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A trava bancária na recuperação judicial

Não são poucos os fundamentos para que se possa afastar a eficácia da trava bancária durante a recuperação judicial.

4/12/2015

A recuperação judicial tem natureza jurídica de contrato judicial e uma vez aprovado o plano de recuperação judicial, opera-se efeito de novação relativamente aos créditos nele envolvidos (art. 59, LRF).

Dois critérios devem ser observados para a sujeição de um determinado crédito à Recuperação Judicial: 1) sujeição legal; 2) sujeição convencional.

Para o primeiro critério, o legislador entende sujeitos à Recuperação “todos” os créditos existentes ao tempo do pedido, ainda que vincendos (art. 49, LRF). A contrário sensu, não estarão a ela sujeitos os créditos posteriores ao ajuizamento da Recuperação Judicial (não-sujeição por critério de superveniência).

Atendidos os pressupostos de sujeição legal, caberá à Recuperanda indicar em seu plano de recuperação judicial quais credores pretende envolver em seu plano de pagamento (sujeição convencional), conforme estabelece o art. 51, I, LRF. Aqueles não envoltos conservarão seus direitos originalmente pactuados (art. 49, § 2º, LRF).

Luiz Roberto Ayoub e Cassio Cavalli1 ensinam que é preciso “distinguir o alcance da norma contida no art. 49, caput, da LRF, daquela outra encontrada no art. 59 da LRF”. E continuam: “(...) se o crédito não for objeto do plano de recuperação judicial, ele conservará as suas características originais, conforme, aliás, pode-se ler no art. 49, § 2º, da LRF (...)”.

Além do critério de não-sujeição por superveniência, o diploma legal aplicável à espécie (lei 11.101/05) houve por bem excluir da Recuperação Judicial determinados créditos em razão da sua NATUREZA, principal alvo deste escrito e que será tratado detalhadamente linhas abaixo.

Os parágrafos terceiro e quarto do art. 49 da LRF albergam cinco relações contratuais cujos créditos não estariam sujeitos à Recuperação Judicial. Além deles, o art. 187 do CTN também afasta dos efeitos da Recuperação Judicial o crédito tributário. São, portanto e em princípio, essas as relações jurídicas e créditos excluídos2 da Recuperação Judicial em razão de sua natureza: a) Alienação Fiduciária; b) Arrendamento Mercantil; c) Compra e Venda de Imóvel com Cláusula de Irrevogabilidade ou Irretratabilidade; d) Venda com Reserva de Domínio; e) Adiantamento a Contrato de Câmbio para Exportação; e f) Tributário.

A Lei estabelece que, não sujeitos os créditos aos efeitos da Recuperação Judicial, as demandas judiciais a eles correlatas não ficarão suspensas pelo stay period (art. 6º, § 4º, LRF), permitindo aos credores haver seus direitos e respectivos créditos em total desdém à pretensão recuperacional e aos riscos de bancarrota da empresa.

Destaca-se o fato de que, na hipótese de falência, esses mesmos créditos ganham enorme privilégio, quer não se sujeitando ao concurso de credores (Pedido Restituitório), quer tendo nele preferência de recebimento.

Com tudo isso, nada se tornou mais atraente aos credores do que contratar nessas modalidades de relações jurídicas. Os bancos, por exemplo, raramente fornecem crédito ao fomento empresarial sem que haja alienação fiduciária de bens móveis e imóveis.

A jurisprudência de nossos Tribunais vem ensinando que a exclusão de determinados créditos dos efeitos da Recuperação Judicial não pode se dar em detrimento do soerguimento da empresa, sob pena de afrontar o Princípio da Preservação da Empresa insculpido no art. 47 da LRF, decorrente do Princípio Constitucional da Função Social da Propriedade.

Perfeito exemplo disso está gravado no Informativo 472 do STJ, quando a 2ª seção da Corte, no julgamento dos EDcl no AgRg no CC 110.764-DF, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, manteve a suspensão de execução fiscal por entender que esta não poderia prosseguir com penhora de valores que se mostravam indispensáveis à Recuperanda e ao efetivo cumprimento do plano de recuperação.

De certa sorte, o próprio legislador, percebendo o risco de os credores “não sujeitos” à Recuperação Judicial buscarem as garantias no seu exclusivo interesse, estabeleceu que, apesar das ações relativas às relações jurídicas tratadas no parágrafo terceiro do art. 49 não serem tocadas pela suspensão do stay period, não poderá, nesse prazo legal de 180 (cento e oitenta) dias, haver a retomada de bens essenciais à produção da Recuperanda.

