1. Introdução
A presente nota pretende analisar a aplicação da regra proibitiva de modificação da distribuição contratual de riscos pelo processo de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão e PPP.
Essa regra consta atualmente de diversos contratos de concessão e PPP, seguindo, inclusive, recomendação que realizei no livro Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos.1
Mas, como se verá a seguir, a aplicação prática dessa regra traz uma série de dificuldades, que me levaram a refletir sobre a conveniência de incluí-la nos novos contratos de concessão e PPP.
A análise será realizada a partir de 3 casos hipotéticos, os 2 últimos inspirados em casos concretos nos quais trabalhei como consultor e/ou parecerista.
A nota conclui evidenciando a necessidade não apenas de rever a utilização da mencionada regra nos contratos de concessão e PPP, mas também de desenvolver uma agenda para estabelecer limites razoáveis de alteração dos contratos de concessão e PPP, que, por diversas razões não podem ser aqueles previstos na lei 8.666/93, para os contratos administrativos em geral.
2. Forma de compensação e dificuldades criadas pela regra que proíbe a modificação da distribuição de riscos contratual originária pelo processo de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro
Preocupado com a utilização dos processos de reequilíbrio econômico-financeiro para a alteração da distribuição de riscos contratual – que carreavam muitas vezes à Administração Pública e aos usuários do serviço riscos que o contrato originalmente tinha atribuído ao concessionário –, recomendei que os contratos de concessão e PPP estabelecessem regra proibindo este procedimento.2
Essa recomendação foi amplamente seguida nos diversos setores de infraestrutura. Diversos contratos atualmente possuem regra proibindo que a recomposição do equilíbrio econômico- financeiro leve a alteração da distribuição original de riscos.3
Com essa abrangência, essa regra limita, contudo, de maneira relevante a escolha sobre a forma de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. Assim, parece-me que faz sentido desenvolver uma versão menos abrangente dessa regra, para utilização nos futuros contratos de concessão. Vale a pena analisar alguns exemplos para evidenciar isso, começando abaixo pelo mais simples e progredindo para os mais complexos.
2.1. Exemplo 1: a compensação por meio de pagamento público a concessionário de concessão comum
O primeiro e mais simples exemplo seria o caso de um contrato de concessão de infraestrutura rodoviária que atribuísse o risco de ocorrência de manifestações sociais ao Poder Concedente.
Suponha-se que nesse contrato haja duas regras específicas: (i) a primeira prevendo que a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro tem que ser realizada de forma a não alterar a distribuição de riscos originária; (ii) a segunda enumerando, entre as formas possíveis para realização da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, o pagamento a prazo pelo Poder Concedente ao concessionário.
Ora, estas duas regras são contraditórias. Em um contrato de concessão comum, o concessionário não assume qualquer risco de crédito do Poder Concedente, pois as suas receitas provêm exclusivamente do pagamento de tarifa pelo usuário. A eventual adoção pelo Poder Concedente do pagamento a prazo ao concessionário como forma de recomposição de equilíbrio econômico-financeiro modificará a distribuição de riscos originária do contrato, porque o concessionário passará então a correr o risco de crédito do Poder Concedente.
Esse é um exemplo mais simplório, que poderia ser eventualmente resolvido adotando-se o seguinte entendimento: é possível a alteração da distribuição de riscos contratual para a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro desde que essa alteração esteja expressamente permitida no contrato originário. Como, no caso em tela, há permissão no contrato originário para que o reequilíbrio seja realizado pelo pagamento a prazo do Poder Concedente ao concessionário, então, nesse caso seria lícito a alteração da distribuição originária de riscos necessária para viabilizar essa forma de compensação do Poder Concedente ao concessionário.
Mas existem exemplos bem mais complexos, nos quais a regra proibitiva de alteração da distribuição de riscos para recomposição do equilíbrio termina tendo impactos extremamente relevantes.
