Com o propósito declarado de obter do processo o "maior rendimento possível" (conforme exposição de motivos do NCPC), a mais significativa alteração introduzida pelo novo CPC no regime da coisa julgada material foi a ampliação de seus limites objetivos.
A inovação legislativa foi feita de modo a que não apenas a parte dispositiva da decisão que julga o pedido principal fosse objeto de imunização a novas discussões futuras, mas eventualmente também as questões prejudiciais resolvidas ao longo da fundamentação, desde que atendidos os requisitos do artigo 503.
Contudo, se é certo que esse dispositivo buscou estabelecer algumas limitações, restringindo a formação da coisa julgada a apenas situações determinadas em que fiquem resguardados o interesse público e as garantias processuais das partes, de outro lado ele não parece ter atingido o grau de clareza necessário para prevenir as dúvidas acerca de sua efetiva extensão. O texto que entrará em vigor em março de 2016 tem a seguinte redação:
Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.
§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:
I – dessa resolução depender o julgamento do mérito;
II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia;
III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal.
§ 2º A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial.
Da leitura do parágrafo primeiro e seus incisos, percebe-se que o legislador permitiu a extensão dos limites objetivos da coisa julgada às questões prejudiciais apenas quando concorrerem três condições, enumeradas nos incisos I a III. No inciso II foi imposta a necessidade de haver contraditório prévio e efetivo, como meio de se preservar a ampla defesa e conferir maior legitimidade à parte da decisão que restará imunizada. Já a condição prevista no inciso III destina-se a prevenir que a nova regra sirva para contornar regras de competência absoluta, bem como para evitar que o curso do processo se alongue com incidentes desnecessários de deslocamento de competência.
Mas a condição que chama mais atenção é a constante no inciso I, que prevê a necessidade de que o julgamento do mérito tenha dependido da resolução da questão prejudicial. Como aplicar tal dispositivo? Qual exatamente o sentido que o vocábulo "depender" assume no texto? A questão é polêmica, já suscita debates e seguramente será objeto de rica divergência doutrinária e jurisprudencial. Nos debates no âmbito do subgrupo de sentença e coisa julgada do Ceapro, surgiram ao menos três correntes.
A interpretação majoritária que se formou no subgrupo vai no sentido de que por meio desse dispositivo o novo Código visou a excluir a formação da coisa julgada sobre o que houver sido resolvido a respeito das questões prejudiciais, quando na sentença houver outros fundamentos autônomos capazes de sustentar a decisão. Essa circunstância é encontrada nos casos em que a resolução da prejudicial não ocorre no mesmo sentido da decisão sobre o pedido principal. Nessas hipóteses, a despeito da sua análise na motivação, o juiz terá encontrado outras circunstâncias impeditivas, modificativas ou extintivas que determinam rejeição do pedido, o que torna desnecessária aquela análise mais aprofundada da questão antecedente que legitima a estabilidade processual sobre o que a respeito dela tenha sido resolvido.
Um dos mais importantes reflexos dessa linha de entendimento, para o dia a dia de juízes e advogados, se traduz na manutenção do requisito da sucumbência, porque sem a formação da coisa julgada sobre a prejudicial o réu vencedor não será compelido a recorrer da sentença que lhe tenha sido favorável no que diz repeito ao pedido principal.
Para visualizarmos na prática essa situação, pensemos em uma demanda de cobrança de uma parcela vencida de um contrato de compra e venda em que o réu alegue em contestação que (i) o contrato é nulo e (ii) que a obrigação não poderia ser exigida, porque o autor não cumpriu com sua parte no contrato. Ora, se a sentença considerar o contrato nulo, isso determinará a improcedência do pedido principal sem que seja necessário analisar as demais questões: nisso consiste a prejudicialidade. Suponhamos, contudo, que o juiz decida na fundamentação que o contrato é válido, mas que apesar disso o autor não poderia exigir a obrigação porque, à luz da situação concreta, de fato o autor não havia adimplido com sua parte, concluindo, assim, pela improcedência do pedido. Segundo a interpretação que a maioria do subgrupo confere ao inciso I, não haveria formação de coisa julgada sobre a validade do contrato, porque como existe um fundamento autônomo capaz de sustentar a decisão (a exceção de contrato não cumprido), fica rompida a relação de dependência exigida pela lei. Isso porque a conclusão última do juiz não dependeu da decisão quanto à questão prejudicial, que sequer necessitaria ser analisada com maior profundidade. Nesse sentido, além de a coisa julgada não cobrir a questão prejudicial, não haveria interesse recursal da parte vencedora (quanto ao pedido principal) em impugnar a sentença no capítulo da questão prejudicial (em que restou vencida).
Vale destacar que se o autor vencido também interpuser recurso, os benefícios dessa solução para o aceleramento do processo não serão tão evidentes, porque todas as questões suscitadas e discutidas pelas partes serão devolvidas ao tribunal por disposição legal (art. 1.013, §§ 1º e 2º). Se o autor, porém, deixar de apelar - e lembremos que o Código desestimula recursos por outros instrumentos, tais como a "sucumbência recursal" (art. 85, §11), a solução ora proposta terá a vantagem de evitar que um processo que poderia desde logo ser encerrado continue pendente apenas em razão da insurgência daquele que já obteve êxito no pedido principal.
