Política v.s. Direito – Os Limites da Jurisdição Constitucional
Alcimor A. Rocha Neto*
Quando a Corte Suprema age dessa forma não passa ela a agir mais como um órgão político – eminentemente político, quero dizer – do que jurisdicional. Não passa a exarar decisões políticas encobertas por um manto de sentença – sentido amplo? São os problemas políticos judicializáveis a ponto de se vir a submetê-los a soluções técnico-jurídicas com parâmetros pré-estabelecidos, o que é muito próprio de todo e qualquer litígio processual comum?
São muitos os questionamentos que cabem sob o teto desta problemática que proponho, vale dizer, sob a questão da tensão entre política e direito.
Ontem o Supremo Tribunal Federal suspendeu um depoimento na CPI dos Bingos quando provocado, via Mandado de Segurança, por um Senador da República. E aqui busco inserir esse caso concreto no problema teórico que acima expus.
Sou dos que entendem que a jurisdição constitucional não somente é legítima instância de controle da vontade majoritária como também é instrumento necessário para que uma democracia possa ser realmente tida como tal. Penso que o princípio democrático somente é efetivado, de fato, quando há, no ordenamento constitucional de um dado Estado, mecanismo de controle da vontade majoritária, vale dizer, quando há um poder contra-majoritário. Há-se que se trazer à tona o fato de que o princípio democrático não se confunde com o princípio majoritário. Se assim o fosse, poder-se-ia, com toda convicção e certeza, aduzir que o regime democrático seria sinônimo de ditadura da maioria. Parece um absurdo e realmente o é.
Pode-se, pois, concluir que não será sempre a vontade da maioria o elemento concessor do caractere de democrático a determinado algo – regime de governo, Estado, órgão etc. Em um efetivo regime democrático existem normas e princípios que não podem ser modificados nem mesmo pela unanimidade e isso não implica na negativa do regime democrático. Ora, se a negativa, nesse caso, da possibilidade de a maioria deliberar sobre determinados assuntos não exprime nenhum sentimento ou ideologia antidemocrática – e parece que ninguém pode argumentar de modo contrário a isso – porque com relação à jurisdição constitucional esse argumento seria válido? Dito de outro modo: argumentam os que posicionam contra a legitimidade da justiça constitucional que o fato de não serem os membros que a compõe eleitos diretamente pelo povo – único detentor do poder soberano, ou o poder soberano, em si – retirariam dela todo e qualquer elemento legitimador. Ou seja, como a maioria nenhum poder direto mantém sobre a jurisdição constitucional, careceria ela do elemento democrático, tendo em vista que atuaria à revelia dos detentores do poder soberano. Mas a maioria nada pode contra as cláusulas pétreas – e nem a unanimidade, ressalte-se. E esse fato ao invés de negar o princípio democrático faz, mesmo, é torná-lo mais efetivo, quando afasta de maiorias circunstanciais deliberações que poderiam desfigurar a própria organização do Estado.
O princípio democrático ganha nova configuração no Estado contemporâneo de modo que nele passa o controle jurisdicional da constitucionalidade a constar como uma atenuante dos riscos de arbítrio a ser levado à cabo por parte de um dos poderes sobre os outros. Ensina Ana Paula de Barcellos que “a doutrina contemporânea da separação de poderes é um mecanismo engajado em um propósito: controlar o exercício do poder [...] garantindo-se o Estado de Direito e, principalmente, os direitos fundamentais”1.Este o papel central do controle jurisdicional da constitucionalidade na nova democracia.
Com efeito, a jurisdição constitucional efetiva o princípio democrático antes de feri-lo. A justiça constitucional realiza a democracia, por exemplo, ao assegurar um correto processo legislativo na elaboração das leis ou quando protege a minoria contra os ataques da maioria, analisando o conteúdo das normas, e não apenas seus aspectos procedimentais. E não é a justiça constitucional que determina que a minoria deve ser protegida, é a própria Constituição que o faz. Ora, qual o objetivo da Carta Fundamental ao exigir um quorum de três quintos para se emendar a Constituição se não for o de exigir a participação da minoria nas decisões políticas de grande importância? Sem a participação da minoria no processo de mudança constitucional, caso venha a se efetivar tal modificação, ela será escancaradamente inconstitucional. E quem haveria de proteger o interesse das minorias na constitucionalidade da lei – entendida aqui no sentido amplo – senão a jurisdição constitucional? Caso se deixasse a cargo do próprio Parlamento essa decisão ele estaria a julgar a si próprio e a maioria deliberaria segundo suas conveniências, declarando constitucional uma lei escancaradamente contrária à Constituição.
Um dos mais importantes princípios guias da interpretação constitucional – se é que se pode vir a escaloná-los levando-se em conta suas maiores ou menores importâncias – é o da presunção de constitucionalidade das leis e atos emanados do poder público. Tal princípio poderia, em enxutíssimas palavras, ser resumido na seguinte expressão: in dubio pro constitucionalidade. Esse princípio hermenêutico constitucional tem uma implicação material muito importante: ele significa uma confiança outorgada ao Poder Legislativo – e aos demais – na observância e na interpretação correta dos princípios constitucionais.2
Como parece muito óbvio, não é que se vai reduzir a Constituição ao seu fundo real, homenageando-se atos e instrumentos normativos infraconstitucionais em detrimento da Carta Política. Não é que se a reduzirá à uma “mera folha de papel”, para usar, cá, uma expressão do esquerdismo hegeliano de Lassale. Não é isso. Apenas se pretende, com tudo isso, alertar para a excepcionalidade da atuação de um poder na esfera d’outro.
É somente diante de casos excepcionais que o Direito pode ser usado como instrumento para limitar atuações fiscalizatórias da política. Uma “fumaça do bom direito” não tem – ou não deve ter – o condão de conceder fundamento para a anulação de um ato eminentemente político como o é a convocação de alguém para depor numa Comissão Parlamentar de Inquérito.
Se o que se fez ao analisar a medida cautelar em mandado de segurança no caso específico que aqui se analisa, lançando-se mão de um “juízo prévio e sumário” onde “a cognitio é, por definição, superficial e provisória, porque se atém à estima de dados unilaterais, ante o caráter de urgência da tutela pretendida”3, como se admitir que essa análise superficial possa aferir com a clareza meridiana que reclama a interferência de um poder noutro, que há abuso no ato eminentemente político da CPI dos Bingos?
Se diante de uma dúvida fundada – e é o caso, pois a cognição na cautelar é apenas superficial e precária – deve-se optar pela constitucionalidade, está mais que claro que houve desrespeito, por parte do STF, ao princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder público.
______________
1 BARCELLOS, Ana Paula de. Separação de Poderes, Maioria Democrática e Legitimidade do Controle de Constitucionalidade. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro, v. 53, 2000, p. 84.
2 ENTERRIA, Eduardo Garcia de. La Constitucion como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1994.
3 Essas palavras são do eminente Ministro Cezar Peluso na decisão em que concede a liminar para suspender o depoimento na CPI dos Bingos.
_________________
*Bacharelando em Direito na Universidade de Fortaleza, 19 anos e autor do livro "Direito Constitucional e Teoria Política".
______________