2.2. Exemplo 2: alteração unilateral do contrato que cria alças de acesso e saída em rodovia expressa e fechada
Imagine-se, por exemplo, um projeto de PPP em que um ente governamental contrate a implantação, operação e manutenção de rodovia greenfield expressa e fechada, com 20 km de extensão, com as seguintes características:
(i) a rodovia liga dois pontos específicos e não há qualquer entrada ou saída dessa rodovia a não ser nas suas extremidades;
(ii) o contrato prevê a implantação no km 10 dessa rodovia de uma praça de pedágio, cuja arrecadação será a fonte de receita principal do concessionário ao longo do período de operação;
(iii) parte da remuneração do concessionário é realizada por meio de pagamento de aporte durante a realização das obras. Mas não há previsão no contrato de pagamento de contraprestação pública e, como o valor do aporte é relevante e pago proporcionalmente à evolução das obras, o concessionário aceitou realizar o projeto sem garantias de pagamento, com o entendimento de que o direito de parar a obra nesse caso é suficiente para protegê-lo contra o risco de atraso no pagamento.
Pois bem: mal a rodovia começa a ser implantada, o Poder Concedente decide alterar o contrato para incluir dois pares de alças de acesso e saída antes e após a praça de pedágio. Não se pretende instalar cabines de bloqueio (cabines para cobrança de pedágio ao usuário) nessas saídas da rodovia. Em outras palavras, a ideia é que os usuários da rodovia possam sair da rodovia nesses pontos sem pagar pedágio.
Nesse contrato, há também regra proibindo a alteração da distribuição de riscos originária pelo processo de realização do equilíbrio econômico-financeiro.
A questão a ser enfrentada é a seguinte: como reequilibrar esse contrato sem alterar a distribuição originária de riscos?
Em contratos de concessão de rodovias, o sistema de pedagiamento adotado é essencial para definição da distribuição de riscos de demanda.
É que decorre de cada opção de sistema de pedagiamento um conjunto de riscos de impedância (a utilização pelo usuário de outro meio de transporte, que frustre a expectativa de cobrança do pedágio) e fuga (utilização da rodovia combinada com a utilização de vias alternativas apenas para evitar o pagamento de pedágio), que são passíveis de serem estimados por meio da criação e carregamento com as informações disponíveis de modelos de rede de transportes e de comportamento dos usuários do serviço.
Ao decidir abrir entradas e saídas em uma rodovia que era fechada, o Governo alterou completamente o perfil de risco de demanda do projeto. Mesmo que o Governo admitisse a instalação de praças de bloqueio nas saídas e entradas da via, ainda assim esse perfil de risco restaria modificado. É que ao abrir essas saídas e entradas na rodovia, o projeto passará a atrair um novo conjunto de usuários que não utilizariam a rodovia se ela se mantivesse como uma via fechada.
Portanto, o número e perfil dos usuários da rodovia será modificado por essa decisão e isso impacta inclusive o cumprimento de indicadores de serviço relativos à trafegabilidade da rodovia. É que o crescimento do nível de demanda que isso pode ocasionar gerará provavelmente uma queda do nível de serviço em relação à trafegabilidade da rodovia4, anterior ao nível originalmente estimado. Isso significa que eventuais obrigações do concessionário expandir a capacidade da rodovia (implantação de novas faixas de rolamento) se materializarão antes do originalmente estimado no seu plano de negócios.
Mas, no caso em tela, como eu mencionei acima, o Poder Concedente não quer instalar praças de bloqueio. Por razões políticas, ele não quer cobrar dos usuários que resolverem sair da rodovia antes de passar pela praça de pedágio.
Ora, isso evidentemente criará o incentivo para que ninguém mais passe pela praça de pedágio. A tendência é que a grande maioria dos usuários utilize os trechos da rodovia que podem ser trafegados gratuitamente. E isso induzirá um sobreuso da rodovia, que provavelmente afastará os usuários que estariam dispostos a pagar mais para ter acesso a uma via expressa e com velocidade média de tráfego alto.
Em resumo, a decisão unilateral do Poder Concedente de alterar as características da rodovia modificou substancialmente as características do projeto a ponto de ser difícil imaginar qualquer medida para recompor o equilíbrio econômico-financeiro do contrato que mantenha a distribuição de riscos originária do contrato.
Isso, por si, me faz achar que, para que a regra que proíbe que o reequilíbrio modifique a distribuição de riscos originária tenha alguma efetividade é preciso também proibir no contrato alterações unilaterais que impliquem em mudança de características essenciais ou que definam o perfil do projeto de uma perspectiva técnica, econômica e financeira.
Esse limite à alteração do contrato poderia quiçá ser extraído da impossibilidade de modificação do escopo do projeto, de forma a violar a obrigação de prévia licitação. Modificação do contrato com a extensão descrita acima poderia, então, ser interpretada como violação à obrigação de realização da prévia licitação.
