Juízes, cinema e espiritualidade
Adauto Suannes*
Há, por outro lado, um indisfarçado medo desse conteúdo religioso da atividade judicial, que está presente até mesmo na referência à busca do Santo Graal da “verdade real” (quid est veritas?, indagava um colega deles há tantos séculos) e na utilização leviana de um atributo exclusivo do Criador: a justiça (um administrador público ter de aguardar 36 anos para ter uma decisão definitiva em um processo em que é acusado de malversação de dinheiro público é muito mais do que uma caricatura de justiça, não pela decisão em si, inquestionável pela autoridade de que promana, mas pelo incrível tempo de espera). Medo incompreensível se considerarmos que a religião (religação) nos cerca, quer queiramos vê-la quer não, visto não estar ela separada da própria vida, como nos mostra diuturnamente o cinema, por exemplo.
Recordo, antes de tudo, que há muitos anos foi por aqui exibido o filme “O Destino do Poseidon” (The Poseidon Adventure). O filme é considerado pelos críticos apenas como o primeiro filme do gênero disaster movie, que teve no Titanic, com todos os efeitos especiais cabíveis, o seu auge. Eu, de mim, como sempre buscava nos filmes algo mais do que a primeira impressão ou o mero divertimento, via nele uma narrativa bíblica, menos pelo fato de o nome do navio corresponder ao nome grego do deus do mar. Revendo-o hoje, penso que não estava errado em minha leitura de entrelinhas: logo no início do filme, dois padres discutem até onde a vontade humana deve submeter-se cegamente à vontade de Deus. O mais velho é do tipo tradicional, “orar e confiar”, ao passo que o mais novo, o reverendo Frank Scott, interpretado por Gene Hackman, se classificaria ativista (progressista, como depreciativamente querem alguns conservadores), aquele que vai à rua fazer a história. Ao longo do filme isso me pareceu bastante claro: a maioria procura a salvação indo para um lado, enquanto a minoria, confiando no seu líder, segue o caminho oposto; há uma madalena arrependida; há o batismo na imersão na água; há o discurso escatológico do reverendo, semelhante ao clássico “Pai, por que me abandonaste?”; e há a salvação pelos anjos, que descem de helicóptero e levam os escolhidos para o alto (o céu). Quando ouviu essa minha interpretação, o Ercílio, que havia visto o tal filme, exclamou: “mas esse é outro filme!”
Com tantos filmes sempre me ocorreu o mesmo: enquanto a maioria dos meus amigos limitava-se a uma leitura linear deles, eu buscava quase sempre uma possível segunda leitura, uma mensagem subliminar que o realizador estava tentando passar ao espectador, ou que, quem sabe?, ali teria sido posta por artes das forças cósmicas, se é que isso existe. O silêncio da maioria dos críticos a respeito dessa leitura subterrânea de obras cinematográficas (ao contrário do que ocorre com as obras literárias e teatrais, por exemplo) jamais me abalou. Houvesse abalado e eu estaria resgatado quando Joseph Campbell, o notável estudioso da Mitologia de nosso tempo, assistindo à trilogia “Guerra nas Estrelas” (Stars War), de George Lucas, viu ali algo mais do que um filme de aventuras, indo além do que disseram os críticos cinematográficos. “Guerra nas Estrelas possui uma perspectiva mitológica válida.” O filme encara o Estado como uma máquina e por isso a pergunta: “A máquina vai esmagar a humanidade ou vai colocar-se a seu serviço?”, diz o celebrado mitólogo. Aliás, o próprio Lucas não escondeu jamais essa inspiração, bastando ver sua entrevista que vem no DVD daquela trilogia.
Pulo para o século XXI e falo de um filme extraordinário, mais uma vez lido superficialmente pela crítica especializada: “Três enterros” (The Three Burials of Melquiades Estrada), dirigido magistralmente por Tommy Lee Jones, esnobado pela Academia de Cinema, embora reconhecido pelo Festival de Cannes como uma extraordinária obra cinematográfica, premiando o roteiro de Aguinaldo Arriaga e a magistral interpretação de Lee Jones.
De que trata o filme? Simplesmente da falibilidade humana (pecado) e da possibilidade da redenção pelo sofrimento (penitência). Tommy é Peter, nome que diz muito para os cristãos e que não lhe teria sido posto naquela história por mera coincidência. Seu amigo Melquíadas (Melquíades foi Papa de 311 a 314, tendo a particularidade de haver nascido na África e haver convivido com o imperador Constantino, aquele que teria tido a visão do in hoc signo vinces, graças ao qual liberou o cristianismo em Roma) é um mexicano que vive no exílio, tal como os judeus levados para o Egito. Tem a suavidade de um São João e um desprendimento evangélico, como ao dizer que o seu cavalo era também cavalo de seu amigo Pedro (curioso: em 1982, no livro “Cristo Hoje”, eu falo desse mesmo desprendimento num conto chamado Tomé, que, seguramente, não foi lido pelo autor do roteiro do filme ...). Morto Melquíades, insta dar-lhe um sepultamento cristão, tal como se fizera com o próprio Cristo, envoltos ambos em panos, na melhor tradição judaica. E aí ocorre a grande travessia (Páscoa ou Pessah é a saída da escravidão em busca da Terra Prometida, que, no dizer de Joseph Campbell, não é um lugar físico mas um lugar espiritual), com seus elementos clássicos: o deserto (lugar em que, ainda de acordo com Campbell, inspirado em Jung, o ser humano atinge o self, aquele sanctus sanctorum interior, ali onde habita o Espírito, sendo o corpo humano o verdadeiro Templo de Deus, como dizia o próprio Cristo, que, por sinal, desfrutou desse deserto purificador), o batismo de conversão (a belíssima cena em que o pecador é arrastado por dentro do rio, banhando-se nas águas lustrais), a picada da cobra (o simbolismo que envolve a cobra é vasto, indo desde a primária representação do demônio edênico até a simbolização da própria vida, pois tal como a cobra troca de casca, assim o ser humano deve deixar para trás o passado imprestável, vivendo o presente com uma capa nova, a significar a conversão, a de-rota, ou caminho aberto através das dificuldades, como está dito nos bons dicionários) e a terra prometida (a casa confortável, o jardim maravilhoso, o riacho e tudo o mais que representaria, para Melquíades, o paraíso, não existia fisicamente, mas existia na esperança dele, que é respeitada por Pedro, que ali vem a enterrá-lo, em uma cerimônia pungente, na qual não falta o altar, com a fotografia da “família” do falecido ali colocada em local de destaque). E a conversão, o verdadeiro arrependimento do pecador, numa interpretação emocionante do canadense Barry Peper, ao fim do qual Pedro, com seu penetrante olhar, diz algo como: “vá em paz, e não tornes a pecar”. E o convertido, cuja mudança de expressão facial é extraordinária, despede-se de quem o chamou de “filho” desejando-lhe que também vá em paz, em seu solitário caminhar.
Quantos de nós espectadores, quantos juízes não teríamos matado aquele pecador, invocando a lei, que estava no Velho Testamento, o olho por olho? O diretor, porém, vai além dele e, numa visão neotestamentária, acredita na redenção, de que se tornou Pedro o agente. Não vim para revogar a lei, mas para aperfeiçoá-la.
Como diria o Mestre, quem tiver olhos para ver e ouvidos para ouvir vá ao cinema ver essa imperdível epifania.
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*Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família)
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