Ocorre que, dentre os créditos indicados pelo legislador como excluídos da Recuperação Judicial, as Instituições Financeiras identificaram uma possibilidade real de proteger seus interesses: a cessão fiduciária de direitos creditórios.

Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho3, a cessão fiduciária de direitos creditórios é “o negócio jurídico em que uma das partes (cedente fiduciante) cede à outra (cessionária fiduciária) seus direitos de crédito perante terceiros (‘Recebíveis’) em garantia do cumprimento de obrigações”.

O Código Civil de 2002, em sua concepção originária, restringiu a possibilidade de constituição de propriedade fiduciária aos bens móveis infungíveis, sendo certo que o crédito é classificado como bem móvel incorpóreo e fungível.

Em 2004, às vésperas da entrada em vigor da lei 11.101/05 (LRF), tramitou meteoricamente o Projeto de Lei nº 47, de 2004, contendo 124 (cento e vinte e quatro) folhas4, dando lugar à Lei n. 10.931/04 que “dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o decreto-lei 911, de 1º de outubro de 1969, as leis 4.591, de 16 de dezembro de 1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências”. Como se pode observar, a norma trata exclusivamente dos interesses dos agentes financeiros.

A lei 10.931/04 possibilita a alienação fiduciária de coisa fungível e, com isso, a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito. Assim, o crédito garantido por cessão fiduciária de direito creditório, espécie do gênero propriedade fiduciária, não se submeteria aos efeitos da recuperação judicial.

Na prática, a sociedade empresária vende ou presta serviços, obtendo com isso um direito de crédito. Para financiamento de sua atividade e por exigência negocial, cede seus direitos de crédito à instituição financeira, que passa a deles se apropriar. Com isso, os clientes passam a pagar diretamente ao credor fiduciário, esvaziando assim o fluxo de caixa da empresa cedente. É o que se conhece por “trava bancária” ou “trava de domicílio”.

Percebe-se, assim, verdadeira modalidade de autotutela do exercício do direito de crédito, que menoscaba o Poder Judiciário e escapa à blindagem de que trata a parte final do parágrafo terceiro do art. 49, que não admite sejam extirpados da Recuperanda bens de produção alienados fiduciariamente enquanto perdurar o stay period.

A propriedade fiduciária visa atrair para o proprietário fiduciário a possibilidade de satisfazer seus direitos com bens que transitoriamente passam a integrar seu patrimônio. Por outro lado, tendo os bens e direitos dados em garantia fiduciária deixado o patrimônio do devedor para servir à garantia de determinado credor, os demais credores ficam esvaziados de bens do devedor que se prestariam à satisfação do seu crédito. “Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”, dita o art. 391, CC, assim como o art. 591 do CPC/73 completa que o “devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei”.

Assim, a constituição da propriedade fiduciária interessa não só aos credores que dela se aproveitam como aqueles que dela se desservem. Não à toa, a constituição da garantia fiduciária pressupõe sua publicização.

Sendo assim, é requisito essencial à regularidade da constituição da garantia Real em fidúcia seu devido registro junto ao Cartório de Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, obrigação está prevista no art. 42 da lei 10.931/04, que regula a Cédula de Crédito Bancário, bem como no §1º do art. 1.361 do Código Civil.

Ayoub e Cavalli5 asseveram que a “propriedade fiduciária é constituída com o registro do contrato nos termos do art. 1.361, 1º, CC. Logo, se o contrato não for registrado, não há constituição de propriedade fiduciária e, portanto, o crédito sujeita-se à recuperação judicial”.

As Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Estado de São Paulo já sedimentaram sua posição sobre o assunto, conforme se verifica da súmula 60 do TJ/SP:

“Súmula 60: A propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor”.

Não é diferente a posição de nosso TJRJ, se observarmos, exemplificadamente, os julgados nos recursos 0016946-57.2014.8.19.0000 (Des. Marília de Castro Neves – Julgamento: 4/6/14 - 20ª Câmara Cível) e 0047523-23.2011.8.19.0000 (Des. Nagib Slaibi – Julgamento: 30/11/11 – 6ª Câmara Cível)

Como dito acima, a constituição da garantia em fidúcia não interessa apenas às partes, mas também a toda a gama de credores (e futuros credores) do devedor, que confiam em seu patrimônio disponível para gerenciar sua vontade de contratar. Se o contrato não especifica as garantias prestadas, se não as identifica, estas – as garantias – não são consideradas efetivamente constituídas, ainda que com o registro dos contratos em cartório competente.

Nesse sentido, o inciso IV do art. 1.632 do Código Civil é reto ao dizer que “o contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, conterá: IV - a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação”.