Mas o controle dos limites de alteração unilateral do contrato para atendimento do interesse público realizado nesses termos é bastante frágil, pela dificuldade de se estabelecer a linha divisória entre as alterações regulares e as irregulares do contrato.
Note-se que os integrantes do nosso Poder Judiciário raramente tem qualquer compreensão dos elementos técnicos, econômicos e financeiros que definem um contrato de concessão.
Imaginar que um juiz limitaria o direito de alteração unilateral pela Administração Pública do contrato de concessão nesse caso porque modificou as características técnicas, econômicas e financeiras seria confiar na capacidade de discernimento técnico, econômico e financeiro do juiz. Trata-se de presunção difícil, particularmente nessa situação em que seria muito fácil para o Governo fazer o conflito parecer uma disputa entre o interesse do Governo em maximizar o acesso do público à via (agindo, assim, de forma supostamente democrática) e o interesse supostamente mesquinho do concessionário em preservar o seu direito à cobrança de pedágio nos termos originalmente previstos no contrato.
Além disso, a minha experiência é que concessionários resistem tanto quanto possível a iniciar qualquer litígio contra o seu Poder Concedente. É que, como contratos de concessão são contratos relacionais, há sempre diversas formas do Poder Concedente retaliar um concessionário que inicie um litígio judicial.
Nesse contexto, dificilmente, uma concessionária na situação descrita acima recorreria ao
Poder Judiciário para impedir a alteração contratual.
A tendência seria tentar negociar, da melhor forma possível, a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro.
A recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, contudo, nesse caso, necessariamente modificará a distribuição de riscos original do contrato. Imagine-se, por exemplo, que as partes acordem instalar pórticos para cobrança de pedágio sombra5, nas novas saídas/entradas da rodovia. Isso é uma modificação substancial dos riscos envolvidos no contrato. A concessionária passará a assumir o risco de pagamento do Poder Concedente no período operacional, quando, originalmente, não havia esse risco no período operacional, pois todas as receitas proviriam do pagamento a vista pelos usuários nas cabines de pedágio.
O mero aumento do prazo do contrato também implicaria em modificação substancial dos riscos. Em primeiro lugar, vamos considerar para efeito do presente exemplo que, se as saídas e entradas novas na rodovia não forem pedagiadas, a queda da demanda será de mais de 30% da demanda originalmente estimada. A compensação de uma perda de demanda desse tipo, quando realizada por variação de prazo de contrato (e note que o fluxo de caixa dos últimos anos de operação do contrato tem valor presente muito baixo, comparado aos primeiros anos de operação), implica em aumento relevante do prazo do contrato. Possivelmente, mais de 10 anos de aumento de prazo, em um contrato que, por disposição legal, não pode ter mais que 35 anos de duração. E não se trata apenas de aumento de prazo de um contrato mantendo a distribuição de riscos originária. A rigor, o risco do negócio terá sido substancialmente alterado. Portanto, além do concessionário ser forçado a absorver riscos que ele não tinha assumido originalmente, ao prorrogar o prazo do contrato, o Poder Concedente o força a conviver com esses riscos por um prazo mais longo do que ele tinha se disposto a fazer.
A proteção principal que um concessionário tem contra essas mudanças é o artigo 58, §1° da lei 8.666/93, que proíbe a alteração da equação econômico-financeira do contrato sem a anuência do concessionário. Nesse contexto, a única forma de tentar manter minimamente a equação econômico-financeira originária seria a instalação de cabines de bloqueio nas entradas/saídas novas da rodovia. Se essa forma de recomposição do equilíbrio econômico- financeiro não for admitida nesse caso, qualquer outra forma de realização da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não será apta a trazer o contrato para a condição econômico- financeira anterior à sua alteração unilateral.
Nesse sentido, na minha opinião, seria cabível ao concessionário obstar a alteração unilateral do contrato, sob o argumento de que, como o Governo não vai admitir a instalação de praças de bloqueio, a alteração unilateral implicaria em alteração da equação econômico-financeira do contrato – algo que a lei só permite com a concordância do concessionário, nos termos do art. 58, § 1°, da lei 8.666/93.
