1. Noção e finalidades
O amicus curiae (art. 138 do CPC/2015) é terceiro admitido no processo para fornecer subsídios instrutórios (probatórios ou jurídicos) à solução de causa revestida de especial relevância ou complexidade, sem, no entanto, passar a titularizar posições subjetivas relativas às partes – nem mesmo limitada e subsidiariamente, como o assistente simples. Auxilia o órgão jurisdicional no sentido de que lhe traz mais elementos para decidir. Daí o nome de “amigo da corte”.
O amicus curiae não assume a condição de parte. E sua intervenção não se fundamenta no interesse jurídico na vitória de uma das partes, diferenciando-se, sob esse aspecto inclusive da assistência. Por isso, ele não assume poderes processuais sequer para auxiliar qualquer das partes. Ainda que os seus poderes sejam definidos em cada caso concreto pelo juiz (art. 138, § 2º, do CPC/2015), na essência serão limitados à prestação de subsídios para a decisão
A participação do amicus curiae, com o fornecimento de subsídios ao julgador, contribui para o incremento de qualidade das decisões judiciais. Amplia-se a possibilidade de obtenção de decisões mais justas – e, portanto, mais consentâneas com a garantia da plenitude da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF/1988). Por outro lado, sobretudo nos processos de cunho precipuamente objetivo (ações diretas de controle de constitucionalidade; mecanismos de resolução de questões repetitivas etc.), a admissão do amicus é um dos modos de ampliação e qualificação do contraditório (art. 5º, LV, da CF/1988).
O ingresso do amicus curiae no processo pode derivar de pedido de uma das partes ou do próprio terceiro. Pode também ser requisitado de ofício pelo juiz. Portanto, essa é uma modalidade de intervenção que tanto pode ser espontânea (voluntária) quanto provocada (coata).
2. A regra geral e a previsão em normas esparsas
Diversas regras contidas em leis esparsas preveem hipóteses de intervenção que se enquadram na moldura geral do amicus curiae: art. 32 da Lei 4.726/1965 (Junta Comercial); Lei 6.385/1976 (Comissão de Valores Mobiliários – CVM); art. 7º, § 2º, da Lei 9.868/1999 (ADI); art. 6º, § 1º, da Lei 9.882/1999 (ADPF); art. 14, § 7º, da Lei 10.259/2001 (Juizados Especiais Federais); art. 3º, § 2º, da Lei 11.417/2006 (Súmula Vinculante); art. 118 da Lei 12.529/2011 (CADE); art. 896-C, § 8º, da CLT, acrescido pela Lei 13.015/2014 (recursos de revista repetitivos).
Não há identidade absoluta entre os regimes jurídicos extraíveis das disposições ora citadas. Mas de todas extrai-se um núcleo comum: permitir a colaboração processual de um terceiro, que nem por isso passa a titularizar posições jurídico-processuais de parte. O art. 138 do CPC/2015 aplica-se a todas elas subsidiariamente.
O próprio CPC/2015 possui outras regras que tratam de hipóteses específicas de intervenção de amicus curiae, que também devem ser coordenadas com a norma geral do art. 138: art. 927, § 2º (alteração de entendimento sumulado ou adotado em julgamento por amostragem); arts. 950, §§ 2º e 3º (incidente de arguição de inconstitucionalidade); art. 983 (incidente de resolução de demandas repetitivas); art. 1.035, § 4º (repercussão geral); art. 1.038, I (recursos especiais e extraordinários repetitivos).
3. Cabimento formal e momento da intervenção
Trata-se de modalidade interventiva admissível em todas as formas processuais e tipos de procedimento.
A atuação do amicus curiae, dada sua limitada esfera de poderes (e, consequentemente, sua restrita interferência procedimental), é cabível inclusive em procedimentos especiais regulados por leis esparsas em que se veda genericamente a intervenção de terceiros. Tal proibição deve ser interpretada como aplicável apenas às formas de intervenção em que o terceiro torna-se parte ou assume subsidiariamente os poderes da parte. Assim, cabe ingresso de amicus em processo do juizado especial, bem como no mandado de segurança.
