I - Introdução
1. Os setores portuário e de navegação marítima têm registrado, especialmente nos últimos anos, um intenso crescimento em razão do reconhecimento de sua acentuada relevância econômica para o país. Apesar da crise econômica atual, tem sido verificado um aumento significativo no volume de cargas transportadas. A previsão de investimentos recentemente anunciada pelo Governo Federal no setor portuário, no valor de cerca de R$ 37,4 bilhões, consiste em mais um estímulo ao crescimento da área.1
2. Concomitantemente ao incremento das atividades desses setores, constatou-se a ampliação e maior rigor da respectiva fiscalização administrativa, a qual compete à Agência Nacional de Transportes Aquaviários ("ANTAQ"), nos termos da Lei nº 10.233/2001. De acordo com essa norma, estão sujeitos à fiscalização dessa agência reguladora, dentre outros, os agentes envolvidos na navegação fluvial de cabotagem, portos organizados, terminais portuários de uso privativo, estações de transbordo de cargas, instalações portuárias públicas de pequeno porte e instalações portuárias de turismo.
3. Nesse contexto, assume relevância o estudo dos processos administrativos sancionadores instaurados pela ANTAQ, sobretudo para analisar os aspectos que envolvem a observância do devido processo legal e da ampla defesa, abordando as principais questões que costumam ensejar controvérsias entre a autarquia e os agentes que atuam nesse setor, inclusive com desdobramentos na esfera judicial.
II – O Processo Administrativo Sancionador da ANTAQ
4. Os processos administrativos sancionadores da ANTAQ são regulados pela Resolução nº 3.259/ANTAQ, editada em 30.1.2014. De acordo com essa Resolução, o processo administrativo sancionador tem início com uma ação de fiscalização, que poderá ser ordinária, se prevista inicialmente no Plano Anual de Fiscalização da agência, ou extraordinária, nos casos em que for proveniente de uma denúncia. No curso dessa fiscalização, os agentes da ANTAQ poderão realizar uma vistoria completa nas instalações da empresa fiscalizada, podendo, inclusive, ter acesso aos sistemas informatizados para colher informações relativas ao objeto da fiscalização, tal como previsto no art. 9º da Resolução.
5. Nessa atividade, os agentes da ANTAQ deverão observar a correlação entre o objeto da fiscalização e as diligências realizadas, sob pena de ficar caracterizado desvio de finalidade por parte da Administração Pública, o que poderá ensejar a adoção da medida judicial cabível pelo fiscalizado, a fim de impedir a atividade de fiscalização exercida irregularmente ou, até mesmo, anular os efeitos dessas diligências.
6. Ainda segundo a Resolução nº 3.259/ANTAQ, caso os agentes identifiquem alguma irregularidade passível de sanção, deverão, necessariamente, notificar o fiscalizado para que a regularize, concedendo um prazo razoável para tanto. Se tal notificação não for cumprida no prazo estabelecido, poderá ser lavrado um Auto de Infração. Um aspecto importante merece destaque: caso a irregularidade identificada ofereça risco iminente, o agente de fiscalização poderá determinar medida administrativa cautelar de interdição das atividades do fiscalizado até que a irregularidade seja devidamente sanada.
7. No entanto, caso a aplicação da medida cautelar seja arbitrária, excessiva ou não atenda aos requisitos dispostos na Resolução, o fiscalizado, com base nos princípios constitucionais da proporcionalidade e legalidade, poderá ajuizar a medida judicial cabível para evitar lesão ao seu direito. Além disso, o fiscalizado também poderá apresentar um pedido de reconsideração à própria ANTAQ visando ao cancelamento da medida cautelar imposta pelo agente, demonstrando, de forma fundamentada, os motivos que ensejam o cancelamento.
8. Após a lavratura de Auto de Infração, a empresa fiscalizada passará a ser, formalmente, acusada no processo administrativo e poderá apresentar sua defesa no prazo de 15 (quinze) dias, oportunidade em que, se for o caso, deverá solicitar a produção das provas que entender necessárias à sua defesa. Caso haja interesse da empresa na celebração de Termo de Ajustamento de Conduta - TAC, tal intenção deverá ser manifestada, de forma expressa, em sua defesa administrativa.
