Migalhas de Peso

Estado e tributação

População deve saber quanto ela suporta em termos de tributação e que direitos lhe assiste, particularmente na demonstração de como o dinheiro arrecado com os tributos é aplicado.

15/9/2015

Em propaganda outrora veiculada na mídia, pessoas adquiriam bens de consumo e, momento seguinte, aparecia alguém que, representando o Estado, retirava daquela quantidade de bens significativa parcela, a título de tributos devidos pelo adquirente. Por fim, a informação de que democracia consiste em maior quantidade de dinheiro no bolso do cidadão, trazendo imbuída a ideia de que o tributo é algo ruim para a sociedade.

Pode-se asseverar, sob o ponto de vista econômico, que se há redução da carga tributária incidente sobre a renda e o consumo, é provável que o contribuinte passe a consumir mais, demandando outras mercadorias que refletirão no incremento da produção.

Que a carga tributária brasileira é alta, não paira qualquer dúvida quanto a isto. Mas o que a propaganda não veicula é: por que existe a tributação? Qual é o destino efetivo do valor arrecadado a título de tributos?

Desde épocas imemoriais o homem se recusa a pagar o tributo, seja qual for a espécie de dominação a que ele se vê submetido. Na Roma antiga, até o próprio ícone da Cristandade foi indagado a responder à capciosa pergunta: “É lícito pagar o tributo a César?”. E Jesus, em sua divina e desconcertante filosofia, categoricamente responde: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Assim, se entre os contemporâneos do Cristo houve aqueles que se insurgiram contra o pagamento do tributo a César, considerando-se que o povo judeu encontrava-se subjugado ao domínio romano, a situação sofreu pouca modificação no seio da sociedade atual. Na história brasileira houve diversas manifestações contrárias à cobrança de impostos, cujo maior exemplo é a cobrança do quinto do ouro, que vitimou Felipe dos Santos e Tiradentes, em períodos distintos da história.

Todavia, nem todos entendem o porquê da existência dos tributos. Mas é possível entender o fenômeno, a partir de um exemplo simples.

Imaginemos um condomínio formado por dez unidades que, além da área privativa, possui área comum composta por piscina, quadras esportivas, jardins, salão para ginástica e todas as comodidades atuais. Isso envolve manutenção periódica. É preciso manter tais dependências em ordem, para que possam ser convenientemente utilizadas pelos respectivos moradores. Quem fará isso? Como se fará tal manutenção? Quem ficará encarregado de administrar tais situações? Qual o custo destes serviços e dos materiais que serão empregados? Há previsão de realização de benfeitorias úteis, necessárias ou voluptuárias?

As normas internas que regulam as relações entre os condôminos determina que todos arcarão proporcionalmente com as despesas necessárias à conservação das áreas comuns. Consequentemente, a falta de pagamento desses encargos por qualquer um dos condôminos acarretará maior dispêndio para os demais, que pagarão as despesas daquele – caso não se disponha de reserva de numerário – sob pena de se verem privados dos serviços necessários à manutenção da edificação, com as consequências a ela inerentes. Da mesma forma se houver a apropriação indevida dos recursos comuns.

No exemplo acima se vislumbram algumas características comuns ao tributo. A assembleia de condôminos aprova a convenção de condomínio, que regulará as relações entre os membros que o integram, configurando-se uma espécie de lei. O síndico, eleito dentre os condôminos, é a pessoa que executará os encargos inerentes à função, obrigando-se a prestar contas do correto emprego do dinheiro arrecadado. Um conselho formado pelos condôminos avaliará e julgará a prestação de contas oportunamente apresentada pelo síndico. Há o exercício de funções típicas ao legislar, executar e julgar, sem as quais imperaria o caos naquela pequena sociedade de pessoas.

O dinheiro pago referente aos encargos condominiais retornará para os pagantes de forma direta ou indireta, conforme as necessidades comuns ou individuais. Não há, nesse caso, uma alienação coletiva em relação aos bens comuns e ao dinheiro empregado na sua manutenção. Há uma efetiva consciência de que as despesas são necessárias à manutenção do condomínio. Em suma: quanto maior as despesas comuns, maior será o valor a ser pago por cada um dos condôminos. Uma administração condominial demonstrará sua eficiência quando conseguir fazer mais com menor emprego do numerário da coletividade.

