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As sociedades empresárias limitadas segundo o Código Civil

Muito tem-se dito sobre o novo Código Civil, especialmente sobre o capítulo dedicado a sistematizar as sociedades. Há, sobretudo, críticas à burocratização das sociedades limitadas que, antes, eram reguladas quase que exclusivamente pelo sucinto Decreto 3.708, de 1919. Outra costumeira acusação, que se faz ao novo Código, é a de que nasceu velho, já que sua tramitação levou quase três décadas (a exemplo, aliás, do que acontecera com o Código de 1916...).

30/6/2003

 

As sociedades empresárias limitadas segundo o Código Civil

 

Mauro Caramico*

 

Muito tem-se dito sobre o novo Código Civil, especialmente sobre o capítulo dedicado a sistematizar as sociedades. Há, sobretudo, críticas à burocratização das sociedades limitadas que, antes, eram reguladas quase que exclusivamente pelo sucinto Decreto 3.708, de 1919. Outra costumeira acusação, que se faz ao novo Código, é a de que nasceu velho, já que sua tramitação levou quase três décadas (a exemplo, aliás, do que acontecera com o Código de 1916...).

 

Tantas e tamanhas foram as críticas, que o Deputado Federal Ricardo Fiúza, responsável pelo projeto da lei que instituiu o novo Código, já tem, em trâmite, mais dois outros Projetos (nº 6.960/02 e nº 7.160/02), em que propõe sejam alterados, apenas no Livro II, dedicado ao Direito de Empresa, cerca de oitenta artigos.

 

São alterações profundas. Apenas para exemplificar: o atual artigo 977, do Código Civil, em linhas gerais, impede a sociedade entre marido e mulher, a menos que o casamento seja feito sob o regime da comunhão parcial de bens. Se aprovado o P.L. 6.960/02, a sociedade entre marido e mulher voltará a ser permitida, qualquer que seja o regime matrimonial.

 

Muito bem, diante desse quadro, e tendo em vista que o prazo para a adaptação das sociedades à nova Lei está chegando ao fim (finda em janeiro de 2004, segundo o artigo 2.031), o que deve fazer o empresário? O que deve mudar em seu contrato social?

 

A primeira resposta pode parecer procrastinatória, mas não é: a menos que a sociedade esteja passando por outras alterações, o melhor é aguardar até meados de dezembro de 2003, para registrar a alteração que contenha a adaptação às novas regras. É que, até lá, ou bem já terão sido aprovados os Projetos de Leis, ou já se terá, pelo menos, uma visão mais clara de seu destino. E, com isso, evita-se que se faça uma alteração agora, e outra, em mais seis meses, para desalterar o que foi a alterado...

 

De qualquer modo, já é tempo de decidir o que mudar. E o primeiro passo é a análise do contrato social da empresa, como hoje vigente.

 

No mais das vezes, as pequenas e médias empresas têm contratos muito simples, tirados de modelos pouco adequados, entregues a despachantes e feitos como se não passassem de simples burocracia, para que a empresa pudesse começar a operar. São exatamente esses contratos que dão problemas quando discutidos num inventário, numa separação judicial, numa ação de dissolução. Por isso, esta é a melhor hora para revisar todo o contrato e colocar, por escrito, como as coisas funcionam, de fato, na sociedade, e como devem funcionar, doravante.

 

Aliás, mesmo para as grandes empresas, e mesmo que o contrato, hoje, seja bastante completo, o melhor a fazer é reexaminá-lo com o novo Código nas mãos e, decididas as mudanças a fazer, consolidá-lo.

 

Para fazer isso, necessário investigar quais principais mudanças que precisam ser implementadas no contrato, em vista da nova lei. A elas.

 

Sociedade entre marido e mulher

 

O artigo 977, do novo Código, veda que sejam sócios o marido e a mulher casados sob os regime da total comunhão ou da total separação de bens. Note-se bem: a vedação não é só para a sociedade apenas entre marido e mulher, mas também para sociedade com diversos sócios, de que participem, também, os cônjuges.

 

Em parênteses: nada impede que formem uma sociedade dois companheiros, que vivam em união estável - o regime que os une é o da parcial comunhão, de sorte que o impedimento não os atinge.

 

Mas, e se a sociedade, hoje, tiver apenas dois sócios, esposo e esposa, casados pelo regime da comunhão de bens? Será necessário desfazer a sociedade? Há ato jurídico perfeito1 , que garanta aos cônjuges continuarem na sociedade?

 

A questão é tão complexa, que jurista respeitadíssimo, como José Waldecy Lucena2 , chega a cogitar a contratação de um laranja (descartando-a, claro) e sugere que o casal, aproveitando a possibilidade do artigo 1.639, parágrafo 2º, do novo Código, altere o regime de bens do seu matrimônio.

