A Suprema Corte Suíça decidiu intrincada questão envolvendo os limites da coisa julgada em arbitragens internacionais sediadas na Suíça, proferindo precedente relevante, que contém importantes lições de direito processual e direito internacional privado.¹
O caso apreciado pela Suprema Corte Suíça tinha como pano de fundo a celebração de contrato, com cláusula compromissória, entre uma companhia estatal de transporte ferroviário (cujo país não foi identificado) e uma construtora privada, tendo por objeto a construção de uma ponte. Posteriormente, as partes firmaram termo aditivo ao contrato, que aumentava o preço da obra e dilatava seu prazo.
Nesse contexto, foi inicialmente proposta uma ação judicial, pela procuradoria governamental do país em questão, com fundamento no interesse público, em face de ambas as contratantes (a empresa estatal e a construtora privada), visando à declaração de nulidade do termo aditivo, ao argumento de que os poderes do representante da estatal que havia firmado o aditivo já haviam cessado ao tempo da assinatura. Tendo restado derrotada em tal ação, a empresa privada propôs, posteriormente, uma arbitragem contra a empresa estatal, sob o regulamento da Câmara de Comércio Internacional (CCI) e com sede em Zurich (Suíça), a qual, embora tivesse objeto mais amplo (cobrança), tinha como questão preliminar a declaração de validade do mesmo termo aditivo.
Ambos os Tribunais se disseram competentes e chegaram a conclusões diversas, proferindo decisões conflitantes no que diz respeito à validade do termo aditivo – o Tribunal Superior Comercial do país em tela reputou nulo o ato, ao passo que o Tribunal Arbitral sediado na Suíça declarou sua validade. Contra a sentença arbitral, a companhia estatal interpôs recurso para o Tribunal Federal suíço (que, embora tenha esse nome singelo, é a Suprema Corte do país)², sob o fundamento de violação da coisa julgada, pois a decisão do Tribunal Superior Comercial fora anterior à sentença arbitral.
Inicialmente, cabe ressaltar que a jurisprudência suíça entende existir violação da ordem pública processual em arbitragens, dando ensejo à anulação da sentença arbitral, quando "princípios fundamentais e geralmente reconhecidos tenham sido violados, de modo a conduzir a uma contradição insuportável com o sentimento de justiça, de tal sorte que a decisão aparente ser incompatível com os valores reconhecidos em um Estado de Direito".
Estabelecido que o princípio da autoridade da coisa julgada, em tese, constitui um princípio fundamental e geralmente reconhecido, passível, quando inobservado, de violação da ordem pública internacional suíça, a decisão passa a analisar as questões de direito internacional privado envolvidas.
Embora declare que a extensão subjetiva, objetiva e temporal da autoridade da coisa julgada dependa da lei do Estado de origem da decisão, o Tribunal, contraditoriamente, mas com base em extensa jurisprudência, busca a "harmonização" com os princípios vigentes na Suíça. Assim, "um julgamento estrangeiro reconhecido na Suíça não terá senão a autoridade que seria sua, se emanasse de um tribunal suíço". Prevalece, portanto, a lex fori.
Em consequência, a determinação da similitude das causas postas perante o tribunal estatal estrangeiro e o tribunal arbitral sediado na Suíça, com o fim de identificar a ocorrência, ou não, de ofensa à coisa julgada, foi efetuada de acordo com a lei suíça, seja em relação à identidade de partes, seja quanto à identidade do objeto litigioso.
Por esses critérios, entendeu o Tribunal Federal de manter a sentença arbitral, por entender inexistir violação da coisa julgada.
Sob o ponto de vista subjetivo, o Tribunal acompanhou o entendimento da autora da ação anulatória, pois considerou que a Procuradoria estatal do país de origem da sentença judicial, embora não tivesse sido parte na arbitragem, havia atuado em juízo no interesse e em benefício da empresa estatal parte. Assim, restou afastada uma visão formalista, segundo a qual não haveria identidade de partes.
No entanto, sob o ponto de vista do objeto do litígio e da causa de pedir remota (fatos da causa), entendeu-se que o Tribunal Arbitral havia considerado fatos novos, não examinados pelo Judiciário do país de origem da primeira decisão, não cobertos pela autoridade da coisa julgada, segundo as determinações da lei suíça. Não teria havido, assim, violação da norma de ordem pública processual.
De todo modo, o precedente deve ser examinado à luz das peculiaridades do ordenamento suíço, valendo ressaltar que, trazida a hipótese para o direito brasileiro, o tema comportaria outras (e não menos complexas) discussões sobre competência e outras questões de direito internacional privado, abrindo espaço para intenso debate doutrinário e jurisprudencial.
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¹Recurso 4A_508/2013, de 27.05.2014, disponível (em francês) em: https://www.bger.ch/fr/index.htm.
²A Lei Suíça de Direito Internacional Privado (LDIP) autoriza a propositura de ação anulatória contra sentenças arbitrais, perante o Tribunal Federal, quando a parte recorrente alegar, entre outras matérias, que a decisão viola a ordem pública internacional suíça (art. 190 da LDIP).
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*Ricardo Ramalho Almeida é sócio do escritório Lobo & Ibeas Advogados.
*Renato Ferreira dos Santos é advogado associado do escritório Lobo & Ibeas Advogados.