Mas essa corrente encontra a oposição de alguns argumentos respeitáveis. Uma linha alternativa sustenta que, a partir do momento em que a controvérsia sobre a relação prejudicial é estabelecida entre as partes, todos os litigantes passam a fazer jus à prestação de tutela jurisdicional que decida essa questão em caráter definitivo. Para essa segunda corrente, a cognição do juiz sobre as questões suscitadas incidenter tantum ou principaliter deve ser a mesma, de modo que uma coisa julgada secundum eventum litis colocaria em xeque a isonomia entre as partes. Ademais, eventual incerteza quanto à extensão da coisa julgada também seria potencialmente lesiva para a parte vencedora na questão prejudicial, que correria o risco de ver prescrita sua pretensão se, ao final, a sentença baseasse a decisão de mérito em outro motivo.
E tampouco se impressiona a divergência pela ênfase que a primeira corrente dá à palavra “depender”, na medida em que o art. 325 do CPC de 1973 já se valia dela para estabelecer os pressupostos do pedido de declaração incidente. Como a sentença sobre o pedido de declaração incidente sempre gerou coisa julgada, a despeito de se prever que a questão prejudicial deveria “constituir pressuposto necessário para o julgamento da lide” (art. 470 do CPC de 73), a dispensa apenas desse pedido pelo Novo CPC não teria alterado a natureza prejudicial da questão, tampouco o dever de o juiz decidi-la expressamente. Daí porque a segunda corrente atribui relevância ao vocábulo “depender” apenas para distinguir as questões processuais das de mérito.
Consequência disso tudo é que, para a segunda corrente, no exemplo dado acima, haveria também a formação da coisa julgada em relação à prejudicial de validade do contrato e, consequentemente, interesse recursal de o réu impugnar a questão prejudicial isoladamente, mesmo que vencedor na questão principal. Como não restringiu o legislador, não poderia restringir o intérprete a formação da coisa julgada apenas à questão principal. Logo, seria possível uma coisa julgada favorável na principal e desfavorável na prejudicial, o que tornaria admissível e recomendável a interposição de apelação, pelo réu, apenas em relação à prejudicial. Tal interesse recursal, aliás, estaria em linha com a devolutividade prevista no art. 1.013, par. 2º, do Novo CPC, cuja redação manteve a busca por maior rendimento da instância recursal, que deve examinar também as questões não acolhidas. Assim, se a questão da validade do contrato puder ter relevância além dos limites da demanda posta, a parte que foi derrotada nessa questão deve ter a mesma condição que a apelação da parte vencida na questão principal de obter, segundo seu interesse, o pronunciamento em caráter definitivo sobre o ponto não acolhido em primeira instância.
Por fim, uma terceira corrente que se formou nos debates – que já pode ser já apontada como eclética, por mesclar entendimentos das duas anteriores – entende que, considerando o mesmo exemplo acima tratado, não há formação da coisa julgada sobre a questão prejudicial, como propugna a primeira corrente; mas que há interesse recursal quanto à questão prejudicial, como defendido pela segunda. Isso porque, com o recurso, o réu poderia obter a formação da coisa julgada em seu favor tanto em relação à questão principal, como em relação à questão prejudicial.
Ou seja: para a terceira corrente, a coisa julgada não cobre a questão prejudicial julgada de forma distinta da questão prejudicial, mas há interesse recursal de a parte tentar modificar esse entendimento, via recurso de apelação. Assim, no tribunal, se a decisão for favorável ao apelante, então haveria coisa julgada na principal e na prejudicial.
No subgrupo de coisa julgada, como se disse mais cedo, prevaleceu o primeiro entendimento. Levado o tema à assembleia do Ceapro (com a participação de todos os associados do Centro), o enunciado foi aprovado, porém sem atingir o quorum qualificado necessário para que se transformasse em um enunciado do Centro de Estudos Avançados de Processo (para conhecer quais foram os enunciados aprovados, veja aqui). Isso demonstra, uma vez mais, como o tema é polêmico.
Sem podermos manifestar solução definitiva, resta-nos trazer ao leitor duas notas finais. Primeiro, as dúvidas a respeito do problema ora discutido foram antevistas e poderiam ter sido equacionadas ainda no processo legislativo, houvesse sido tomada em consideração a recomendação feita por texto anterior do Ceapro, no sentido de que o Congresso Nacional se posicionasse de modo explícito sobre o tema aqui tratado. E segundo, na prática do contencioso civil a mera existência de uma divergência interpretativa deverá levar a que o advogado diligente, que se veja na situação aqui tratada, recorra por cautela da sentença cuja questão principal lhe foi favorável, até que o STJ finalmente pacifique a questão. Assim, ao menos por ora, o esperado maior rendimento do processo é ainda objeto de rico debate.
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*Marco Antonio Perez de Oliveira, Fábio Peixinho Gomes Correa, Luiz Dellore, Thiago Siqueira, Rennan Thamay, Guilherme Setoguti, Daniel Guimarães Zveibil, Antonio Carvalho, Leonard Schmitz e Letícia Arenal são membros do subgrupo de "Sentença e coisa julgada" do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo.