Auri sacra fames.
(Que insaciável fome de ouro!)
Virgílio, “A Eneida”, trad. Livre.
Tudo indica que os famosos personagens de François Rabelais se instalaram há muito tempo em Brasília, e ali têm estado procurando matar a sua fome inesgotável, desta vez não de alimentos digamos “comuns”, mas de ouro, dinheiro, cash, vil metal, propina, bufunfa, pixuleco, etc. Gargantua e Pantaguel eram ogros vorazes, capazes de darem conta sozinhos de banquetes inteiros, sempre insatisfeitos pedindo cada vez mais.
As referências na imprensa sobre essa comilança monetária são relativas a milhões para lá, milhões para cá; bilhões para lá e bilhões para cá. Nós simples mortais não temos a noção de quanto isto representa porque os nossos parâmetros estão tão distantes desses valores, quanto a terra 1 está longe da terra 2, recentemente descoberta pelos astrônomos. Mas são somas imensamente consideráveis. Vamos a um exemplo. Um dos gargantuas da nossa novela brasiliana, forçado pela Justiça, está devolvendo aos cofres públicos a importância de R$ 65 milhões, se não me engano. Isto corresponde a 82.487 meses de pagamentos em salários mínimos, ou seja, 6.873 anos para que um trabalhador pudesse amealhar tal importância, desde que guardasse tudo o que ganhasse mês a mês sem gastar nada. Seria necessário viver mais do que dez Matusaléns.
Muito se tem falado sobre as causas dessa infecção generalizada que apanhou o Brasil em diversos campos da sua economia. Uma delas, talvez a principal, seja a existência de um cordão umbilical feito do aço mais resistente entre os governantes/políticos, as empresas e as obras públicas, em relação às quais se ajunta o fator eleições/compra de eleitores, tudo sob a maquiagem de publicidade na TV tão mentirosa que faria vergonha ao Barão de Munchausen ou ao nosso Pedro Malasartes.
A prática do eleitor de cabresto continua cada vez mais forte, embora tenha se modernizado e se tornado tecnológica. Antigamente o coroné, chefe eleitoral inconteste do seu reduto, tinha os eleitores na mão porque lhes prestava favores, evidentemente não com o seu dinheiro particular, mas com o que recebia do governo. E assim se fazia uma troca direta de interesses: um necessitado de comida e outro “necessitado” de votos. Eu me lembro de uma ocasião em que o Brasil recebeu toneladas de leite em pó de um programa da USAID. E quem os distribuía aos pobres necessitados? Evidentemente, cada coroné amigo do governo. O mais trágico disto tudo é que o tal leite precisava ser misturado com um pouco de manteiga e batido em um liquidificador, precisamente o que cada nordestino tinha à mão em sua tapera de pau-a-pique na aldeia na qual morava, onde não havia chegado ainda a eletricidade.
No dia da eleição o coroné botava os empregados de sua fazenda em cima de caminhões e os levava ao posto eleitoral. Ali cada um recebia um envelope fechado, assinava um livro de presença em X e colocava o envelope na urna. Se um curioso perguntasse ao coroné em quem tinha votado, este lhe respondia: “Não sei, meu filho, o voto é secreto”.
Sabe-se que muitas cidades tinham mais eleitores com endereço no cemitério local do que nas ruas, sendo que os registros de nascimentos e de morte eram feitos no cartório do coroné, ora pois, que também tinha os seus tentáculos na junta eleitoral.
Hoje o coroné se chama cartão do bolsa família e de tantas outras benesses que o Estado paternalista andou inventando. Todas as promessas juntas se somadas superariam o PIB do sistema solar. Desta forma o intermediário coroné foi em parte superado pela tecnologia. Agora a ligação é direta entre o Governo Federal e o eleito comprado por uma miséria.
Mas o monstro governo não conseguiu eliminar de todo os intermediários entre ele e o eleitor e aí é que proliferam deputados e senadores descendentes de Gargantua e Pantagruel, alguns deles vivendo dentro daquele próprio monstro, os quais conviviam em simbiose que costumava ser bem acomodada e as coisas vinham rolando de forma mansa e suave. Afinal de contas, a comida para os esfaimados parecia ser infindável, pois era proveniente de tudo o que o País produzia ou que iria produzir algum dia (o dinheiro do pré-sal, que ninguém sabe, ninguém viu), sem um fim em vista.
Mas outra figura existia nesse cenário, no qual as torrentes de dinheiro jorravam sem parar: os empresários de obras públicas. Ora, o governo é o maior contratante de obras no País e se licitações foram previstas em lei para que a escolha dos vencedores se desse de forma limpa, muito facilmente foram encontradas as brechas (“fatta la legge, trovare l’inganno”, já se disse há muito tempo).
