O novo CPC, ao tratar do Direito Processual Civil Internacional, perdeu a oportunidade de sistematizar e integrar regras esparsas, consolidando no plano normativo entendimento firmado na jurisprudência, tendo sido bastante tímido ao dispor sobre a resolução de litígios transnacionais.
A “globalização”, termo tão em moda no início da década de 90 para descrever a intensificação da integração econômica, social, cultural e política entre os países, viabilizada pela universalização do acesso a meios de transporte e comunicação, hoje, em tempos de smartphones, internet móvel, mídias sociais e intenso comércio eletrônico, já pode ser considerado um termo “datado”. Afinal, as transações internacionais são hoje tão frequentes quanto negócios nacionais, a interação com estrangeiros se dá com facilidade muito semelhante ao contato com nacionais e tudo está à distância de um clique no mouse do computador ou na tela do telefone.
Com a mesma velocidade e frequência em que ocorrem os negócios e estas interações, surgem os “problemas” relacionados a estes eventos, ou, falando de modo mais técnico, os atos ou fatos com repercussão jurídica internacional. Os casos de litígios transnacionais, ou seja, aqueles que envolvem pessoas de diferentes países ou se desenvolvem em múltiplas jurisdições, são já há algumas décadas bastante frequentes, não mais mera especulação acadêmica.
Embora ninguém seja capaz de negar a importância de se estabelecerem regras para a solução de tais litígios, o Direito Processual Civil, historicamente, dá pouca (e por vezes nenhuma) importância para sua vertente internacional. A tradição brasileira, até hoje observada nos bancos acadêmicos, é de deixar ao Direito Internacional Privado o estudo não apenas dos conflitos de normas, mas, também, das matérias processuais relacionadas à solução de litígios transnacionais. Nesse sentido, é nos manuais de Direito Internacional Privado que normalmente se encontram explicações sobre as normas e regras relacionadas a competência internacional, homologação e execução de sentenças judiciais e arbitrais estrangeiras, condição processual do estrangeiro e processamento de cartas rogatórias.
No plano normativo, as regras de Direito Processual Internacional, tradicionalmente, se encontram dispostas na Lei de Introdução ao Código Civil (agora denominada “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”) e no Regimento Interno e Resoluções dos Tribunais Superiores (STJ e STF). O CPC de 1939, por exemplo, trazia pouquíssimas disposições sobre questões de processo civil internacional, tendo sido realizadas tentativas, que não prosperaram, de criação de um diploma normativo específico sobre a matéria, o “Código de Aplicação das Normas Jurídicas”.
No CPC de 1973 o processo civil internacional é tratado de forma bastante superficial: três artigos para regular a competência internacional (88 a 90), dois artigos sobre cartas rogatórias (210 e 211), um artigo sobre a aplicação do direito estrangeiro pelo Juiz brasileiro (337), três artigos sobre homologação de sentenças estrangeiras (483 e 484), um artigo sobre a execução de títulos extrajudiciais estrangeiros (585, § 2º) e um artigo sobre a necessidade de prestação de caução pelo demandante estrangeiro (835). Um total de dez artigos dos 1.220 do CPC.
Para não limitar a análise a um critério quantitativo, que poderia soar superficial, sob o ponto de vista qualitativo as regras do CPC não têm melhor sorte. Os três artigos sobre competência internacional são reprodução de dispositivos do CPC português e do CPC italiano, que já foram revogados há duas décadas, com regras anacrônicas como a da inexistência de litispendência internacional. O artigo solitário que trata dos títulos executivos extrajudiciais, ao indicar os dois pressupostos de executoriedade (obedecer os requisitos de formação da lei de origem e indicar o Brasil como lugar de cumprimento da obrigação), traz mais dúvidas do que soluções, tornando extremamente arriscado ao credor estrangeiro promover a execução de seu crédito no Brasil.
Já quanto às cartas rogatórias e processos de homologação de sentenças judiciais e arbitrais estrangeiras, a matéria é quase que na sua integralidade relegada aos atos infralegais expedidos pelos Tribunais Superiores, o que, além de caracterizar técnica de duvidosa constitucionalidade (afinal, mais do que regras de procedimento, tais atos criam normas processuais, o que nossa Constituição reserva a leis federais), traz certa insegurança aos jurisdicionados, haja vista a frequência com que tais atos são alterados por Resoluções e Portarias e, também, pela forma com que os Tribunais Superiores, ao decidir questões relacionadas a estes temas, criam soluções de comodidade, como ocorre com o entendimento de que o réu brasileiro, ao impugnar o exequatur de uma carta rogatória, “comparece espontaneamente” aos autos e já sai citado para responder a demanda estrangeira.
Nesse contexto, o novo CPC (“NCPC”), que poderia trazer segurança e modernidade para o Direito Processual Civil Internacional, sistematizando e integrando regras esparsas, consolidando no plano normativo entendimento firmado na jurisprudência, e superando a reprodução preguiçosa de dispositivos estrangeiros já revogados, foi bastante tímido.
No NCPC, as regras de competência internacional pouco mudaram, tendo sido, de relevante, introduzido o conceito de competência concorrente quando o réu “mantiver vínculos no Brasil” (artigo 22), reproduzindo, em alguma medida, o conceito de minimum contacts do Direito Norte-Americano, além de positivar a regra de possibilidade de eleição de foro estrangeiro, com a possibilidade de exclusão da jurisdição nacional (artigo 25).
Já quanto às cartas rogatórias, o legislador do novo CPC foi generoso do ponto de vista quantitativo, destinando 16 artigos (26 a 41) para tratar da “cooperação internacional”, englobando tanto as cartas rogatórias quanto os pedidos de auxílio direto, e 6 artigos para a homologação de sentenças estrangeiras (960 a 965). De relevante, destaca-se a previsão expressa de cartas rogatórias para cumprimento de decisões interlocutórias estrangeiras e a incorporação de algumas regras já existentes no Regimento Interno e em resolução do STJ (às quais o CPC continua a reservar a possibilidade de normatizar a matéria).
Já quanto à condição processual do estrangeiro, com a previsão de caução para o demandante, é mera repetição, sem alteração relevante, do CPC anterior (artigo 83), a exemplo do que ocorre com a aplicação do direito estrangeiro pelo Juiz brasileiro (artigo 376) e com a regra sobre execução de títulos extrajudiciais estrangeiros (artigo 784).
Desta forma, verifica-se que, se o “passado” do processo civil internacional no Brasil era de escassa regulamentação, e se o “presente” (CPC de 1973) é de pouca evolução, o “futuro”, no NCPC, também não é muito animador. O Direito Processual Civil Internacional continua uma matéria maltratada pela doutrina e mal resolvida pela jurisprudência, não obstante sua grande (e crescente) importância nas relações jurídicas, cada vez mais internacionalizadas.
Nossa proposta, na série de breves artigos que serão apresentados, é de tratar de algumas das principais questões relativas ao processo civil internacional, a fim de colaborar com a solução de litígios transnacionais, tanto para os advogados, na atuação preventiva e na estruturação de estratégias processuais, quanto para os aplicadores do direito, na resolução deste tipo de conflito, cada vez mais comum.
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*Marco Gasparetti é sócio da área de Contencioso Cível de Mundie e Advogados.
**O presente artigo foi escrito e divulgado apenas para fins informativos e de debate, não constituindo orientação jurídica nem podendo ser interpretado como opinião legal ou posicionamento oficial do escritório sobre a matéria.