 

Na prática, o que parece mais viável, para as sociedades estáveis, financeiramente saudáveis, e onde não haja intenção de blindagem patrimonial, é que não façam a alteração, isto é, que mesmo sendo casados em comunhão total (ou total separação), continuem sócios, os cônjuges, apostando no bom-senso do legislador, que certamente aprovará os Projetos do Deputado Fiuza, quanto a este ponto.

 

Até lá, a sociedade, na pior das hipóteses, será tida como irregular - e a pior conseqüência que pode haver será a de que os sócios, durante todo o período em que perdurar a irregularidade, responderão pessoalmente, com seu patrimônio, pelas dívidas da sociedade (ressalvado, claro, o bem de família). Se a empresa é saudável, portanto, o risco é controlado.

 

E, se nesse entretempo, for necessário arquivar algum ato social e houver recusa pela Junta, a solução será ajuizar demanda, em uma das Varas da Fazenda Pública, sustentando, por exemplo, a inconstitucionalidade da vedação à sociedade conjugal - porque, afinal, a formação da sociedade ente marido e mulher, foi ato jurídico perfeito.

 

Para os que não podem, ou não querem, esperar e correr o risco da responsabilidade pessoal, além das soluções heterodoxas do alaranjamento (que, moral à parte, não é sequer seguro), de ajuizamento de demanda, e da alteração do regime matrimonial, há outros caminhos.

 

Pode-se, por exemplo, doar as quotas de um dos cônjuges aos filhos, em frações iguais, adiantando-se as suas legítimas. Incidirá, aí, é bom lembrar o ITCMD - Imposto Sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação. E é absolutamente recomendável que o outro cônjuge fique com pelo menos 2/3 das quotas, para que a sociedade não sofra reflexos de eventuais desavenças familiares. Nem a família, com os revezes sociais…

 

Outra solução será que os filhos - se mais de um, claro - constituam uma outra sociedade entre eles, para receber (ou adquirir) as quotas de um dos cônjuges. Nesta hipótese, um pouco mais trabalhosa, eventual desavença entre os irmãos fica isolada na outra sociedade e não embaraçará os negócios da empresa familiar.

 

Não há, enfim, regra geral: para cada caso, uma ou outra solução sairá melhor. E a missão do advogado, incumbido de oferecer alternativas, vai muito além da simples redação do contrato social.

 

A denominação e a firma da empresa

 

Agora, segundo o artigo 1.158 do Código de 2002, a firma ou a denominação devem ser seguidas, necessariamente, da palavra “Limitada” (coisa que, no mais das vezes, já ocorre, ainda que de maneira abreviada), pena de responderem os sócios ilimitadamente. Se escolher-se a firma, devem constar os nomes de um ou mais sócios, se pessoas físicas. Se optar-se pela denominação, deve-se indicar o objeto social: Sato & Filhos Hortifrutigrangeiros Ltda.; Indústria Têxtil Itatiaia Ltda..

 

O dispositivo legal, contudo, é alvo do Projeto de Lei 6.960/02, de sorte que a prudência recomenda que se aguarde o seu desfecho no Legislativo.

 

Cessão de quotas

 

A questão atinente à movimentação do quadro interno da sociedade deve ser preocupação constante dos que se incumbem de redigir os contratos sociais.

 

Quanto a cessão, o novo Código (art. 1.057) permite-a para qualquer dos sócios, sem que seja necessário ouvir os demais. Também pode ser feita a cessão a terceiros - mas, nesta hipótese, sócios com 1/4 do capital social podem vetá-la: é a preponderância da affectio societatis, do princípio preservador da empresa, sobre o direito de propriedade.

 

O contrato social, contudo, pode limitar ainda mais o direito à livre cessão, instituindo, por exemplo, direito de preferência, em igualdade de condições, mesmo que a venda seja feita a um dos sócios atuais.

 

Por isso, dependendo de quem estiver à frente da alteração do contrato social (em regra, será o majoritário, que quer continuar a sê-lo), é bastante recomendável que se instituam cláusulas e procedimentos específicos, claros e rígidos, para a cessão das quotas, com o resguardo do direito de preferência, proporcional à participação no capital social.

 

Igualmente, parece aconselhável aumentar o quorum para a vedação – afinal, dar o poder a apenas 25% do capital, de vetar a transferência dos outros 75%, resultará, certamente, em desavença. Para compensar, nada há que impeça que, no contrato social da limitada empresária, faça-se a previsão do tag along, que já protege os minoritários das anônimas, desde 1997: se o majoritário vender, o comprador estará obrigado a oferecer o mesmo preço e mesmas as condições, em favor dos minoritários.

 

Retirada, exclusão de sócios e apuração de haveres

 

O artigo 1.029, do novo Código, que está no capítulo das sociedades simples, prevê que, em sociedades por prazo indeterminado (esmagadora maioria dos casos), qualquer dos sócios pode sair da sociedade, bastando aviso prévio de sessenta dias.

