Migalhas de Peso

Jurisprudência comentada (ADPF 77): o debate judicial sobre a disciplina jurídica da moeda como padrão de valor

Mais do que a fuga em direção a argumentos de processo, o STF deveria contribuir para a construção de um sistema jurídico da moeda por meio da decisão final da ADPF.

25/2/2016

Resumo: A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 77, até o momento apreciada em medida cautelar pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tem como objeto uma controversa medida de estabilização monetária prevista pelo Plano Real, em 1994. Essa medida estabeleceu uma regra de transição para o cálculo da variação monetária de obrigações jurídicas durante a introdução da nova moeda, o Real. No entanto, a despeito da importância socioeconômica dessa decisão judicial, o STF parece estar preocupado sobretudo com questões processuais. Mais do que a fuga em direção a argumentos de processo, menos controversos socialmente, o STF deveria contribuir para a construção de um sistema jurídico da moeda por meio da decisão final da ADPF 77. O presente artigo procura identificar os contornos do direito na estruturação do poder monetário durante os planos de estabilização, no intuito de contribuir para ampliar a reflexão pública sobre esse caso. Em primeiro lugar, entendo que a lei, confeccionada para regular o poder jurídico liberatório, compreende tanto a moeda enquanto meio de pagamento como padrão de valor. A moeda é crédito e tem caráter híbrido, isto é público e privado. Para assegurar sua demanda social e o fornecimento desse bem público na economia, o Estado disciplina seu valor em obrigações jurídicas públicas e privadas. É o cerne do regime jurídico da moeda em economias modernas. Em segundo lugar, leis monetárias não interferem em atos jurídicos perfeitos ao regular os efeitos (presentes) de obrigações creditícias constituídas no passado, porque existe uma distinção jurídica relevante entre os planos de validade e de eficácia das obrigações. Essa distinção demarca os contornos da proteção constitucional ao ato jurídico perfeito.

Palavras-chave: Direito monetário, Plano Real, Supremo Tribunal Federal (STF), ADPF 77.

Abstract: The case ADPF 77 (ADPF is a type of Brazilian constitutional action) brings to the Brazilian Supreme Court (the “STF”) a controversial rule of monetary stabilization envisaged by the Real Plan in 1994. So far this case had a temporary injunction issued by the Court. The contested rule established a method to calculate the indexation of private contracts during the introduction of the new currency, the Real. However, despite the socio-economic importance of this ruling, the STF seems to be mainly concerned with constitutional procedural matters. Instead of escaping to less socially controversial issues, the Supreme Court must contribute to build a strong legal system to sustain the monetary order by the final decision of the ADPF 77. This article seeks to identify the legal framework that structured national monetary power during the stabilization plans (1980s-1990s), with the aim of contributing to enlarge the public reflection on this judicial case. First, I sustain that rules of legal tender comprise both the regulation of a currency as means of payment as well as a standard of value. Money is credit and has a hybrid character, i.e. public and private. To ensure currency’s social demand and the supply of this public good in the economy, the State regulates the fluctuation of its value in public and private legal obligations. It is the core of legal tender regime in modern economies. Second, monetary laws do not interfere in perfect obligations if they regulate the (present) effects of credit contracts (formalized in the past). There is an important legal distinction between the validity and the effectiveness of obligations. This distinction marks the boundaries of the Brazilian constitutional protection of perfect obligations.

Keywords: Monetary law, Real plan, Brazilian Supreme Court (Supremo Tribunal Federal - STF), case ADPF 77.

Introdução

O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental no 77 (ADPF 77) insere-se no contexto conflituoso de debates judiciais sobre a constitucionalidade dos planos econômicos de estabilização monetária. No intuito de conter a hiperinflação brasileira, diversos planos foram articulados pelo governo para controlar a intensa alteração de preços da economia, sobretudo nas décadas de 1980 e no início dos anos 1990. Somente em 1994, com o advento do Plano Real, a política de estabilização pode, finalmente, produzir o resultado econômico esperado. A inflação anual em 1993 foi de 2,447.15%, ao passo que, em 1995, após a implementação do Real, foi de 22.41%.1