Em tese, admite-se a intervenção em qualquer fase processual ou grau de jurisdição. A lei não fixa limite temporal para a participação do amicus curiae. A sua admissão no processo é pautada na sua aptidão em contribuir. Assim, apenas reflexamente a fase processual é relevante: será descartada a intervenção se, naquele momento, a apresentação de subsídios instrutórios fáticos ou jurídicos já não tiver mais nenhuma relevância.
4. Pressupostos objetivos
A intervenção do amicus curiae cabe quando houver “relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia” (art. 138, caput, do CPC/2015). As regras especiais dessa intervenção, acima enumeradas, não exaurem as hipóteses objetivas de cabimento, mas servem para ilustrá-las.
São duas as balizas: por um lado a especialidade da matéria, o seu grau de complexidade; por outro, a importância da causa, que deve ir além do interesse das partes, i.e., sua transcendência, repercussão transindividual ou institucional. São requisitos alternativos (“ou”), não necessariamente cumulativos: tanto a sofisticação da causa quanto sua importância ultra partes (i.e., que vá além das partes) pode autorizar, por si só, a intervenção. De todo modo, os dois aspectos, em casos em que não se põem isoladamente de modo tão intenso, podem ser somados, considerados conjuntamente, a fim de viabilizar a admissão do amicus.
A complexidade da matéria justificadora a participação do amicus tanto pode ser fática quanto técnica, jurídica ou extrajurídica.
A importância transcendental da causa pode pôr-se tanto sob o aspecto qualitativo (“relevância da matéria”) quanto quantitativo (“repercussão social da controvérsia”). Por vezes, a solução da causa tem repercussão que vai muito além do interesse das partes porque será direta ou indiretamente aplicada a muitas outras pessoas (ações de controle direto, processos coletivos, incidentes de julgamento de questões repetitivas ou mesmo a simples formação de um precedente relevante etc.). Mas em outras ocasiões, a dimensão ultra partes justificadora da intervenção do amicus estará presente em questões que, embora sem a tendência de reproduzir-se em uma significativa quantidade de litígios, versam sobre temas fundamentais para a ordem jurídica. Imagine-se uma ação que versa sobre a possibilidade de autorizar-se uma transfusão sanguínea para uma criação mesmo contra a vontade dos pais dela. O caso, em si, concerne a pessoas específicas e determinadas, mas envolve valores jurídicos fundamentais à ordem constitucional (direito à vida, liberdade religiosa, limites do direito à intimidade etc.). Em uma causa como essa, é justificável a intervenção de amici curiae, que poderão contribuir sob vários aspectos (médicos, filosóficos, religiosos...).
5. Pressupostos subjetivos
Podem ser amici curiae tanto pessoas naturais quanto jurídicas – e, nesse caso, tanto entes públicos como privados; entidades com ou sem fins lucrativos. Mesmos órgãos internos a outros entes públicos podem em tese intervir nessa condição.
O elemento essencial para admitir-se o terceiro como amicus é sua potencialidade de aportar elementos úteis para a solução do processo ou incidente. Essa demonstração faz-se pela verificação do histórico e atributos do terceiro, de seus procuradores, agentes, prepostos etc. A lei aludiu a “representatividade adequada”. Mas não se trata propriamente de uma aptidão do terceiro em representar ou defender os interesses de jurisdicionados. Não há na hipótese representação nem substituição processual. A expressão refere-se à capacitação avaliada a partir da qualidade (técnica, cultural...) do terceiro (e de todos aqueles que atuam com ele e por ele) e do conteúdo de sua possível colaboração (petições, pareceres, estudos, levantamentos etc.). A “representatividade” não tem aqui o sentido de legitimação, mas de qualificação. Pode-se usar aqui um neologismo, à falta de expressão mais adequada para o exato paralelo: trata-se de uma contributividade adequada (adequada aptidão em colaborar).