Guardadas as devidas proporções, particularmente quanto à singeleza do exemplo posto, de forma similar ocorre com o fenômeno da tributação. A possibilidade de se criar tributos tem seu fundamento na própria Constituição Federal, que outorga competência a cada ente para, observados os limites nela fixados, instituir, mediante norma segregada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo chefe do Executivo, os respectivos impostos, taxas ou contribuições de melhoria. O Poder Executivo encarrega-se de cumprir o programa de trabalho previamente aprovado pelo Legislativo, empregando os recursos arrecadados nas despesas previamente fixadas no orçamento e disponibilizando, para os administrados – dentre outros –, serviços de educação, saúde e segurança. O Poder Judiciário exerce funções essenciais à salvaguarda do equilíbrio social: o controle de constitucionalidade das leis e dos atos praticados pelas autoridades públicas, resolvendo os demais conflitos surgidos no seio da sociedade.

Avulta a importância do tributo, enquanto receita pública imprescindível à manutenção do Estado atual. Oportunas são as palavras do amigo Onofre Alves Batista Júnior (O Planejamento Fiscal e a Interpretação no Direito Tributário. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 17): “A doutrina mais moderna já entende o tributo como elemento essencial para a existência do Estado (...). Por isso, podemos afirmar que o imposto, no 'Estado Social Tributário de Direito', atingiu a sua legitimação que, jurídica e eticamente, o transformou em um dever cívico dos cidadãos, determinado, escolhido e imposto pela própria coletividade.”

Ora, o conflito que hodiernamente mais aflige a sociedade que se encontra sob o guante do Estado tributário é, o patamar expressivo que atinge a carga tributária brasileira – cerca de 40% do PIB. Sustenta-se com o dinheiro arrecadado a (ineficiente) máquina estatal, sem que haja qualquer eficiente contraprestação do Estado em serviços para a coletividade. Lado outro, não se observa qualquer movimento do Estado em reduzir os seus gastos para, consequentemente, reduzir a carga tributária.

Everardo Maciel, que esteve à frente da Secretara da Receita Federal do Brasil entre 1995 e 2001, assevera que “a carga tributária não é feita por impostos, é feita por despesas. Quem está por trás dela são os gastos. Quando se vai discutir o orçamento, não se discute o orçamento da sociedade, se discute o orçamento do Estado. Quando o Estado cresce, aí perde receita. Quando perde receita, aumenta a carga tributária” (Não existe cidadania fiscal no Brasil. Entrevista publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 2, nº 23, agosto de 2007, p. 41). Logo, o caminho para se reduzir a carga tributária passa necessariamente pelo adequado equacionamento dos gastos públicos, racionalizando as suas despesas para que não se torne um peso para os próprios indivíduos que o integram.

É interessante que a preocupação com a administração eficiente dos recursos públicos não é teoria nova. Curiosamente, o filósofo Nicolo Machiavelli (O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 94) aduzia, tempos passados, que, para um “príncipe” ser louvado e não vituperado, ele deveria “(...) gastar pouco para não ser obrigado a roubar seus súditos; para poder defender-se; para não se empobrecer, tornando-se desprezível; para não ser forçado a tornar-se rapace; e pouco cuidado lhe dê a pecha de miserável; pois esse é um dos defeitos que lhe dão a possibilidade de bem reinar”.

Qualquer semelhança entre o excerto acima reproduzido e a situação brasileira atual não seria uma mera coincidência. Mais uma vez, a história se repete. Mudam-se apenas os atores. Com uma vantagem: “Aquele que estudar cuidadosamente o passado pode prever os acontecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos meios que os empregados pelos antigos. Ou então, se não há mais os remédios que já foram empregados, imaginar outros novos, segundo a semelhança dos acontecimentos”, dizia Machiavelli. (SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual sem virtù. In Os Clássicos da Política. Francisco C. Weffort (Org.). São Paulo: Ática, 1° vol. 4ª ed. 1993: pg. 19).