A racionalidade econômica e o diagnóstico previsto pelos vários planos de estabilização eram comuns: o Brasil sofria de inflação crônica inercial e a desindexação (ou a redução da sua intensidade) seria fundamental para o processo de estabilização econômica.2 A indexação permitia que a inflação do passado se projetasse no presente, porque as obrigações jurídicas previam reajustes monetários para evitar a perda do poder aquisitivo da moeda. Portanto, quanto maior a inflação do presente, mais intensamente ela se projetava no futuro. Assim, medidas de interferência na correção monetária de contratos vigentes fizeram parte tanto do plano Real como das políticas de estabilização precedentes.

O Plano Real, entretanto, previa uma transição de padrão monetário diferenciada, se comparada aos planos econômicos anteriores. A emissão da nova moeda seria precedida da introdução de uma moeda indexada, a Unidade Real de Valor (URV). A URV dissociava duas funções típicas da moeda: o instrumento de pagamento e o padrão de valor (unidade de conta).3

O intuito original do programa e, em especial, da URV foi, segundo seu articulador e um dos principais mentores dessa política, Fernando Henrique Cardoso, “promover um alinhamento voluntário de preços e preparar o terreno para a derrubada da inflação, sem congelamentos e desrespeito a contratos” (Cardoso, 2006: 145-146, grifos nossos). No entanto, medidas relacionadas ao plano foram contestadas no Poder Judiciário sob o argumento jurídico de que teria havido violação ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal).4 A situação de incerteza jurídica em relação à transição monetária parece ainda persistir nos tribunais do país.

Em 2005, a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF) impetrou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao STF – a ADPF 77. O intuito da CONSIF foi o de alcançar a uniformização do entendimento judicial sobre a constitucionalidade de um artigo específico do Plano Real, o artigo 38 da Lei 8.880/94, que trouxe uma regra de transição para o padrão monetário. A ADPF é um mecanismo processual que visa evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público. Tem fundamento no artigo 102, § 1o da Constituição Federal e é disciplinada pela Lei 9.882/99. Até o presente, o STF manifestou-se em sede cautelar.5

O presente artigo, que traz o comentário à ADPF 77, está dividido em três partes. Na primeira, apresenta-se cronologicamente o desenvolvimento do julgamento pelo STF e os argumentos construídos pelos Ministros para confirmar a concessão da cautelar. Na segunda, identifico qual é o entendimento construído no tempo pelo próprio tribunal quanto à constitucionalidade dos planos econômicos. Nessa parte, exploro dois argumentos principais deste artigo: (i) leis monetárias disciplinam a moeda enquanto meio de pagamento e padrão de valor (regime jurídico da moeda e de seu poder liberatório), e (ii) leis monetárias não interferem em atos jurídicos considerados perfeitos ao regular efeitos presentes de obrigações jurídicas creditícias. Ao final, apresento uma breve conclusão.

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1 Conforme medido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumir Amplo (IPCA), produzido pelo IBGE.

2 Para um resumo da tese da inflação inercial brasileira, que estava subjacente aos planos econômicos de estabilização, ver Duran (2010: 49-59).

3 A introdução de uma moeda indexada já estava presente em proposta de política anterior à URV (Lara-Resende, 1984), que teria ficado conhecida como a “proposta Larida” a partir de seu aprimoramento por Lara-Resende e Pérsio Arida, em 1986.

4 Para análise das principais medidas do Plano Real contestadas no âmbito do STF, ver Duran (2010: 103-119).

5 A constitucionalidade dos planos econômicos, anteriores ao Plano Real, também continua a ser debatida no Poder Judiciário. Uma das principais ações, que aguarda julgamento no âmbito do STF, é a ADPF no 165. Também proposta pela CONSIF, em 2009, reclama a solução de controvérsia quanto à constitucionalidade de índices destinados ao reajuste de contas de poupança, introduzidos pelos planos Bresser, Verão, Collor 1 e Collor 2.

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*Camila Villard Duran é professora doutora da Faculdade de Direito da USP. Pesquisadora visitante das universidades de Oxford e Princeton (Oxford – Princeton Global Leaders Fellow).


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