O Estado brasileiro corresponde a cerca de 1/3 de nossa economia e parte significativa de nosso PIB abrange atividades delegadas e reguladas pelo Poder Público, como exploração e produção de petróleo e gás natural, produção, transmissão e distribuição de energia elétrica, serviços de telecomunicações, transportes públicos e parcerias público-privada (PPP). A maioria das legislações específicas dessas atividades autoriza expressamente a utilização de arbitragem. E contratos de concessões relativos a áreas como petróleo, energia elétrica e telecomunicações contêm cláusula compromissória. Haveria então, no papel, um caso de amor entre o Estado brasileiro e a arbitragem. Na prática, contudo, o relacionamento mostra-se mais emocionante e o Estado e a arbitragem vivem entre tapas e beijos.
Exemplo disso é a recente sanção da reforma da lei (13.129/15), com permissão expressa e geral para arbitragem envolvendo entes públicos, dirimindo a discussão sobre arbitrabilidade em áreas em que inexistia norma específica. Mas, durante a tramitação do projeto, tentou-se incluir obrigação de o Estado regulamentar o procedimento arbitral, o que felizmente se frustrou, mas gerou como resquício um decreto presidencial sobre arbitragem em questões portuárias, contendo uma série de restrições.
A arbitragem apresenta-se como cláusula essencial para atrair investidores estrangeiros para negócios com os estados nacionais, dentre outros motivos por preocupações com neutralidade de juízo, especialidade do julgador e celeridade. Daí se distinguem dois grupos de países receptores de investimentos estrangeiros. De um lado, aqueles tradicionalmente favoráveis à arbitragem, como na América Latina o Chile, Colômbia e Peru, com fluxo constante de investimentos de fora. Do outro países mais erráticos, como Bolívia e Venezuela, que tinham sistemas simpáticos à arbitragem e, diante de governos mais nacionalistas, mudaram de posição, inclusive denunciando tratados de proteção de investimento estrangeiro. No fundo, o que está em jogo é a possibilidade ou não de o Estado alterar regras em desfavor do investidor estrangeiro, pois a arbitragem oferece um foro neutro e relativamente rápido para o investidor reclamar direito eventualmente violado, com decisão que pode ser executada tanto internamente quanto no exterior. O Brasil está no grupo pró-arbitragem, mas non troppo, pois por exemplo não ratificou a Convenção de Washington de Proteção de Investimentos Estrangeiros, e o seus tratados bilaterais de investimentos mais recentes, com Angola e Moçambique, estabelecem arbitragem voluntária, fugindo do padrão do sistema obrigatório do Banco Mundial (ICSID).
A bem da verdade, a postura do Estado brasileiro mostra-se dúbia. Apoia formalmente a arbitragem, mas deixa uma porta aberta para contestá-la quando lhe interessar, baseada no debate sobre arbitrabilidade objetiva, vale dizer, em que matérias podem ser resolvidas pela via arbitral. A doutrina distingue os atos de gestão conduzidos pelos entes estatais, tais como a concessão de atividades econômicas a entes privados, plenamente arbitráveis, dos atos de império, no qual o Estado agiria no interesse público e, portanto, não poderia submeter a arbitragem. Ocorre que os entes públicos muitas vezes usam essa teoria como uma "carta coringa": se lhe convém evitar a arbitragem, alegam que se trata de ato de império. Espera-se que a jurisprudência se consolide no sentido de que a regra geral é a plena arbitrabilidade de controvérsias decorrentes de contratos envolvendo entes públicos e que a exceção do "ato de império" muito raramente deve ser aplicada (se for, considerando que as teorias mais modernas de direito administrativo têm se afastado da dicotomia atos de império e de gestão).
Vale lembrar, ainda, o descabimento de cautelares para suspender arbitragens, sob o argumento de que a matéria concerniria atos de império, pois a Lei de Arbitragem consagra o princípio da competência-competência, segundo o qual cumpre ao próprio árbitro, e não ao Poder Judiciário, julgar sua jurisdição.
Quanto ao Decreto relativo a arbitragens no setor portuário, a ideia de regulamentação por si só seria positiva, mas entendo que houve excessos. Não caberia tanto detalhamento. Algumas provisões são razoáveis, tais como aplicação de sede no Brasil e lei brasileira. Outras vão além, como a preferência a câmaras nacionais. O que acontecerá em uma licitação de contrato de alto valor em que todos os licitantes forem investidores estrangeiros e todos sugerirem entidade de alta reputação para administrar eventual litígio? Não haveria aí qualquer mal.
Lamentável, ademais, o dispositivo no sentido de que questões relativas a reequilíbrio econômico-financeiro dependeriam de compromisso para serem objeto de arbitragem. Abre-se a porta para a Administração Pública refugar o foro arbitral em ponto fulcral de contratos com entes de direito administrativo.
O Decreto estabelece que a contratada adiantará os custos e despesas da arbitragem. Por mais que se entenda em tese a preocupação da Administração Pública com esses gastos, pois ela não têm a mesma flexibilidade para dispêndio de recursos, a solução radical de transferir esses custos para a parte privada pode arrostar o princípio da igualdade das partes. Imagine-se, por exemplo, a situação absurda, se o Estado pedir perícia cara para sua defesa e a parte privada se vir obrigada custeá-la sozinha.
Last but not least, o Decreto prevê a publicidade de todos os atos de arbitragens com entes públicos, supostamente em linha com o princípio da publicidade dos atos administrativos. Discordo desse entendimento. Há que se dar certa publicidade a determinados atos da arbitragem, por conta desse princípio, mas ela não pode ser ampla, geral e irrestrita, por ferir o próprio espírito da arbitragem. Não se espera que na arbitragem comercial as audiências sejam abertas ao público em auditórios, nem que todos os documentos técnicos apresentados, envolvendo pontos sensíveis e confidenciais, possam ser lidos por qualquer um. O Decreto perdeu uma bela oportunidade de regulamentar com maior razoabilidade esse ponto e preferiu "abrir a porteira", talvez sem se dar conta das consequencias.
Em suma, houve vários passos a frente no uso da arbitragem em contratos com entes públicos, com a reforma da Lei, e um passo para traz, diante dos excessos do Decreto regulando arbitragens no setor portuário. Espero que tenha sido um ato falho isolado e que as cláusulas compromissórias relativas a outros setores regulados não reproduzam as más-ideias do malfadado Decreto.
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*Joaquim de Paiva Muniz é sócio do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados.