Um dos instrumentos de início da persecução penal é justamente a notitia criminis levada ao conhecimento das autoridades responsáveis. Tanto é que o CPP reservou espaço para que qualquer pessoa do povo, na mais abrangente legitimidade, que tiver conhecimento da prática de ação penal pública, possa comunicá-la por escrito ou verbalmente para que sejam analisadas e, se confirmadas, sirvam de suporte para a instauração do competente procedimento.
Assim, é até comum a ocorrência de cartas apócrifas e denúncias anônimas noticiando a ocorrência de fatos criminosos. É certo que tais peças devem ser recebidas com reservas, apesar de permitirem uma investigação preliminar, sem a instauração de qualquer procedimento. São documentos frágeis e, se aceitos sem as cautelas legais, poderão fulminar de nulidade eventual processo instaurado.
Mas vale-se o processo penal também de provas obtidas por meio de delações premiadas, nas situações em que o acusado, sponte propria, voluntária e eficaz, colabora com as investigações levadas a efeito em determinado processo, apontando os nomes das pessoas envolvidas com suas respectivas condutas, visando esclarecer de forma definitiva o ilícito perquirido e, em compensação, candidata-se a receber as benesses anunciadas na legislação específica. Tamanha a importância do instituto que o legislador, numa terminologia adequada e sem qualquer desprestígio para o acusado, rotulou-o de colaborador.
A presidente Dilma Roussef anunciou na imprensa que não respeita delator, referindo-se ao depoimento do dono da empreiteira UTC, Ricardo Pessoa e acrescentou ainda que aprendeu a rejeitar Joaquim Silvério dos Reis, delator da Inconfidência Mineira.1 Referida manifestação foi motivo de reiteradas críticas nos meios de comunicação porque a Presidente desrespeitou a legislação brasileira a respeito do instituto da delação.
Não se pretende neste espaço discutir a natureza jurídica da delação premiada, mas sim, em rápidas pinceladas, tecer considerações a respeito da sua credibilidade e até mesmo da conduta ética do delator. Sabe-se que, até o presente, foram ofertadas 18 delações na Operação Lava Jato, encarregada de investigar as empreiteiras que negociaram com a Petrobras. Causa até estranheza um número tão expressivo de réus colaboradores, incomum na maioria das investigações, observando que o material coletado nessa modalidade, por si só, não representa prova inconcussa e sim aponta um norte para a busca da verdade processual.
A conduta do delator deixa de ser ética em termos valorativo por ter contrariado o código de referência social. Cria-se, então, se assim comportar o pensamento, uma nova camada ética, encarregada de regular a relação entre um grupo delinquente, de acordo com o seu critério de conveniência normativa. Um dos preceitos do grupo que opera na criminalidade é dividir as tarefas entre seus membros e, acima de tudo, manter o silêncio necessário a respeito das empreitadas criminosas. Uma voz somente é capaz de desbaratar toda uma organização. Um depende do outro para alcançar o objetivo e atingir o sucesso esperado. Estabelece-se, na realidade uma relação contrária à ética que predomina na sociedade constituída sobre sólidos pilares morais, e legais. Desta forma, o errado passa a ser o certo e o certo se transforma em errado.
Quando um dos membros trai a confiança do grupo e revela os ilícitos praticados, quebra um pacto de lealdade firmado em torno de um empreendimento criminoso, porém, por outro lado, tal transgressão refaz o laço ético com o grupo social, até então prejudicado e faz nascer uma nova fidelidade. "A palavra 'trair', pondera Bonder, tem três facetas inseparáveis. Ela denota o não cumprimento de convenções ou de acordos previamente estabelecidos, a não correspondência a expectativa e revela informações preciosas sobre as intenções de um indivíduo".2
A conduta daquele que pratica a delação revela sim uma traição ao grupo ajustado para praticar crimes contra uma sociedade até mesmo indefesa, levando-se em consideração que somente após a prática criminosa é que será estabelecida a estratégia defensiva e a persecução policial. Mas, justifica-se plenamente pelo arrependimento (jus poenitendi) que é inerente ao ser humano, justamente pela sua natureza racional, além de proteger o grupo social que vem cumprindo corretamente as tarefas impostas pelas convenções.
O bem maior que se tem em mira não é o respeito à individualidade e sim o respeito ao grupo em que se vive. Se a comunidade tem por obrigação cumprir as leis consideradas justas pelo sistema, não há como excluir um grupo, diferenciá-lo e permitir livre acesso às práticas criminosas. Sem observar a lei, despojado de preceitos éticos, o homem é mais selvagem que o próprio animal. O próprio pensamento filosófico de Jeremy Bentham e Stuart Mill aponta para o sistema ético do consequencialismo, no qual as ações que interessam são aquelas que produzem bons resultados para um maior número de pessoas.
A partir do momento em que uma nação necessita se valer de seus cidadãos mediante recompensa para combater os delinquentes, está assumindo que seu sistema de segurança é ineficaz ou que, com o crescimento desmedido e até mesmo consentido da violência, seu aparelhamento não reúne mais condições de contra-atacar e muito menos de administrar o nível da criminalidade.
A sociedade não é uma ficção, um ente artificial e sim o produto de uma construção humana, como preconizavam os gregos, no sentido de que somente a polis era a base da essência humana e, como tal, deve ser protegida. No instante em que se agride a comunidade constituída politicamente, é justo a qualquer pessoa tomar as providências defensivas, quer seja por meio de uma simples delatio criminis ou pelo instituto da delação premiada. Deve-se proteger os cidadãos, com a segurança necessária para que todos possam ter uma vida melhor e compatível com a dignidade consagrada constitucionalmente. A conduta do delator passa, portanto, a ser ética diante da comunidade e legal em razão da lei existente. Quer dizer, retorna ao leito natural e merece credibilidade.
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1 Folha de São Paulo, edição de nº 31.499, de 30 de junho de 2015, p. A4.
2 Bonder, Nilton. A alma imoral: traição e tradição através dos tempos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.36.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado, reitor do Centro Universitário do Norte Paulista, em São José do Rio Preto;
*Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, mestrando em direito pela Unesp/Franca, pós-graduando em direito empresarial pela FGV/São Paulo, advogado.