WhatsApp mediante assinatura paga. Outras são extremamente específicas, sem maior profundidade dogmática e de natureza quase exclusivamente prática, no molde dos cinco passos para ganhar uma ação de despejo. A grande maioria consiste de textos voltados para tópicos do momento, cuja finalidade é primordialmente comercial, tanto da editora, quanto do autor. A moda atual, por exemplo, está voltada para o Novo Código de Processo Civil. Há obras de qualidade e profundidade, claro, mas como foi necessário aprontá-las assim que aquele código foi finalizado no âmbito de legislativo e entrou em vigor, a pressa cedeu lugar à perfeição, muito longe disto.
No meio acadêmico e nas melhores universidades (muito poucas no País) excelentes dissertações e teses são apresentadas às bancas, o que é raro (e o seu conhecimento é extremamente dificultado pela inacessibilidade à publicação). Mas, e geral, usando uma linha defensiva, os pesquisadores procuram fugir aos grandes temas, que trazem o perigo da apresentação de lacunas, pontos que serão martelados sistematicamente pelos examinadores na ocasião oportuna. Por isto a sua expressiva maioria aborda áreas bastante específicas do direito que têm se repetido até a exaustão. Quando se trata de doutoramento, contribuições efetivamente novas para o direito são extremamente raras (pensar por si próprio é um ato incomum e muito dolorido). Na grande parte dos casos os candidatos conseguem subir apenas um degrau acima do estado da técnica, tornando-se difícil para os examinadores descobrirem se o texto tem mesmo alguma coisa nova ou se trata apenas de um arranjo inteligente do conhecimento já disponível.
Feita esta introdução comparativa, cabe perguntar que ligação pode ser feita entre os três tópicos do título deste texto, literatura, direito e sociedade moderna? O liame consiste precisamente no reconhecimento de que houve perda cultural sensível no âmbito da sociedade moderna, tanto na literatura quanto no direito – e, ainda, na utilização da literatura pelo direito – com o resultado de prejuízo e, no mínimo, de grave empobrecimento da comunicação do conhecimento.
Quando me referi acima ao Antigo Testamento, a Sócrates, a Platão, a Shakespeare, eu fiz imediatamente interromper ou empobrecer a minha comunicação com o aquele leitor que jamais teve acesso aos textos ou autores mencionados. E esse leitor é aquele que sucedeu à minha geração, dentro do meio social em que vivi, ou seja, aquele da classe média brasileira e que teve acesso a uma cultura humanística de boa qualidade. No ginásio liamos as obras mais importantes da literatura brasileira e portuguesa, e quem no segundo grau fazia o curso clássico nelas se aprofundava. Ainda no ginásio tínhamos acesso à língua francesa, dentro de um nível que nos permitia a compreensão das mais famosas obras da literatura daquele país, então na moda. O curso de latim era feito com base no “De Bello Gallico” (“A Guerra Gaulesa”) de Júlio César. O inglês era sofrível, mas superávamos de alguma forma a deficiência da escola pública neste particular por meio de aprendizado nos cursos que começaram a proliferar por todo o Brasil a partir de 1960. A finalidade era justamente a de suprir uma deficiência até então notável, considerando que o eixo cultural do qual o Brasil fazia parte até então era aquele da Europa continental.
O resultado era que a parte da sociedade brasileira que tinha acesso à educação apresentava condições para fazer-se entender no plano da cultura, sem que houvesse hiatos sensíveis entre os mais velhos e os mais novos.
Se na atualidade as gerações passadas e presente não se comunicam adequadamente pela e enorme diferença de fundamentos entre elas então estamos diante de um seríssimo problema. Fazer-se entender passa a exigir que o nível do discurso seja rebaixado e quando se pensa na ciência jurídica a calamidade ainda se torna mais evidente. Exceto nos meios acadêmicos de melhor qualidade, e mesmo assim com exceções sensíveis, as obras jurídicas nas quais se abeberaram nossos pais estão completamente mortas e enterradas. E isto talvez represente um dano maior do que aquele que ocorre em relação à literatura porque o direito evolui continuamente, sendo o conhecimento passado a base do presente. Quando isto não acontece surgem rupturas que provocam significativa perda da coerência e do conteúdo jurídico, em virtude do abandono do espírito que deveria reger de forma estável determinados institutos no decorrer dos anos, longinquamente nascidos em tempos distantes.
Não se trata de saudosismo gratuito. Quando, por exemplo, o legislador adota um modismo, conforme atualmente se faz em relação à função social, ele em primeiro lugar mostra que não conhece o seu nascimento dentro do fascismo italiano de Mussolini. Em segundo lugar ele cria uma ruptura na estrutura do ordenamento jurídico, abrindo brechas para a instauração de um regime de acentuada incerteza e segurança no plano das relações jurídicas, que leva, como resultado, ao aumento dos chamados custos de transação, pagos pela sociedade como um todo. Feito o balanço final, o resultado é amplamente negativo. O patrimônio líquido do bom direito se transforma em passivo a descoberto, a ser pago pelas gerações presentes e futuras, considerando-se que o efeito bumerangue de defesa adotado pelo mercado é quase instantâneo.
Será que podemos olvidar sem qualquer consequência funesta os ensinamentos do direito romano? Podemos abandonar o nascimento e desenvolvimento do Direito Comercial no seio das corporações de ofícios da Idade Média, verificado nas cidades da Europa mediterrânea? É válido deixar de lado o Código Comercial francês napoleônico e o seu congênere italiano de 1942? Parece que essa é a ideia presente em uma aventura atualmente em curso no Direito Comercial pátrio, onde corre um projeto de lei que pode ser caracterizado como um verdadeiro Frankenstein jurídico. Nele é patente um descasamento desastroso entre o direito comercial proposto e a sua linha de evolução contínua desde remoto passado. Neste caso, o legislador do Código Civil de 2002 deu um péssimo exemplo, simplesmente por ter jogado fora de uma só vez todo o nosso valioso Código Comercial de 1850. A pretexto de colocar-se no plano da modernidade ele não apresenta qualquer rumo razoável.
E o projeto acima referido caminha, por exemplo, para acabar com o tratamento a outros institutos do nosso vetusto, mas valioso Código Comercial de 1850, vindo a atingir também o direito marítimo. E quando ao direito dos transportes terrestres, com exceção de alguns pontos alcançados pela evolução da sociedade e da forma pela qual o comércio atualmente se exerce, mormente no que diz respeito às operações internacionais, bastaria trocar naquele velho Código a referência a alimárias por veículos automotores. Parafraseando Galileu, percebe-se que ambos se movem no mesmo meio. Neste sentido, a tecnologia moderna é mero adjetivo, que apenas enriquece (ou empobrece) o substantivo ao qual se aplica. A mesma critica se estabelece em relação teoria geral dos títulos de crédito, pois quanto a eles mudou apenas o suporte que passou a ser eletrônico2.
Mas por enquanto fiquemos por aqui. Até o próximo capítulo.
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1 Cf. Notícia dada por Sonia Racy em sua coluna no jornal “O Estado de São Paulo” de 23.04.16.
2 É bem verdade que a circulação da riqueza mercantil encontrou outros caminhos além da utilização dos títulos de crédito, a partir da utilização de cartões de débito e de crédito e dos chamados “recebíveis” em geral, tema que foge ao objeto do texto presente.
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