A necessidade de descrição dos bens objeto de cessão fiduciária é requisito de constituição da garantia já reconhecido pela jurisprudência, como se observa do acórdão proferido no Agravo de Instrumento 0217695-66.2012.8.26.0000 da 2ª câmara Reservada de Direito Empresarial (relator Des. Araldo Telles – Data do julgamento: 19/8/13).

Como mencionado alhures, o legislador excluiu dos efeitos da Recuperação determinadas relações de crédito, estabelecendo, inclusive, que as ações a elas relativas não ficam suspensas pelo deferimento do processamento da Recuperação Judicial.

Entretanto, durante stay period (prazo legal de 180 dias) não poderá haver a retomada de bens essenciais a produção da recuperanda. Assim, se de um lado o legislador afastou da Recuperação Judicial a alienação fiduciária de caminhões, por exemplo, não se suspendendo eventual ação de busca e apreensão em curso, de outro, não poderá ser cumprido qualquer mandado de busca e apreensão do bem, se essencial a produção. O mesmo pode ser dito em caso de reintegração de posse de bem objeto de arrendamento mercantil.

Mas o que acontece se a alienação fiduciária recai sobre créditos e títulos? O devedor cede esses créditos e títulos ao credor, em fidúcia, e este exerce diretamente perante os devedores primitivos o direito de crédito. Verdadeira autotutela.

Se à cessão fiduciária de crédito aplica-se a exclusão dos efeitos da Recuperação Judicial que toca a alienação fiduciária, na mesma medida é aplicável a impossibilidade de se excutir as garantias durante o stay period. Consequentemente, o devedor em recuperação deve ter acesso pleno a seus recebíveis.

Comentando o art. 49 da lei 11.101/05, o professor Arnold Wald6, ensina que:

“A exclusão de certos créditos dos efeitos da recuperação é louvável. No entanto, daí não se pode supor que é ampla e absoluta a possibilidade do detentor de crédito oriundo dos negócios aqui descritos de fazer valer seus direitos na forma antes pactuada.
O inegável escopo esposado pela NLFR em seu art. 47, qual seja, o de sustentar o funcionamento da empresa em razão de sua reconhecida função social, deve ser levado em consideração na leitura do parágrafo em comento”.

Dentre os inúmeros julgados favoráveis à liberação da trava bancária em sede de Recuperação, podemos destacar os Agravos de Instrumento: 0033674-42.2015.8.19.0000, em que foi relator o Des. Sergio Nogueira de Azeredo (19ª Câmara Cível do TJRJ, publicado em 15/7/15); 0025957-76.2015.8.19.0000, de relatoria do Des. Carlos Azeredo de Araújo (9ª Câmara Cível do TJRJ - Julgamento: 9/6/15); e 0038873-45.2015.8.19.0000, em que foi relator o Des. Carlos Santos de Oliveira (22ª Câmara Cível do TJ/RJ - Julgamento: 8/9/15).

Como se pode observar, não são poucos os fundamentos para que se possa afastar a eficácia da trava bancária durante a recuperação judicial, seja pela ausência de registro, seja pela ausência de individualização dos créditos e títulos cedidos em fidúcia. Porém, mesmo que preenchidos os requisitos de publicização, a liberação dos recebíveis, ainda que parcialmente, mostra-se como medida impositiva para o soerguimento da empresa, ao menos durante o stay period.

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1 CAVALLI, Cássio; AYOUB, Luiz Roberto. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 55.

2 Nos termos do Art. 199 e seus parágrafos, da LRF, também não estão sujeitos os créditos decorrentes da locação e arrendamento de aeronaves e partes delas a empresas de transporte aéreo. Entretanto, considerando a especificidade do tema, fica este guardado como exceção, como ficou na própria legislação nas disposições finais e transitórias.

3 COELHO, Fábio Ulhoa. In Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Cessão Fiduciária de Títulos Creditórios e a recuperação Judicial do Devedor Cedente. Porto Alegre: Magister, v.37-jul/ago-2010. p.21.

4 Fonte: clique aqui.

5 CAVALLI, Cássio; AYOUB, Luiz Roberto. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 77.

6 Wald. Arnoldo; WAISBERG, Ivo. Comentários aos artigos 47 a 49 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas. In: LIMA, Sérgio Mourão Corrêa; CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. (org) Comentários à Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2009. P. 313-352.

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*Pablo Gonçalves e Arruda é sócio do escritório SMGA Advogados. Professor de Direito Empresarial dos cursos de LLM da Fundação Getúlio Vargas – FGV e do Instituto Brasileiro de Direito dos Negócios - IBMEC, além dos cursos de Pós-Graduação da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, da Escola da Magistratura Federal do Paraná – ESMAF e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio.

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