Migalhas de Peso

Afinal, o que é família?

Estamos diante de uma possível redefinição do conceito de família.

16/3/2015

"Meio irmão; meio pai; meio filho; de quantas metades é feita a nova família?"

Perguntas como estas são cada vez mais comuns em debates de Direito de família e são utilizadas na chamada da nova novela da Rede Globo, "Sete Vidas", que estreou no último dia 9. A trama promete tratar de assuntos polêmicos e ainda pendentes de consolidação no ordenamento jurídico brasileiro.

Um dos assuntos a serem abordados será a possibilidade de se conhecer o doador de esperma, no caso da utilização do método de concepção através de banco de doadores. Este tema está cada vez mais em evidência, pois se tem agora a primeira geração de crianças concebidas através de técnicas que utilizam material genético doado, em idade a questionar suas origens. A discussão é trazida pelos meios de comunicação – como está fazendo a Rede Globo – e pela indústria do cinema, conforme se verifica, por exemplo, no filme de 2014 intitulado "Delivery man" (cujo título, no Brasil, é "De Repente Pai").

A concepção através de material doado é utilizada a fim de atender uma necessidade biológica do casal que passa por dificuldades na concepção de um filho. A legislação brasileira aceita esta prática e a defende, uma vez que a CF incentiva o planejamento familiar, sendo a prática disciplinada na resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, a qual prevê a impossibilidade de fins lucrativos e que "os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa" (art. 2, IV).

No caso de inseminação artificial heteróloga – quando o doador do esperma for uma terceira pessoa – a filiação é presumida desde que haja autorização do marido ou companheiro (art. 1597, V, CC). Tem-se o reconhecimento da filiação sócio afetiva, sendo pai aquele que assistiu a criança desde o seu nascimento. O doador não pode ser considerado pai da criança para os fins de direito. Está correto, portanto, o jargão popular sendo o qual "pai é quem cria".

A regra no Brasil é a de que o doador deve permanecer anônimo, sendo que sua identidade não deve ser conhecida sob qualquer hipótese. Destaca-se, apenas, a possibilidade do médico ter acesso às informações em determinados casos. O anonimato do doador é garantido também no artigo 7º da Declaração Internacional do Genoma Humano.

Por outro lado, a Convenção Internacional do Direito da Criança preza o melhor interesse do menor. Assim como no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), o interesse da criança deve prevalecer, sendo lícito ao infante conhecer suas origens genéticas, se assim desejar. Assim, cria-se o grande impasse sobre o tema. Qual o interesse que deve prevalecer? O da criança em conhecer seu pai biológico ou o do doador, em ter sua identidade preservada?

Tramita atualmente na Câmara dos deputados o PL 115/15, que busca disciplinar as técnicas de reprodução humana assistida. Seu texto protege o anonimato do doador, sendo que sua identidade apenas pode ser revelada em casos específicos. Na busca do equilíbrio entre o interesse da criança e o direito ao anonimato do doador, deve-se também se preservar a segurança jurídica dos pais que criaram aquela criança. A Carta Magna preza pela vontade de se criar uma família, sendo que este desejo inexiste no doador. Não se pode afirmar que pelo fato de se ter uma ligação biológica o doador é pai da criança, afinal ele não pode ter a obrigação de assumir as crianças que vierem a ser concebidas.

Outro ponto importantíssimo é o reconhecimento de vínculo entre crianças geradas de material genético de um único doador. Biologicamente, essas crianças possuem material genético comum, mas essa relação deve ter consequências jurídicas? Essa questão se torna ainda mais delicada ao adentrarmos nas consequências no campo das sucessões. Dificilmente haverá e será reconhecida uma ligação passível de consequências jurídicas entre doador e criança gerada pelos métodos de inseminação heteróloga. O mencionado PL busca afastar qualquer vínculo de filiação nestes casos - Nenhum vínculo de filiação será estabelecido entre o ser concebido com material genético doado e o respectivo doador, ainda que a identidade deste venha a ser revelada nas hipóteses previstas no artigo 19 deste Estatuto (artigo 48), e ainda "(...)não será estabelecido o vínculo de filiação e não decorrerá qualquer direito pessoal ou patrimonial ou dever oriundo do vínculo paterno-filial" (art. 50 §único). Salvo qualquer mudança na legislação, a criança gerada por inseminação artificial heteróloga terá direitos apenas em relação à sua mãe e ao pai sócio afetivo, o qual consentiu com a técnica médica e registrou a criança, sendo considerado pai da criança para todos os fins, mesmo que seu vínculo com a mãe acabe. Mas e a questão dos meio-irmãos? Pode este vínculo ser reconhecido pelo direito? Crianças de um mesmo doador devem ser consideradas irmãs aos olhos do direito ou este é um vínculo meramente biológico?

O CC prevê, no caso de sucessão, que os irmãos serão herdeiros caso inexistam ascendentes ou descendentes vivos do de cujus. O artigo 1.841 trata de como se dará a herança no caso de concorrência de irmãos bilaterais (de pai e mãe) com irmãos unilaterais (apenas de pai ou de mãe). Se uma dessas crianças geradas a partir de material genético doado vier a falecer não deixando outros herdeiros, podem estes chamados meio-irmãos virem a ser seus herdeiros? É possível que estas relações sejam transportadas também para o campo do direito sucessório? Parece razoável que seja seguida a mesma linha do doador, não se reconhecendo vínculo jurídico entre estas crianças.

Existem sites que auxiliam na busca do doador ou de possíveis meios-irmãos, como é o caso do donorsiblingregistry.com. Páginas eletrônicas como essa, no entanto, não quebram o sigilo existente do doador com as clínicas. É necessário um cadastro voluntário tanto da criança gerada como do doador. A busca é feita por pessoas que sentem necessidade de conhecer suas origens, por razões muitas vezes psicológicas. Quando há êxito neste encontro, surge uma nova relação, a qual pode trazer consequências às relações familiares. O direito deve caminhar a fim de disciplinar e reconhecer estas relações; no entanto, não pode gerar insegurança jurídica aos casais que se utilizam das novas técnicas da medicina para constituir família. Deve haver sempre um equilíbrio entre o interesse da criança, do doador e também daquele que utilizou a técnica. Estamos diante de uma possível redefinição do conceito de família, como o próprio site mencionado afirma "The DSR is helping to redefine the meaning of Family". Cabe aos juristas acompanharem estas novas relações, a fim de atenderem os interesses de todos os envolvidos.

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*Tamara Zugman Knopfholz é advogada do escritório Domingues Sociedade de Advogados e pós-graduada em Direito Civil pela PUC/PR.

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