1. Introdução.
Diversas normas do Código de Processo Civil vigente (CPC/73) têm sido objeto de controvérsia doutrinária, muitas das quais foram objeto da preocupação do legislador do Novo Código de Processo Civil (NCPC). O novo diploma, além de eliminar as incertezas existentes sobre determinados temas, ora consolidou entendimento jurisprudencial, ora o contrariou.
Como explica Vicente Rao, por vezes "o silêncio, a obscuridade, a indecisão e os erros nas leis, podem ser tais, que os tribunais, ao exercerem seu poder de criação jurídica, suprindo as falhas do legislador, nem sempre cheguem a soluções jurídicas uniformes".1 Em tal circunstância, podem emergir certas interpretações e criações normativas por Parte do Judiciário que possuem um claro conteúdo restritivo de direitos dos litigantes. Além disso, a própria persistência de diversidade interpretativa "é prejudicial à segurança das relações e à própria vida do direito".2
A partir do início da vigência do NCPC, tais interpretações, bem como outras normas derrogadas pela atuação do legislador, deixam de produzir efeitos na ordem jurídica, salvo nos casos de direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, previstos no art. 5º, XXXVI, CF/88. A eficácia do NCPC – salvo improvável e indesejável prorrogação da vacatio legis – será um fato a partir de março de 2016.
Contudo, a questão sobre a qual este artigo se debruça é diversa: aqui se busca saber se determinadas normas do novo diploma poderiam ter eficácia já durante o próprio período em que se aguarda a vigência da lei. Em particular, dirige-se a questão à identificação de regras do NCPC dotadas de capacidade interpretativa da legislação vigente. Defende-se, então, a vigência e a eficácia, durante o ano de vacatio, de certas regras do NCPC dotadas de caráter interpretativo em relação ao atual sistema.
Importante destacar alguns limites da análise que se pretende empreender. Em primeiro lugar, a questão da vigência das regras do NCPC é analisada em relação apenas a normas que (segundo reputamos) possuam conteúdo interpretativo. Em segundo lugar, ao se analisarem as normas interpretativas do NCPC não se discute ou se sugere sua retroatividade: tempus regit actum, algo que comporta poucas exceções, particularmente no âmbito processual. Em terceiro lugar, mas de fundamental importância, o artigo não defende a vigência na qualidade de norma interpretativa de regras que eventualmente possuam caráter restritivo de posições processuais.
Em relação a esse último caso, entende-se necessária a reserva legal, sob pena de se autorizar, pelo percurso argumentativo aqui desenvolvido, solução totalmente antagônica à proposta formulada: pretende-se analisar a eficácia interpretativa com o intuito de proteger o jurisdicionado, de garantir que não se utilize a nova legislação como pretexto para interpretar o sistema vigente a contrário senso durante a vacatio (considerando como não vigente tudo aquilo que não está previsto na legislação atual da mesma forma que na nova).
De modo a sustentar a hipótese proposta, o presente artigo será dividido em duas seções. A primeira para analisar a possibilidade de se reconhecer a vigência e eficácia de normas interpretativas do Novo CPC; a segunda para enumerar e descrever – sem qualquer pretensão ao esgotamento – dispositivos em que tal eficácia pode ser verificada, constituindo importante reforço argumentativo em relação a situações controvertidas no atual sistema.
2. Normas interpretativas: vigência e eficácia no novo CPC.
O legislador, diante de divergências ou distorções na interpretação da lei, pode pretender, ele próprio, reivindicar a interpretação do direito vigente. Como explica Miguel Reale, “há certos textos legais que provocam tamanha confusão no mundo jurídico que o próprio legislador sente a necessidade de determinar melhor o seu conteúdo”.3 Nesses casos, estamos diante de leis interpretativas, texto normativo que “determina e declara o verdadeiro sentido de uma lei anterior”. Elas “não visam a apurar a validade, nem a modificar a regra interpretada, mas apenas a esclarecer-lhe o significado”.5
Este caráter interpretativo, como esclarece Vicente Rao, não decorre da denominação “regra interpretativa”, mas de sua natureza: se um preceito novo declara o conteúdo preexistente, aquele será sempre interpretativo, assim o qualifique, ou não, o legislador”.6
Nesse sentido, é interessante perceber que, segundo a própria Comissão de Juristas responsáveis pelo anteprojeto, o NCPC procurou se pautar por um “saudável equilíbrio entre conservação e inovação” em relação ao direito vigente.7 Após as alterações havidas no processo legislativo, ainda mais elementos do CPC/73 foram conservados. Essa conservação, contudo, não se consubstancia apenas na mera reprodução do texto normativo anterior. Em muitos casos o texto foi alterado, procurando preservar ou reforçar determinada interpretação da regra prevista no antigo sistema.
