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Cooperação no novo CPC (primeira parte): os deveres do juiz

Novo CPC dá ênfase aos princípios e garantias fundamentais do processo. É nesse contexto que se insere a consagração do dever de cooperação.

1/9/2015

1. Introdução

Um dos traços marcantes do novo CPC é a ênfase nos princípios e garantias fundamentais do processo. Reafirmam-se e especificam-se vetores constitucionais. É nesse contexto que se insere a consagração do dever de cooperação.

2. Origens

A origem da formulação teórica do dever de cooperação remonta ao direito civil. Trata-se do reconhecimento da existência, nas relações obrigacionais, de deveres acessórios de conduta, impondo a cooperação entre as partes (deveres de informação, esclarecimento, prevenção, auxílio...). Como se vê a seguir, sua aplicação ao processo civil não deriva de um influxo do direito civil sobre o direito processual, mas, antes, da incidência dos mesmos valores fundamentais em ambas as searas.

Mesmo no processo civil a ideia de cooperação não é nova. É afirmada há décadas – ainda que com terminologias variáveis – por doutrina, jurisprudência e legislação de países como Alemanha (berço da formulação), Itália, França... No Brasil, textos de Barbosa Moreira publicados há quase quarenta já tratavam do tema. Na primeira metade da década de 1990, o princípio já estava amplamente desenvolvido na doutrina brasileira.

Portanto, e a rigor, já vigora no ordenamento atual.

3. Noção

Mas em que consiste? Trata-se de reconhecer que – em que pesem as posições antagônicas, contrapostas, das partes; em que pese a distinção entre a posição do juiz (autoridade estatal) e das partes (jurisdicionados, sujeitos àquela autoridade) – todos os sujeitos do processo estão inseridos dentro de uma mesma relação jurídica (ou de um complexo de relações) e devem colaborar entre si para que essa relação, que é dinâmica, desenvolva-se razoavelmente até a meta para o qual ela é preordenada (a resposta jurisdicional final).

4. Fundamentos

Os fundamentos constitucionais dessa imposição são a boa-fé (moralidade), o contraditório e a razoabilidade (inerente ao devido processo legal).

Há quem critique a incidência do dever de cooperação no processo civil. Impor-se às partes o dever de cooperar implicaria ignorar o litígio, a conflituosidade, a verdadeira guerra entre as partes. Dir-se-ia que “o processo não é um jardim florido em que as partes passeiam de mãos dadas”.

Mas o princípio na cooperação não é uma descrição de como é o processo e sim uma prescrição de como ele deve ser.

Trata-se de compatibilizar a ideia do processo como embate (salutar, na essência, mas cuja distorção conduz à ideia do “processo como jogo”) com as exigências constitucionais de boa-fé e razoabilidade.

5. A norma geral no CPC/15

O novo CPC explicita o princípio (além de formular diversas regras que são clara expressão dele): “Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”

A norma impõe o dever de cooperação entre todos os sujeitos do processo: não só do juiz perante as partes; não só das partes entre si.

Neste primeiro breve texto, examinam-se os deveres que o princípio da cooperação impõe ao juiz. Mas desde já se ressalva: as partes também se submetem a deveres de cooperação – o que será objeto de um segundo texto.

6. O juiz e o dever de cooperação

No que tange ao juiz, a cooperação desdobra-se em quatro âmbitos: esclarecimento, diálogo (consulta), prevenção e auxílio (adequação).

6.1. Dever de esclarecimento

Cumpre ao juiz esclarecer-se quanto às manifestações das partes: questioná-las quanto a obscuridades em suas petições; pedir que esclareçam ou especifiquem requerimentos feitos em termos mais genéricos e assim por diante.

Um exemplo de tal dever no CPC/73 tem-se no despacho de especificação de provas. A despeito da exigência de que as provas sejam requeridas já na inicial e na contestação e da inexistência de previsão legal desse despacho, assentou-se o reconhecimento do dever do juiz, antes de sanear o processo, dar às partes tal oportunidade de esclarecimento.

