Migalhas de Peso

O STF e a ameaça ao princípio da presunção de inocência

O texto constitucional é claro no sentido de que a sentença condenatória só pode ser executada depois do seu trânsito em julgado, ou seja, quando não exista mais possibilidade de recurso.

28/3/2016

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 126.292, ocorrido no dia 17 do mês passado, decidiu, por maioria de votos (7 a 4), ser possível a execução da pena depois de decisão condenatória confirmada em segunda instância, alterando o até então entendimento da Corte de que a sentença só poderia ser executada após o trânsito em julgado da condenação.

O relator, Ministro Teori Zavascki, argumentando no sentido da mudança da jurisprudência e de que a execução da decisão condenatória confirmada em segunda instância, ainda que sujeita a recurso especial ou extraordinário, não comprometeria o princípio constitucional da presunção de inocência, asseverou em seu voto que:

“(...), a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias. (...) Nesse quadro, cumpre ao Poder Judiciário e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal, garantir que o processo - único meio de efetivação do jus puniendi estatal -, resgate essa sua inafastável função institucional. A retomada da tradicional jurisprudência, de atribuir efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário (como, aliás, está previsto em textos normativos) é, sob esse aspecto, mecanismo legítimo de harmonizar o princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado.

Não se mostra arbitrária, mas inteiramente justificável, a possibilidade de o julgador determinar o imediato início do cumprimento da pena, inclusive com restrição da liberdade do condenado, após firmada a responsabilidade criminal pelas instâncias ordinárias. (...) Sustenta-se, com razão, que podem ocorrer equívocos nos juízos condenatórios proferidos pelas instâncias ordinárias. Isso é inegável: equívocos ocorrem também nas instâncias extraordinárias. Todavia, para essas eventualidades, sempre haverá outros mecanismos aptos a inibir consequências danosas para o condenado, suspendendo, se necessário, a execução provisória da pena. Medidas cautelares de outorga de efeito suspensivo ao recurso extraordinário ou especial são instrumentos inteiramente adequados e eficazes para controlar situações de injustiças ou excessos em juízos condenatórios recorridos. Ou seja: havendo plausibilidade jurídica do recurso, poderá o tribunal superior atribuir-lhe efeito suspensivo, inibindo o cumprimento de pena. Mais ainda: a ação constitucional do habeas corpus igualmente compõe o conjunto de vias processuais com inegável aptidão para controlar eventuais atentados aos direitos fundamentais decorrentes da condenação do acusado. Portanto, mesmo que exequível provisoriamente a sentença penal contra si proferida, o acusado não estará desamparado da tutela jurisdicional em casos de flagrante violação de direitos”.

Tal entendimento foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.

A divergência foi inaugurada pela Ministra Rosa Weber, sendo seguida pelos Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski que, em seus votos, mantiveram o entendimento até então prevalente de que a sentença condenatória somente poderia ser executada após seu trânsito em julgado.

O Ministro Celso de Mello, ao se pronunciar sobre a questão, enfatizou que:

“(...) o Supremo Tribunal Federal há de possuir a exata percepção de quão fundamentais são a proteção e a defesa da supremacia da Constituição para a vida do País, a de seu povo e a de suas instituições. A nossa Constituição estabelece, de maneira muito nítida, limites que não podem ser transpostos pelo Estado (e por seus agentes) no desempenho da atividade de persecução penal. Na realidade, é a própria Lei Fundamental que impõe, para efeito de descaracterização da presunção de inocência, o trânsito em julgado da condenação criminal. Veja-se, pois, que esta Corte, no caso em exame, está a expor e a interpretar o sentido da cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência, tal como esta se acha definida pela nossa Constituição, cujo art. 5º, inciso LVII (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente perderá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. É por isso que se mostra inadequado invocar-se a prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França, entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa, não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal. Mais intensa, portanto, no modelo constitucional brasileiro, a proteção à presunção de inocência. Quando esta Suprema Corte, apoiando-se na presunção de inocência, afasta a possibilidade de execução antecipada da condenação criminal, nada mais faz, em tais julgamentos, senão dar ênfase e conferir amparo a um direito fundamental que assiste a qualquer cidadão: o direito de ser presumido inocente até que sobrevenha condenação penal irrecorrível. Tenho para mim que essa incompreensível repulsa à presunção de inocência, Senhor Presidente, com todas as gravíssimas consequências daí resultantes, mergulha suas raízes em uma visão absolutamente incompatível com os padrões do regime democrático”.

Ainda que alguns entendam que a nova orientação do Supremo Tribunal Federal constitua um avanço no combate à “impunidade” e sirva como instrumento para a “redução da criminalidade”, percebe-se que a modificação do entendimento até então prevalente constitui um verdadeiro ataque à garantia fundamental da presunção de inocência, sendo, assim, um retrocesso lamentável.

De fato, o texto constitucional é claro no sentido de que a sentença condenatória só pode ser executada depois do seu trânsito em julgado, ou seja, quando não exista mais possibilidade de recurso. Assim, se há recurso pendente de julgamento, a decisão, ainda que confirmada em segunda instância, não transitou em julgado e, portanto, não há possibilidade punição do autor do fato, que ainda deve ser presumido inocente!

A referida mudança de entendimento se trata de verdadeiro “malabarismo hermenêutico” do Supremo Tribunal Federal que, lamentavelmente, parece ter deixado de lado a defesa da Constituição Federal e do Estado Democrático de Direito para atender os conclames das ruas, proferindo decisões com nítido fundamento político e casuístico.

Claramente trata-se de um retumbante erro histórico do Supremo Tribunal Federal cujos impactos poderão ser severos (o aumento da população carcerária fatalmente será um deles) e, portanto, como sugerido por Alexandre Morais da Rosa, “nós devemos guardar os nomes daqueles que fizeram essa revisão para que a história possa um dia julgá-los como sujeitos que inverteram a lógica de uma democracia construída com ferro e fogo.”

Por fim, pertinente se revela a advertência de José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, presidente do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil:

“A ausência de espírito público e a avassaladora crise de legitimidade dos Poderes Executivo e Legislativo não autorizam o Poder Judiciário, numa semana, reinterpretar o comando constitucional para determinar a prisão antes do trânsito em julgado (...). A história está farta de episódios demonstrando que não se combatem excessos com restrição à liberdade”.

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*Hassan Magid de Castro Souki é advogado do escritório Homero Costa Advogados.


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