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A interpretação CISG e o seu caráter internacional

A convenção é o marco normativo fundamental a reger as transações comerciais internacionais em matéria de compra e venda de mercadorias

31/3/2016

A Convenção de Viena para Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), integrada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do decreto legislativo 538/12, é o marco normativo fundamental a reger as transações comerciais internacionais em matéria de compra e venda de mercadorias.

A CISG contém normas que dirigem a interpretação da própria Convenção, de modo a assegurar o atendimento de suas finalidades, evitando um esfacelamento hermenêutico que colocaria em xeque sua própria eficácia como instrumento gerador de segurança jurídica nos contratos internacionais.

Nesse sentido, o comando do artigo 5º da CISG impõe ao intérprete postura hermenêutica que assegure, na interpretação da Convenção, o seu “caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação”.

Tanto o caráter internacional quanto a pretensão de uniformidade são temas que demandam reflexão sobre seus limites e possibilidades. De um lado, é necessário compreender a extensão do que se pode qualificar como “caráter internacional”; de outro, é necessário, ao mesmo tempo em que se afirma o escopo de uniformização, reconhecer os seus limites.

Principie-se pelo exame daquilo que pode ser entendido como caráter internacional. Destinando-se à regulação de contratos internacionais de compra e venda de mercadorias, a CISG tem o claro escopo de mitigar as dificuldades derivadas de controvérsias sobre o Direito aplicável aos contratos à luz do Direito Internacional Privado – e a insegurança jurídica daí derivada -, bem como facilitar o trânsito jurídico das mercadorias em um contexto de mercado regido pelas mesmas regras, sem sujeição de um contratante às peculiaridades do direito interno da outra parte. Tudo isso visa a garantir segurança e previsibilidade, facilitando as trocas, com menor custo de transação.

A aplicação da CISG não deve, pois, ser dirigida pela ratio do Direito Privado interno de cada país. Há conceitos na Convenção que são opções próprias desse diploma internacional, como o fundamental breach of contract, ou a figura da desconformidade das mercadorias que não devem ser interpretados a partir das regras gerais de inadimplemento, violação positiva da obrigação ou de vícios do produto dos países signatários, mas, sim, à luz da racionalidade própria da CISG.

Os elementos integrativos eventualmente necessários para a aplicação das normas da Convenção devem ser buscados na experiência internacional, seja em decisões que dão concretude aos conceitos da CISG, seja ao próprio costume internacional, restando ao direito interno apenas o suprimento de lacunas que não sejam passíveis de colmatação por meio do recurso aos princípios gerais que regem a Convenção.

Também deve ser critério de interpretação da CISG, coerente com seu caráter internacional, a proteção aos direitos humanos. O conceito de desconformidade das mercadorias, por exemplo, deve ser lido em congruência com a proteção de tais direitos pela comunidade internacional, de modo a não se admitir conformidade, por exemplo, quando da entrega de produtos produzidos com trabalho infantil, ou, ainda, trabalho escravo.

Outra consequência do caráter internacional da Convenção é que a sua interpretação deve ser coerente com a origem e os propósitos de sua constituição pela UNCITRAL, como ente integrante das Nações Unidas. A CISG não é neutra. Seu telos é direcionado ao desenvolvimento dos países por meio do comércio internacional, devendo tal desenvolvimento ser compreendido não apenas como incremento das relações econômicas, mas, sobretudo, como promoção de desenvolvimento humano.

O escopo de uniformização da interpretação da CISG complementa o comando que visa a assegurar a interpretação consoante o caráter internacional da Convenção. Com efeito, assegurar quer a interpretação não se aprisione às regras gerais sobre contratos e obrigações do direito interno dos países, mas, sim, esteja vinculada a uma ratio própria da Convenção e do comércio internacional pressupõe que a leitura das normas da CISG e sua aplicação aos contratos seja comum a todos os países signatários.

A uniformização, porém, deve ser lida como uma postura metodológica que se impõe ao intérprete, e não como dogma.

É que a realidade do comércio internacional entre agentes de diferentes países signatários, por mais que se busque assegurar o caráter internacional da interpretação, pode conduzir a conclusões díspares. Tais conclusões, ressalte-se, não decorrem necessariamente de equivocada submissão da interpretação da CISG aos preceitos gerais sobre direito das obrigações no Direito interno dos países, mas, sim, de diferentes percepções, conforme o tempo e lugar, sobre o que se deve entender como parâmetro próprio das transações internacionais.

O recurso à lex mercatoria, por exemplo, nem sempre será eficaz, pois há, em diferentes tradições jurídicas, compreensões díspares sobre o que integra e sobre o que está excluído do seu âmbito – e o princípio da boa-fé objetiva é apenas um dos possíveis exemplos dessa cizânia. 

Ademais, há limites que podem ser impostos pelas próprias ordens constitucionais dos diferentes países. Na realidade brasileira, tanto o caráter internacional como a postura hermenêutica visando à uniformização são coerentes com a própria Constituição, que impõe aos agentes estatais o respeito aos Tratados e Convenções Internacionais.

É certo, porém, que em dados casos concretos, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas – o que pode implicar, inclusive, a incidência, ainda que devidamente baliza e não paternalista do princípio igualdade material – pode significar exceção à aplicação uniforme das normas da Convenção, ainda que isso ocorra em casos pontualíssimos. Com efeito, a mesma Constituição que serve de fundamento ao atendimento da regra de uniformização, pode, excepcionalmente, vir a afastá-la.

De qualquer sorte, a higidez do comando de uniformização é a regra, constituindo desafio aos aplicadores da CISG identificar parâmetros adequados para atender à postura metodológica que a eles se impõe, no desafio hermenêutico trazido pelo artigo 5º da Convenção. 

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*Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk é sócio fundador do escritório Fachin Advogados Associados e professor da Universidade Federal do Paraná e da PUC-PR.

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