No novo CPC, um dos vários exemplos é extraível do art. 357, § 3º (“Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações”).

O dever de esclarecimento apresenta ainda uma segunda dimensão, nem sempre considerada sob essa perspectiva: o juiz deve não só buscar a clareza das partes, mas ser, ele mesmo, claro. É nesse contexto, de cooperação, que se compreende melhor o extremo detalhamento que o CPC/15 estabelece para o dever de fundamentação das decisões do juiz (art. 489, §§ 1º e 2º).

6.2. Dever de diálogo (ou de consulta)

Impõe-se ainda reconhecer o contraditório não apenas como garantia de embate entre as partes, mas também como dever de debate do juiz com as partes. O CPC francês de 1975 vale-se de feliz fórmula para expressar essa exigência: o juiz deve “ele mesmo” observar o contraditório.

Não se admite que o juiz surpreenda as partes com decisões tomadas de oficio. O dever de cooperação não tolhe o poder judicial de instrução e cognição ex officio. Enquadram-se nesse âmbito o conhecimento da falta de pressupostos de admissibilidade da tutela jurisdicional e das nulidades processuais absolutas, os enquadramentos jurídicos diversos dos aventados pelas partes [jura novit curiam], as objeções materiais etc. Inserem-se também aqui a inversão do ônus da prova e a produção de provas de ofício. Em todos esses casos, em vez de decidir diretamente, o juiz deve antes dar a oportunidade para as partes se manifestarem. Nos termos do art. 9º do CPC/15: “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”. E o art. 10 é ainda mais explícito quanto ao dever de diálogo: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”

Estaria o juiz afetando sua imparcialidade, por estar adiantando aquilo que pretende decidir em seguida? Não, pelo contrário: ao permitir o debate, está reforçando sua imparcialidade. Mesmo porque, depois de ouvir as partes, pode vir a mudar sua inicial impressão.

A segunda crítica que se costuma a fazer ao dever de diálogo é também impertinente: ele não inviabiliza o curso do processo em prazo razoável. Primeiro, porque em muitos casos ganha-se tempo (evitando-se recursos, mediante decisões mais acertadas). Depois, mesmo que se perca tempo em outros tantos casos, é o preço que se paga por um processo com um contraditório substancialmente mais qualificado.

6.3. Dever de prevenção

O juiz deve ainda advertir as partes sobre os riscos e deficiências das manifestações e estratégias por elas adotadas, conclamando-as a corrigir os defeitos sempre que possível. Tome-se como exemplo o art. 321 do novo CPC: “O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.”

6.4. Dever de auxílio (adequação)

Além disso, o juiz deve ajudar as partes, eliminando obstáculos que lhes dificultem ou impeçam o exercício das faculdades processuais.

Esse é o dever mais discutível, no plano da cooperação. O auxílio legítimo já não estaria consubstanciado nos demais deveres, antes mencionados? O auxílio direto não deveria ser propiciado por outros sujeitos processuais (ministério público, defensor público...)?

Mas existe um campo específico de incidência do dever de auxílio, que nada tem a ver com assistência material a necessitados. Trata-se de uma intervenção técnica destinada a eliminar óbices ao exercício das garantias processuais (que podem pôr-se até contra litigantes de boa situação econômica). Ou seja, a questão não é tanto de auxílio subjetivo, mas de adequação objetiva do processo às peculiaridades concretas do conflito.

Pense-se na distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373, § 1º: “Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”)

Considere-se ainda o poder de flexibilização procedimental, para a inversão da ordem das provas (art. 139, VI), ou ainda a ampliação de prazos, quando houver dificuldade para o cumprimento do prazo posto na lei por exemplo (art. 139, VI, e art. 437, § 2º).

________________

*Eduardo Talamini é advogado, sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Livre-docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor da Faculdade de Direito da UFPR.

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