As obras eram tantas que dava para dividir o butim, tal qual os corsários faziam quando se deparavam com um grande prêmio a ser conquistado, formado por uma esquadra carregada de ricas mercadorias vindas da Ásia ou da América. Atacavam juntos e repartiam o prêmio. Assim, muitos grandes empresários brasileiros atacaram juntos as licitações abertas e, por meio da celebração de cartéis, acertavam equitativamente quem ganhava o quê. É claro que o Governo, menos inocente do que criança apanhada roubando o pote de doces, dava uma mãozinha a um empresário mais querido dos que os outros, dirigindo para o seu endereço as condições do edital que excluíam os menos amigos.
Não se sabe bem nessa história toda se o ovo veio antes ou depois da galinha. Isto é, de quem comprou quem e quem foi vendido para quem. O resultado da licitação tinha vinculado a ela o pagamento de um pixuleco na base do PF (por fora). Os empresários dizem que o governo deles exigia tal contribuição caso contrário, adeus negócio. O governo dizia que seus representantes eram constrangidos a aceitarem favores das empresas interessadas nos seus contratos. Por outro lado na medida em que o componente “grana para as campanhas eleitorais” se tornou uma necessidade inafastável, dado o distorcido modelo eleitoral pátrio, juntou-se a fome com a vontade de comer e nossos gargantuas e pantagrueis puderam se fartar durante longo tempo em lautos banquetes. E como sempre surgiam novos contratos, eles davam origem a novos pixulecos, funcionando as coisas como um moto contínuo.
Foi então que se se sucederam dois desastres do tipo tempestade perfeita: havia pantagrueis e gargantuas mais do que se podia sustentar e a comida acabou. Foi preciso a contra gosto fechar a porta da dispensa, mas ninguém se entendia a respeito e as brigas surgiram, com fregueses mudando de lado e traindo quem antes os alimentava a barrigas cheias. Daí as traições que fazem parte do jogo, pois os políticos mudam de lado tanto quanto as mulheres de sotaque (“La donna è mobile, qual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero”, Giuseppe Verdi, Rigoletto).
Pensando bem, acho que quem primeiro falou sobre esta característica feminina foi, mais uma vez, o grande poeta Virgílio, na Eneida (“Varium et mobile semper femina”). Do meu lado, acho a afirmação discriminatória quanto ao belo sexo, porque os políticos são muito mais volúveis do que elas, as mulheres. Se elas podem ser influenciadas por uma carinha bonita ou por dinheiro, eles são governados por muito mais dinheiro e mais muito poder. Um compra o outro e vice-versa.
Ora, o Governo está tentando salvar o pouco que resta da sua pele mais uma vez procurando trocar favores, o que não tem nem vai mais conseguir. Os ventos estão contrários e cada vez que o valente Juiz Moro pega da caneta (fortemente embasado pelos eficientes Ministério Público Federal e Polícia Federal), caem mais alguns dos bastiões que antigamente sustentavam o equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo. Isto porque eu jamais falaria que poderia haver algum tipo de acordo com o Judiciário, lógico.
Quando eu era pequeno ouvia dizer que a minha geração estava pagando um preço caro para que as próximas pudessem viver em um Brasil melhor. Já se vão 70 anos e o país ainda anda na companhia dos mais miseráveis e injustos do mundo. Pelo andar da carruagem, meus bisnetos, se os tiver, ainda estarão esperando a mesma coisa.
Meu caro leitor, cada vez que você votou em um salvador da pátria ou em alguém que prometia o que não podia dar, você pariu um gargantua ou um pantagruel. Pode até ser que tenha parido gêmeos glutões. Somos todos cúmplices. Esse é o estado da meta.
Diz o ditado que a ocasião faz o ladrão. Este Migalhas trouxe outro dia uma posição contrária de Machado de Assis, para quem a ocasião apenas dá chance ao ladrão, que já nasce feito. Se é verdade, há uma solução que ao menos tiraria a colher da boca de muito guloso: bastaria privatizar todas as estatais, especialmente as federais. Há muito tempo que elas deixaram de preencher a sua função constitucional, inerente à exploração de áreas estratégicas para o país, que não seriam particularmente atrativas para o capital privado.
Olhe-se para a Petrobrás, depenada, despelada e descarnada até os ossos: como ela agora completamente sem dinheiro vai fazer o seu papel? Para que bancos públicos, já que contratos (sem pixueleco) com bancos privados poderiam perfeitamente exercer a função que eles têm executado que fosse do interesse do Governo? Não se poderia privatizar o Correio? Se assim tivesse sido, duvido que o seu fundo de previdência, o Postalis estivesse agora quebrado.
Dizem os analistas que o pior das revelações da existência de outros gargantuas e pantagrueis ainda está por vir. Bastará levantar a ponta de alguns tapetes, como a do BNDES, por exemplo...
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.