9. No final do prazo de defesa, o agente responsável pela fiscalização emitirá seu "Parecer Técnico Instrutório" dirigido à autoridade julgadora, no qual opinará sobre a defesa e as provas nela requeridas, bem como a respeito de eventual requerimento de celebração de TAC, indicando também, se for o caso, as sanções que entende aplicáveis, assim como eventuais circunstâncias agravantes e atenuantes. No citado relatório, o agente de fiscalização também poderá, se for o caso, opinar pelo arquivamento do processo administrativo.
10. Uma questão controversa diz respeito à aplicação de sanções pela ANTAQ, mais especificamente ao art. 22 da referida Resolução. Segundo esse dispositivo, em se tratando de infrações continuadas, isto é, aquelas da mesma espécie que, devido às condições de tempo e lugar, devam ser consideradas uma só infração, o agente de fiscalização deverá aplicar ao fiscalizado as penalidades correspondentes “de forma cumulativa”. Tal dispositivo, em última análise, poderá resultar na imposição de mais de uma sanção para irregularidades que, em princípio, deveriam ser consideradas uma só, conforme posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.2
11. No julgamento da defesa, caso a autoridade julgadora conclua pela existência das infrações indicadas no Auto de Infração, poderá aplicar à empresa as sanções de (i) advertência, (ii) multa, (iii) suspensão, (iv) cassação, e/ou (v) declaração de inidoneidade ou caducidade, as quais impossibilitarão a participação da empresa fiscalizada em licitações de concessão ou arrendamento, sem prejuízo de multa. Contra essa decisão, poderá ser interposto recurso voluntário ou pedido de reconsideração (caso a autoridade julgadora tenha sido a Diretoria da ANTAQ).
12. É importante destacar que, na hipótese de ser verificado algum vício no processo administrativo ou na decisão, tal como a violação ao princípio da motivação ou do devido processo legal, o interessado poderá, com base no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, propor uma ação judicial, a fim de que seja anulada a decisão proferida no âmbito administrativo. A competência, nesse caso, será da Justiça Federal, em razão da presença da ANTAQ no pólo passivo da ação.
III - Conclusão
13. As controvérsias aqui expostas tendem a aumentar nos próximos anos, impulsionadas pelo intenso crescimento dos setores portuário e de navegação marítima, o que vem ensejando o aumento das atividades fiscalizatórias da ANTAQ. Outra consequência esperada é um incremento na "judicialização" das questões envolvendo a atuação dessa agência reguladora, o que também exigirá do Poder Judiciário conhecimento adequado a respeito das particularidades dos setores sob fiscalização da ANTAQ e do processo administrativo sancionador dessa autarquia.
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1 A esse respeito, confira-se: "[...] A previsão é de arrendamento de 50 áreas para movimentação de carga em portos públicos, administrados pela União, num total de R$ 11,9 bilhões. E 63 autorizações para construção de portos privados, os chamados TUPs, com investimento estimado em R$ 14,7 bilhões. O governo também pretende fazer a renovação antecipada de arrendamento, que deve injetar mais R$ 10,8 bilhões no setor. Num primeiro momento, estão previstos arrendamentos de 29 áreas no porto de Santos, o maior do país, além de outras 20 no do Pará. Em um segundo bloco serão incluídas áreas nos portos de Paranaguá, Itaqui, Santana, Manaus, Suape, São Sebastião, São Francisco do Sul, Aratu, Santos e Rio de Janeiro." (Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/2015/06/nova-fase-de-programa-preve-r-1984-bilhoes-para-infraestrutura.html).
2 "ADMINISTRATIVO - SUNAB - LEI DELEGADA nº 4/62 - INFRAÇÕES CONTINUADAS - MULTIPLICIDADE DE AUTOS. 1. As infrações sequenciais, violando o mesmo objeto da tutela jurídica, guardando afinidade pelo mesmo fundamento fático, constituindo comportamento de feição continuada, estão sujeitas a uma única sanção, aplicada e graduada conforme a sua intensidade, reiteração e consequências danosas a economia popular. Tipificação que deve ser demonstrada em um só auto de infração." (STJ. REsp 82414/DF. Rel: Min. Milton Luiz Pereira).
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*Luis Cláudio Furtado Faria é associado sênior de Pinheiro Neto Advogados.
*Erick Mateus Santos Faustino é auxiliar jr. da área contenciosa de Pinheiro Neto Advogados.
*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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