O legislador realizou, deste modo, verdadeira interpretação autêntica, entendida como aquela realizada por meio de outra lei.8 Nesse sentido, é preciso reconhecer, com Miguel Reale, que, de fato, uma lei que interprete outra lei, declarando o sentido da anterior, a substitui.9 Por isso, “a interpretação não retroage: disciplina a matéria tal como nela foi esclarecido, tão somente a partir de sua vigência”.10
Embora se aceite que a norma interpretativa não possui caráter retroativo, ao menos em relação ao NCPC, não parece adequado sustentar que a nova disciplina mereça aguardar o fim do período de vacatio para produzir efeitos. Nesse sentido, Fredie Didier sustentou a função persuasiva de novas regras durante a vacatio, "como instrumento retórico-argumentativo" para demonstrar o acerto de posições doutrinárias e jurisprudenciais ou, pelo contrário, "a necessidade de superação imediata de entendimento jurisprudencial consolidado”.11 De modo similar, sustentou Didier que o NCPC também possui enunciados normativos novos “que nada inovam normativamente no direito processual civil brasileiro”, porque expressam entendimentos consagrados. Segundo o autor, tais enunciados “confirmam” o estado-da-arte em relação à aplicação do CPC/73. “Podem, por isso, ser utilizados imediatamente como reforço de argumentação”.
Daí ser relevante distinguir a ideia de regras interpretativas dos dispositivos que revogam regra da legislação anterior ou criam regra completamente nova. Em relação a estas, parece insustentável a vigência ou produção de efeitos jurídicos imediatos, ainda que possam ser utilizados como um programa para a atuação do Poder Público; contudo, quanto a regras interpretativas do direito vigente, pode-se falar em eficácia imediata.
É o que se pode entender da lição de Vicente Rao:
"nas leis interpretativas há de o interprete distinguir com rigorosa precisão: a) o que constitui, realmente, a declaração do sentido de uma lei antiga, e b) o que constitui matéria ou disposição nova, para subordinar esta última parte aos princípios e normas que disciplinam o momento da entrada em vigor das leis em geral e suas respectivas consequência".
Neste caso, não faz sentido tolerar a aplicação do direito vigente, no período de vacatio legis, de modo diferente da interpretação (ou “declaração de sentido”) fornecida pelo legislador. Sustentar o contrário seria permitir que o julgador pudesse ignorar a vontade legislativa e, sob o pretexto de que a nova lei não se encontra vigente, interpretar a lei atual ao arrepio da interpretação que será soberana. Ainda que não se queira reconhecer tal eficácia imediata, parece clara a magnitude do ônus argumentativo que é imposto ao julgador por estas regras interpretativas “sem vigência”. Para divergir delas, deve o julgador explicitar as razões pela qual não segue a interpretação proposta pelo legislador, ainda que não vigente.
Deste modo, reconhecendo-se o caráter interpretativo de regras inseridas no NCPC, bem como sua eficácia – seja em decorrência de sua efetiva vigência, modulando o disposto no art. 1.045, NCPC, seja em função do ônus argumentativo que impõe ao julgador que pretende interpretar livremente a lei vigente –, passa-se a examinar regras do NCPC que se enquadram na hipótese descrita nesta seção.
3. Exemplos de regras interpretativas no novo CPC.
Conforme advertência feita acima, esta parte não tem – e nem poderia ter – pretensão de exaurir as hipóteses de normas interpretativas. A indicação dos exemplos funciona como um estímulo para outros que, por interesse acadêmico ou necessidade ligada à realidade forense, vislumbrem outros dispositivos que possam ser enquadrados como tal (ou discordar da qualificação que ora se faz).
a) Artigos 9º e 10: tais dispositivos apenas explicitaram o conteúdo do princípio do contraditório, conforme há muito preconiza a doutrina. A rigor, nada se acresce ao sistema, exceto maior clareza quanto ao alcance da norma constitucional (CF, art. 5º, LV): o juiz deve observar e fazer observar o contraditório; deve exercer o que se convencionou chamar de direção material do processo (embora da expressão se possa eventualmente extrair mais do que a observância do contraditório). Daí porque o magistrado não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado oportunidade de debate pelas partes, ainda que se trate de matéria a ser conhecida de ofício. Busca-se, em suma, impedir decisões que tomem as partes de surpresa. O contraditório legitima o provimento. No exercício desse princípio se consubstancia o verdadeiro diálogo entre partes e juiz. Isso deve ser um fenômeno real, com conteúdo relevante, e não mera promessa ou assunto para debates doutrinários desligados da realidade.
b) Artigos 133 e seguintes: aí está a regulamentação do que a lei chamou de incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Se nem toda a regulamentação pode ser aproveitada, a ideia central de que só se chega à desconsideração após prévio contraditório deve prevalecer imediatamente. A rigor, ela é desdobramento lógico do que foi dito acima, sobre as normas dos artigos 9º e 10. Obviamente, isso não impede o exercício do poder de cautela, a justificar excepcional constrição antes da oitiva – embora evidentemente, a regra deva ser a da prévia oitiva.
c) Art. 190: trata da ampliação dos limites de convenção das partes em matéria processual. A rigor, a norma altera o sistema e, portanto, terá vigência apenas quando encerrado o período de vacatio. Mas essa assertiva deve ser entendida com um grão de sal. Até a vigência da lei, não está o órgão judicial adstrito ao negócio processual (ou sequer obrigado a apreciar sua validade) Contudo, isso não impede que hoje as partes celebrem convenções processuais, absolutamente lícitas, para produzir efeitos a partir da efetiva vigência da nova lei – em processos novos ou mesmo já instaurados. Ou seja: a lei não impede a celebração dos negócios imediatamente, mas apenas limita no tempo a vinculação do órgão jurisidicional.
d) Artigos 381 e seguintes: positivam a possibilidade da antecipação da prova mesmo sem o requisito da urgência. Isso já é admitido por parte expressiva da doutrina e pela jurisprudência – embora por esta com menor entusiasmo. Com efeito, os dois fundamentos novos trazidos pelo art. 381, I e II, já encontram respaldo no sistema processual. A prova antecipada deve ser vista como útil para permitir um melhor conhecimento dos fatos, dos riscos e das chances das partes, aumentando, com isso,a possibilidade de soluções de autocomposição, ao mesmo tempo em que pode melhor justificar a propositura de uma demanda (ou da resistência do réu).
e) Art. 966, § 2º, incisos I e II: tratam da admissibilidade da ação rescisória nos casos em que, conquanto não seja a decisão de mérito, ela impede nova propositura da (mesma) demanda ou o conhecimento de recurso. Não se trata de ampliar hipóteses de ação rescisória, para o que, realmente, seria preciso lei expressa (para ilustrar, veja-se a inserção da coação como fundamento da rescisória, conforme regra do art. 966, III; ou na hipótese de prova nova – não apenas documento novo – consoante inciso VII do mesmo dispositivo). Trata-se de dar interpretação sistemática à rescisória, cabível quando a decisão projetar efeitos substanciais para fora do processo (direta ou indiretamente).
f) Art. 1007, § 7º: é dispositivo que expressa manifestação do princípio da confiança legítima, isto é, da relação entre Judiciário e jurisdicionado pautada por lealdade e boa-fé. Trata-se do equívoco no preenchimento de guia de custas, que deverá ensejar oportunidade para superação do vício – e não, como atualmente tem entendindo parcela significativa da jurisprudência, deserção.
____________
1 V. Rao, p. 476
2 V. Rao, p. 477
3 M. Reale, p. 137.
4 V. Rao, p. 302.
5 M. Reale, p. 99.
6 V. Rao, p. 482.
7 Exposição de motivos NCPC.
8 M. Reale, p. 137
9 M. Reale, p. 138
10 M. Reale, p. 138
11 Fredie Didier. Eficácia do Novo CPC antes do término do período de vacância da lei.
____________
*Flávio Luiz Yarshell é advogado do escritório Yarshell e Camargo Advogados e Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
*Adriano Camargo Gomes é advogado, mestre em Direito pela Universidade de Oxfor.