No início de 2014 escrevi sobre a inconstitucionalidade de sanções fundadas em responsabilização objetiva da pessoa jurídica na chamada Lei Anticorrupção (lei 12.846, de 1º de agosto de 2013). O artigo foi criticado sob argumento de que favoreceria os corruptos. Não compreendi bem a crítica por duas razões. Primeiro, se o conteúdo de uma lei fosse determinante, nenhum ato de corrupção teria ocorrido depois de 2013. Segundo, a base de minha reflexão era dogmática: exceto em casos específicos, a Constituição Federal não abre espaço para esse tipo de sanção. Além da abordagem jurídica explícita, havia também uma questão de fundo, se bem que implícita: sacrificar uma pessoa jurídica por atos de corrupção faz mesmo sentido?
Da visão clássica de que empresa seria um feixe de contratos evoluímos para entendê-la como atividade exercida por gente. A personalidade jurídica que a reveste nada mais é do que um véu que baliza o trabalho de seus integrantes. Ou seja, apesar da autonomia do ente personalizado, no fundo quem tira proveito do lícito ou do ilícito ou sofre as respectivas consequências são os seres humanos que operam a empresa. Destruir uma pessoa jurídica corresponde, portanto, a destruir pessoas naturais. A Lei Anticorrupção não dividiu esses indivíduos em categorias. Assim, suas disposições afetam tanto o sócio, que deixará de ter uma fonte de dividendos, como o mais simples empregado, que perderá seu ganha pão de cada dia.
Dois anos depois daquele criticado artigo, a MP 703, de 18 de dezembro de 2015, procura ajustar um pouco o foco. A leniência, mecanismo de salvação da pessoa jurídica, ganhou lenitivos à sua anterior inviabilidade decorrente da insegurança jurídica de seus contornos primitivos. Com a Medida Provisória, fica impedida a propositura ou o prosseguimento de ações que possam levar a pessoa jurídica a desembolsos maiores do que os pactuados no acordo de leniência. Além disso, admite-se a flexibilização de sanções como as que impedem a contratação com o Poder Público.
Isso favorece os corruptos? Dependendo da forma como os acordos forem celebrados, pode ser. Ou, ao contrário, as autoridades, em função do controle de órgãos como Tribunais de Contas ou, mais ainda, do controle social que haverá sobre as avenças, podem impor aos donos das pessoas jurídicas condições que, como contrapartida para salvá-las, acabem por penalizá-los muito. A questão não está, portanto, no teor da Medida Provisória. O problema está no conteúdo do pacto de leniência, da mesma forma que está no conteúdo do acordo de colaboração premiada firmado com as pessoas naturais.
Se a colaboração premiada não é vista como ferramenta de incentivo à corrupção, a leniência, com os lenitivos da Medida Provisória, também não merece essa pecha. Que venham os acordos, que sejam submetidos aos controles adequados e que as pessoas naturais beneficiadas pelos ilícitos sejam punidas. Quanto àqueles que simplesmente trabalham nas pessoas jurídicas, não sejam prejudicados por crimes que não cometeram.
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