Migalhas de Peso

Prisão, doce prisão

Confira a crônica sobre o useiro de pequenos delitos.

31/5/2015

Era useiro e vezeiro na prática de pequenos delitos na cidade também pequena. Guardava os nomes das pessoas, suas moradias e, pela memória invejável, retinha até as placas dos carros. Pelo menos daqueles que despertavam interesse em suas empreitadas ilícitas. Trabalhava como entregador de uma mercearia. Rodava praticamente toda cidade com uma bicicleta que trazia uma grande cesta sobre o pneu dianteiro. Às vezes chegava a transportar até botijão de gás.

À noite batia o cansaço. A mulher rotineiramente não reclamava das suas pedaladas, mas sim das paradas pelos bares, onde bebia com os amigos. Várias discussões eram travadas e ele, sempre cabisbaixo, pois era conhecedor das garras da Maria da Penha, não se atrevia em alimentá-las ou pelo menos justificar sua necessidade de se avistar com os amigos. Entrava em casa calado e saia mudo, dizia ele aos colegas.

Mas, sua vocação era para a prática de pequenos furtos, em procedimentos devidamente preparados, com pouco esforço, num curto espaço de tempo, preferencialmente os que não exigiam grandes habilidades, como a tão cansativa escalada prevista no Código Penal. Assim, durante o dia avistava as casas e os carros, arquivando-os em sua memória e à noite, quando não se reunia com os amigos, executava seus planos, subtraindo pertences dos seus interiores. O encontro no boteco era justamente para vender o material arrecadado.

Na cidade pequena as bocas são grandes e apontam o crime, o criminoso bem antes de a polícia iniciar sua investigação. Em determinado dia, como era de se esperar, foi preso em flagrante delito durante a noite e encaminhado à delegacia para a lavratura do auto. Sem muita dificuldade confessou o ilícito que acabara de praticar, assim como outros em datas anteriores. Foi aconselhado a jogar limpo e assim agiu pensando em receber algum benefício, como no caso dos ricaços da Petrobras.

O advogado a ele nomeado não conseguiu a liberdade provisória, vez que a prisão preventiva foi decretada como garantia da ordem pública e o furtador representava um perigo concreto para a comunidade e não era merecedor da confiança judicial.

Os dias foram se passando lentamente na minúscula e velha cela a ele reservada, com pintura gasta e escritos na parede contendo palavras de ordem e esperança que exaltavam o preso a ter fé que a liberdade logo chegaria.

No final de uma tarde observou que a porta de sua cela estava entreaberta. Nem imaginou que alguém propositadamente tenha assim agido, pois a fuga não fazia parte de seus planos. Aproveitou-se, no entanto, do descuido dos funcionários e calmamente caminhou para fora do presídio, como se fosse ali um frequentador.

Rumou para casa, agora com mil planos na cabeça. Ponderou à mulher que iria dar continuidade à sua fuga e buscaria refúgio na fazenda onde trabalhava o irmão dela, proposta que foi rechaçada de plano. Nova tentativa foi feita e desta vez envolvendo outro parente dela, liminarmente também indeferida. E aí começou outra discussão, porém com o controle total do fugitivo. Entre gritos e ofensas de ambos os lados, desferiu um soco que atingiu o queixo da mulher, sangrando.

Imediatamente, rumou para a cadeia, ainda sem vigilância, e acomodou-se confortavelmente em sua cela, sem que despertasse atenção de qualquer policial, até mesmo do preso vizinho.

No outro dia logo de manhã foi retirado da cela e encaminhado para sala do delegado. Ali se encontrava sua esposa, ainda com a marca do ferimento, que em altos brados fazia a denúncia do ataque e exigia as providências cabíveis. Tomou ciência da acusação da esposa, como sempre, cabisbaixo. A autoridade, ainda com pouca experiência na carreira, mas querendo preservar o bom serviço carcerário, rejeitou a imputação feita e garantiu que o preso se encontrava em sua cela, atestando até mesmo seu bom comportamento. Para finalizar, o delegado censurou a denúncia da mulher e deixou a entender que outro homem estivera em sua casa, esse sim responsável pela lesão, mas agora acobertado por ela.

No final do dia o furtador deitado em seu estreito colchão, reconfortava-se lendo a mais sábia frase no teto da cela: prisão, doce prisão.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, Reitor da Unorp/São José do Rio Preto.

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