2.3. Exemplo 3: alteração de local de praça de pedágio e reversão de ganhos para a modicidade tarifária
Outro exemplo para ilustrar a complexidade da aplicação da regra de que a distribuição de riscos não pode ser alterada pelo processo de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro é o caso de alteração de praça de pedágio em rodovia recém concedida.
Suponha-se o caso de uma concessão de infraestrutura rodoviária, “brownfield”, que estabelecesse a possibilidade do concessionário alterar a localização da praça de pedágio em um raio de 20km com centro no local estabelecido no estudo de viabilidade realizado pelo Poder Concedente para a instalação da praça de pedágio. Agora imaginem-se os seguintes fatos:
(i) o concessionário deseja mudar o local da praça de pedágio antes do início da operação, algo permitido pelo contrato;
(ii) o Tribunal de Contas controlador da agência reguladora pertinente tem jurisprudência no sentido de que a mudança de local de praça de pedágio pode ser realizada desde que eventuais ganhos que decorram disso sejam revertidos para a modicidade tarifária;
(iii) o contrato estabeleça que a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não pode alterar a distribuição de riscos originariamente prevista no contrato;
(iv) no contrato, há regra explícita atribuindo todo o risco de tráfego ao concessionário.
Nesse contexto, como fazer a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro sem afetar a distribuição de riscos originária?
A seguir analisarei algumas opções antes de decidir qual a forma de recomposição de equilíbrio econômico-financeiro efetivamente compatível com o contrato.
A primeira forma (que chamaremos aqui de “Opção A”) de realizar a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato para reverter para a modicidade tarifária eventuais ganhos decorrentes da mudança do local da praça de pedágio seria comparar a curva de demanda estimada a partir das contagens volumétricas realizadas no local originário da praça e que basearam a proposta originária da concessionária, com a curva de demanda estimada a partir das pesquisas volumétricas realizadas no novo local proposto para a praça.
Nesse caso, a reversão para a modicidade tarifária seria feita com base nas estimativas de tráfego.
A outra possibilidade (que chamarei aqui de “Opção B”) seria instalar equipamentos para contagem volumétrica no local originário da praça e ano a ano comparar o volume detectado por esses instrumentos, com o volume de tráfego da praça de pedágio instalada no novo local proposto para a praça. Nesse caso, a reversão para a modicidade tarifária seria realizada com base em dados do tráfego real.
A reversão com base no tráfego real (Opção B) tem por consequência o seguinte: se os dados do novo local da praça indicarem volumes reais mais altos que os volumes registrados nos equipamentos do local originário da praça, reverter-se-á a diferença entre o tráfego real de um local e do outro para a modicidade tarifária.
E se, ainda na Opção B, o tráfego no novo local da praça fosse menor que o tráfego no local originário da praça? O que aconteceria?
Há duas opções nesse caso. A primeira (“Opção B1”) seria deixar o concessionário sofrer as consequências do tráfego mais baixo. Apesar dessa parecer, em análise superficial, a solução correta, ela seria uma completa distorção da distribuição dos riscos de demanda prevista no contrato.
É que, se, seguindo a Opção B1, no novo local da praça houver volume de tráfego maior do que no local originário da praça (“upside”), o usuário/Poder Concedente se apropriaria desse ganho. Se, no entanto, houver tráfego no novo local da praça inferior ao volume de tráfego do local originário da praça (“downside”), o concessionário assumiria sozinho as consequências disso. Portanto, na Opção B1, o Usuário/Poder Concedente se apropria dos ganhos (upside), mas deixaria as perdas (downside) com o concessionário.
Evidentemente que eventual adoção da Opção B1 alteraria substancialmente a distribuição de riscos originária do contrato que era a seguinte: a concessionária ficava com os ganhos decorrentes de demanda maior que a estimada e com as perdas decorrentes de demanda menor do que a estimada.
Mas, como dito acima, o contrato não permite que haja alteração da sua distribuição de riscos pelos processos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, de maneira que a Opção B1 não poderia ser adotada nesse caso, pois ela alteraria a distribuição de riscos prevista no contrato originário criando uma distribuição assimétrica do risco (o Poder Concedente/Usuário se apropriaria do upside, mas a responsabilidade de arcar com o downside seria lançada sobre a Concessionária). Observe-se mais uma vez que o contrato atribui o risco de demanda integralmente à Concessionaria e de forma simétrica (ela é responsável por todo downside e se apropria de todo upside)
A outra opção (“Opção B2”) seria tentar corrigir esse problema fazendo uma distribuição simétrica, isto é, em caso de downside, o Poder Concedente/Usuário reequilibraria o contrato em favor do Concessionário, em caso de upside, o Concessionário reequilibraria o contrato em favor do Poder Concedente/Usuário. Teríamos, assim, ao menos, uma distribuição de riscos simétrica. Ou seja, todo o risco de demanda estaria lançado sobre o Poder Concedente.6
Todavia, isso também não satisfaria a exigência de manutenção da distribuição de riscos originária do contrato, pois a agência reguladora estaria, por meio do processo de reequilíbrio do contrato, lançando sobre o Poder Concedente/Usuário riscos que originalmente eram da concessionária.
Portanto, se a agência reguladora adotasse a Opção B1 ou a Opção B2, ela estaria modificando a distribuição de riscos originária do contrato e, por isso, descumprindo a regra de que essa distribuição não poderia ser alterada pelo processo de recomposição do equilíbrio econômico- financeiro.
Isso nos leva à conclusão de que a única forma de reequilibrar o contrato para reverter ganhos para a modicidade tarifária sem alterar a distribuição originária do risco de demanda seria adotar a Opção A, isto é calcular o montante a ser revertido para a modicidade tarifária com base na diferença entre: (a) a projeção de demanda realizada a partir de dados volumétricos obtidos na nova localização da praça e (b) a projeção de demanda realizada a partir de dados volumétricos da localização originária da praça.
Feito esse cálculo no momento da tomada de decisão sobre a alteração da praça, a concessionária deverá ficar responsável por reverter o valor resultado desse cálculo para a modicidade tarifária.
Se, contudo, ao longo do contrato, as curvas reais de demanda da praça (no local original e no novo local) forem diferentes das curvas originalmente estimadas, isso não deverá alterar (nem para cima, nem para baixo) o valor a ser revertido para a modicidade tarifária. É que, como já assinalamos acima, o risco de variação da demanda real é alocado pelo contrato à concessionária.
Portanto, não caberia qualquer ajuste (para baixo ou para cima) no valor a ser revertido para a modicidade tarifária por consequência de variações da demanda real no local originário ou no novo local da praça, sob pena de alterar a distribuição do risco de demanda, que, como já mencionamos várias vezes, está alocado integralmente à concessionária.7
3. Conclusão
A regra que proíbe a alteração de riscos pelo reequilíbrio na versão atual, ordinariamente utilizada pelos contratos de concessão e PPP, deve ser modificada.
Quando propus a inserção de regra com esse teor em contratos de concessão e PPP, o seu objetivo era evitar que se fizesse a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro sem checar previamente de qual das partes é o risco do evento gerador do direito à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. E esse objetivo pode ser alcançado simplesmente exigindo-se que o órgão regulador do contrato cheque se o risco do evento causador do direito à compensação é de fato da parte que será responsável pela compensação.
A efetividade de qualquer regra que limite a alteração da distribuição de riscos originária pela forma de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro depende do estabelecimento de limites mais claros à alteração dos contratos de concessão e PPP, que viabilizem a exigência da manutenção das suas premissas técnicas, econômicas e financeiras. Como os limites de alteração aos contratos são atualmente bastante fluidos, na prática, essa regra tem pouca efetividade e termina sendo superposta pela negociação e acordo final entre as partes sobre a forma de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. De qualquer modo, o concessionário tem o direito a não ter as cláusulas econômico-financeiras alteradas senão com o seu assentimento. Esse é o limite que não deveria ser desafiado.
Contratos de concessão e PPP precisam ser flexíveis para serem alterados de forma a continuar atendendo ao interesse público e acompanhando o seu câmbio por prazos longos, como 20 ou 30 anos. Essas adaptações do contrato a novas pretensões e realidades é muitas vezes complexa e exige renegociação do contrato – isto é o assentimento das duas partes do contrato para que as alterações sejam realizadas – e, é natural que, nesses processos, seja necessário a mudança da distribuição de riscos originária.