E o que se constata na prática, mas que os partidos políticos não divulgam? A existência de um sem número de obras inacabadas. Obras superfaturadas. Obras contratadas sem os rigores do processo licitatório. Obras mal realizadas. Contratos ditos emergenciais, fora dos rigores da Lei de Licitações. Desvios de dinheiro da merenda escolar.  Superfaturamento na compra de remédios. Concessão de imóveis públicos para instalação de empresas que nada produzem. Isenções fiscais para apaniguados dos governos. Tráfico de informações privilegiadas. Além da remuneração astronômica, gastos desmedidos dos parlamentares com telefone, correios, alimentação, combustíveis e outros serviços. Enquanto isso, a produção legislativa federal, no ano de 2010, que é a transformação em leis ordinárias de proposições no período situado entre 01.01 a 22.12.2010, foi, no mínimo, lamentável. Os parlamentares se reuniram para aprovar 164 leis. Destas, 43 leis tratavam de homenagens e datas comemorativas; 35 leis sobre pessoal e administração pública; 23 leis sobre economia e finanças públicas; 19 leis sobre trabalho, direito e justiça; 6 leis sobre educação. Projetos de leis de interesse nacional ficaram sem a devida apreciação. A má gestão dos recursos públicos é a regra. Infelizmente.

Veja-se: o tributo é necessário à consecução dos objetivos do Estado. Sem ele não há como se garantir o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização e reduzindo as desigualdades sociais e regionais, promovendo-se o bem de todos (art. 3º, Constituição Federal). Mas a sociedade tem que saber quanto ela suporta em termos de tributação e que direitos lhe assiste, particularmente na demonstração de como o dinheiro está sendo aplicado. E, da mesma forma que manifestam sua indignação quando o time de futebol preferido ou a seleção brasileira apresentam resultados ruins, devem (ou deveriam) manifestar seu repúdio quanto a estes atos praticados pelos seus próprios membros, que tem se assenhorado do patrimônio público ao longo da existência deste País. Afinal, o Estado - enquanto sociedade política e juridicamente organizada, dotada de soberania, dentro de um território, sob um governo, para a realização do bem comum do povo - somos nós.

Mas o genocídio cultural e educacional perpetrado no Brasil impede que o indivíduo tenha condições de refletir sobre esta realidade. Parece mesmo que não há interesse em que o cidadão brasileiro desenvolva senso crítico e se torne alguém que possa exigir ética no trato com a coisa pública, o que se atingiria, por certo, mediante formação educacional adequada. Os detentores do poder, no entanto, fazem justamente o contrário do preconizado por Baruch Spinoza, citado por Will Durant (A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 191), que afirmava que “O objetivo supremo do Estado não é dominar os homens nem contê-los pelo medo, é, isso sim, livrar cada um deles do medo, permitindo-lhe viver e agir em plena segurança e sem prejuízo para si ou seu vizinho”.

A atuação estatal, portanto, deve limitar-se à promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza, vez que o seu desvirtuamento acarreta significativos prejuízos para os seus administrados, impedindo que o cidadão possa migrar de extrato social e fomentando a violência. Sem adequada gestão do dinheiro proveniente da arrecadação tributária, não haverá como mudar a face deste País. A tendência é que se aumente cada vez mais as exigências tributárias.

Tais considerações podem parecer pueris para aquele que já ostenta vastos cabedais de conhecimentos tributários. Mas, em face do genocídio cultural, a população é indevidamente manipulada. É necessário que se traga esclarecimentos para o povo, para que haja, verdadeiramente, um país de cidadãos e não um país de súditos, como enfatizado por Everardo Maciel, em artigo já citado. É preciso eliminar o fosso existente entre o Estado e o cidadão. Este não pode mais permanecer alheio à noção de res publica (coisa pública), confundindo-a com res nullius (coisa sem dono), “aos valores republicanos e a tudo aquilo que interessa à democracia”, como destacado pelo citado articulista.

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*Amaury Rausch Mainenti é advogado, contador e perito judicial. Sócio do escritório Rausch Mainenti, Figueiredo Consultoria e Advocacia Empresarial.

 

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