A existência de interesse jurídico ou extrajurídico do terceiro na solução da causa não é um elemento relevante para a definição do cabimento de sua intervenção como amicus curiae. O simples fato de o terceiro ter interesse na solução da causa não é fundamento para permitir sua intervenção como amicus curiae. Mas, por outro lado, o seu eventual interesse no resultado do julgamento também não é, em si, óbice a que intervenha em tal condição. O que importa é a sua capacidade de contribuir com o Judiciário. E é frequente que a existência de um interesse na questão discutida no processo faça do terceiro alguém especialmente qualificado para fornecer subsídios úteis. Não é incomum, por exemplo, que determinada entidade de classe, precisamente porque seus membros têm interesse na definição da interpretação ou validade de certa norma, promova diversos simpósios, estudos, levantamentos ou obtenha pareceres de especialistas sobre o tema. Todo esse acervo – nitidamente formado a partir de interesses específicos da entidade e seus integrantes – tende a ser muito útil à solução do processo. Caberá ao julgador aproveitá-lo, filtrando eventuais desvios ou imperfeições.
6. Irrecorribilidade da decisão sobre o ingresso de amicus curiae
A decisão que determina de ofício ou defere ou indefere o pedido de intervenção do amicus curiae é irrecorrível (art. 138, caput, do CPC/2015). Trata-se de exceção à regra do art. 1.015, IX, do CPC/2015 (segundo a qual cabe agravo de instrumento contra decisão sobre intervenção de terceiro).
Mas a proibição recursal não deve ser aplicada aos embargos de declaração, que se destinam meramente a esclarecer ou complementar a decisão.
7. Os poderes do amicus curiae
O juiz, ao admitir ou solicitar a participação do amicus curiae, determinará concretamente os poderes que lhe são conferidos (art. 138, § 2º, do CPC/2015).
Mas há uma gama mínima de poderes já estabelecida em lei: possibilidade de manifestação escrita em quinze dias (art. 138, caput, do CPC/2015); legitimidade para opor embargos declaratórios (art. 138, § 1º, do CPC/2015); possibilidade de sustentação oral e legitimidade recursal nos julgamentos de recursos repetitivos (art. 138, § 3º, do CPC/2015).
Há também limites máximos: ressalvadas as duas exceções acima mencionadas, o amicus curiae não tem poderes para recorrer das decisões no processo (art. 138, § 1º, do CPC/2015); ele também não detém outros poderes em grau equivalente aos das partes; seus argumentos devem ser enfrentados pela decisão judicial (arts. 489, § 1º, IV, 984, § 2º, e 1.038, § 3º, do CPC/2015).
Dentro desses limites mínimo e máximo, cumpre ao juiz concretamente definir a intensidade da atuação processual do amicus curiae.
Como indicado, a lei proíbe expressamente o amicus curiae de interpor recursos no processo (exceção feita a embargos declaratórios e à impugnação de decisões tomadas no julgamento de causas e recursos repetitivos). Todavia, não é de se descartar que se profiram decisões diretamente gravosas à esfera jurídica do amicus curiae (p. ex., o juiz o condena em litigância de má-fé ou determina que ele arque com verbas de sucumbência no processo). Uma vez que não cabe recurso contra eles, o amicus poderá valer-se do mandado de segurança (art. 5º, LXIX, da CF/1988; art. 5º, II, da Lei 12.016/2009, a contrario sensu).
8. Não atingimento pela coisa julgada
Precisamente porque exerce faculdades limitadas no processo, não assumindo a condição de parte, o amicus curiae não se submete à autoridade da coisa julgada (art. 506, do CPC/2015). Não se sujeita sequer ao efeito da assistência simples (art. 123, do CPC/2015), por não assumir nem mesmo subsidiariamente a gama de direitos atribuída às partes.
9. Ausência de modificação de competência
A intervenção do amicus curiae não importa alteração de competência (art. 138, § 1º, do CPC/2015). Assim, quando uma pessoa de direito público, órgão ou empresa pública federal ingressa como amicus em processo em trâmite na Justiça estadual, a competência não se deslocará para a Justiça Federal. Dado o papel processual restrito do amicus, não se aplicam à hipótese o art. 109, I, da CF/1988 e o art. 45 do CPC/2015.
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*O presente texto constitui síntese do que expus em “Amicus curiae – comentários aos art. 138 do CPC”, em Breves comentários ao novo CPC (orga. Teresa Wambier, F. Didier Jr., E. Talamini e B. Dantas), São Paulo, Ed. RT, 2015, p. 438-445.
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