É necessário caminhar para o desenvolvimento de limites para alteração dos contratos de concessão e PPP, adequados às suas peculiaridades. Isso implica em aprofundar a distância já existente entre os limites de alteração dos contratos administrativos em geral, previstos, sobretudo, na lei 8.666/93, e os limites de alteração dos contratos de concessão e PPP.8
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*Queria agradecer a Eduardo Jordão e Tarcila Reis Jordão, que revisaram uma versão anterior desse artigo (quando ele ainda era um subcapítulo de outro artigo, que já publiquei) e fizeram nessa época sugestões de forma e conteúdo que contribuíram para a sua forma final. Gostaria de agradecer a Carla Castro Malhano pela revisão de texto e a Carla e Ana Claudia Cunha pela ajuda com as referências e notas de rodapé. Eventuais erros e omissões são de minha exclusiva responsabilidade.
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1 Do qual se extrai o seguinte trecho, ao final do capítulo XV, na página 124-125, que enumera as características ideias de uma cláusula sobre equilíbrio econômico-financeiro de contratos de concessão e PPP, após um capítulo que discorre longamente sobre as melhores práticas na estruturação das regras de equilíbrio econômico-financeiro do contrato:
“Supondo-se que o contrato tem uma matriz de risco clara, que estabelece a repartição dos principais riscos da prestação do serviço, é preciso que conste dele o seguinte em relação à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro:
(...)
(f) Disposição clara impedindo a alteração da matriz de riscos do contrato;”
Cf.: Ribeiro, Mauricio Portugal, “Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos”, publicado pela Editora Atlas, São Paulo, em 2011.
2 Vide o Capítulo XV.2 do livro “Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos”.
3 Como exemplo citam-se os contratos de concessão da Rodovia Transolímpica “20.4.7. Os processos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não poderão alterar a alocação de riscos originalmente prevista no Contrato”, o contrato de concessão da Ponte Rio Niterói “21.4.1Os processos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não poderão alterar a alocaçãode riscos originalmente prevista no Contrato”, o contrato de concessão administrativa do Hospital do subúrbio “17.6. Os processos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não poderão alterar a alocação de riscos originalmente prevista no Contrato”, o contrato de concessão da BR 040 "22.4.1 Os processos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não poderão alterar a alocação de riscos originalmente prevista no Contrato", o contrato de concessão patrocinada da BR 101 "20.4.1 Os processos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não poderão alterar a alocação de riscos originalmente prevista no Contrato", o contrato de concessão patrocinada da Arena Fonte Nova "19.1.10 Os processos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não poderão alterar a alocação de riscos originalmente prevista no Contrato" e o contrato de concessão patrocinada da BR 060 153 262 "22.4.1 Os processos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não poderão alterar a alocação de riscos originalmente prevista no Contrato".
4 O nível de serviço de trafegabilidade de rodovia geralmente é medido utilizando os parâmetros do HCM –
Highway Capacity Manual, que é um software desenvolvido para tanto pelo Banco Mundial.
5 Chama-se de pedágio-sombra quando o pagamento do pedágio ao concessionário é realizado pelo Poder Concedente, considerando o número e perfil dos usuários efetivos da rodovia, medido por recursos eletrônicos.
6 Tomando como parâmetro para as compensações a curva de demanda estimada pela concessionária com base em dados volumétricos de pesquisa realizada no local originário da praça.
7 Para garantir que não haja assimetria entre as premissas para estimativa da curva de tráfego do local originário e do local novo da praça, o ideal é que a concessionária utilize as mesmas premissas de crescimento de PIB/tráfego utilizadas para o estudo da projeção de tráfego da praça no local originário, que baseou a sua proposta na licitação. Evidentemente que há aspectos que são específicos de cada localização da praça de pedágio, por exemplo, a estimativa das fugas, da impedância e da indução de tráfego pela realização da duplicação. Nesses casos, faz sentido considerar os dados específicos de cada localização.
8 Sobre os limites de alteração dos contratos de concessão ou, mas ainda sem dar cabo completamente dessa agenda, vide: RIBEIRO, Mauricio Portugal; PRADO, Lucas Navarro. Alteração de contratos de concessão e PPP por interesse da Administração Pública – Problemas econômicos, limites teóricos e dificuldades reais. In: Revista de Contratos Públicos – RCP, Ano 2, nº 2, setembro de 2012/fevereiro de 2013. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
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*Mauricio Portugal Ribeiro é advogado especializado na estruturação, licitação e regulação de contratos de Concessões e PPPs nos setores de infraestrutura, sócio do escritório Portugal Ribeiro Advogados.