 

É disposição salutar, especialmente para sociedades de pouco patrimônio, a que se afeiçoa a sociedade simples (como, por exemplo, a associação entre profissionais liberais). Mas é um perigo, para empresas de maior porte: a saída de um dos sócios implica o pagamento de seus haveres e, dependendo do caso, pode levar à dissolução total - ou à falência, por inviabilidade.

 

Por isso, conquanto seja virtualmente impossível (e, mesmo, contraproducente) manter um sócio atrelado à empresa contra a sua vontade, é importante planejar e deixar prevista, no contrato social de limitadas de maior porte, a fórmula através da qual serão apurados os haveres do sócio retirante, as condições e o número de parcelas em que serão pagos.

 

O interesse social, na manutenção da empresa (e dos empregos que ela gera, e dos impostos que ela recolhe etc.), deve sempre se sobrepor aos interesses subjetivos, dos sócios. Por isso, dificilmente se conseguirá, em juízo, rever a disposição contratual que, prevendo a retirada do sócio, dispõe o pagamento dos haveres de acordo com as possibilidades da empresa.

 

O mesmo, contudo, não se pode dizer quanto à exclusão de sócio minoritário, regulada no capítulo das limitadas (artigo 1.085). É que a exclusão pressupõe a imposição da vontade da maioria do capital social contra a resistência da minoria. Por isso, os critérios de apuração dos haveres e a fórmula do pagamento, devem ser mais benéficos, em favor do sócio que sai.

 

No que diz respeito às cláusulas contratuais, é consenso geral que, a regra do novo Código é menos avançada do que a jurisprudência que já estava consolidada: antes, a despeito de não haver disposição legal específica, permitia-se que a maioria excluísse o minoritário, se houvesse quebra da affectio societatis, mediante simples alteração contratual.

 

Agora, para que se possa fazer a exclusão do minoritário faltoso, é necessário que haja previsão contratual expressa. E, além disso, deverá haver reunião (ou assembléia, conforme o caso) específica, na qual o sócio excluendo, previamente avisado, poderá defender-se. Enfim, se o contrato não contiver a faculdade da exclusão pela maioria, o minoritário faltoso não poderá ser excluído, senão mediante decisão judicial.

 

Assembléia e reunião de sócios

 

A assembléia de quotistas passou a ser obrigatória, para limitadas com mais de dez sócios. Deve ser realizada, pelo menos, uma vez por ano, a fim de se tomarem as contas dos administradores e deliberar sobre o resultado econômico. Também nas assembléias serão eleitos (ou destituídos) os administradores, serão decididas as mudanças a serem feitas no contrato social e outras matérias relevantes (artigo 1.071, do novo Código).

 

Quando a sociedade conta menos de dez sócios, ao invés de fazê-lo em assembléia, decidirá as questões do artigo 1.071 em reunião. A diferença entre uma e outra está disposta de maneira sutil, mas é relevante: à reunião aplicam-se as regras da assembléia, salvo se o contrato social dispuser de maneira diferente. É o que dizem os artigos 1.072 § 6º, e 1.079, do Código mais recente3 .

 

Isto quer dizer que, na prática, quando se estiver prestes a elaborar regras para uma limitada com dez sócios ou menos, podem-se criar regras para a convocação das reuniões (por e-mail, por exemplo), para a sua periodicidade, para o quorum de instalação, para a ordem dos trabalhos e para o seu registro. Se o contrato nada dispuser, então serão aplicáveis as regras pertinentes à assembléia.

 

De qualquer modo, vale dizer que o artigo 1.072, § 3º, do Código de 2002, dispensa a reunião ou a assembléia, quando “todos os sócios decidirem, por escrito, sobre a matéria que seria objeto delas”.

 

Enfim, um contrato social atento a essas questões, e elaborado com perspicácia, colocará a empresa familiar, bem assim as de pequeno e médio portes, a salvo das burocracias assembleares, muito próximas às exigências que faz a Lei das S/A.

 

Legislação supletiva

 

O artigo 1.053, do Código de 2002, impõe, como regra geral, que as limitadas sejam supletivamente regidas pelas normas da sociedade simples, a menos que o contrato social eleja a Lei das Sociedades por Ações, em substituição.

 

O ideal, caso não sejam aprovados os Projetos do Deputado Fiuza, é antever, no contrato, a aplicação das regras das S/As. É o próprio Deputado que explica: “é bem mais adequado que as omissões no regramento das limitadas sejam supridas pela lei das sociedades anônimas do que pelas regras da sociedade simples, não só pela maior afinidade entre limitadas e anônimas, como pelo fato de ser esta a tradição do direito brasileiro.”4

 

O melhor, mesmo, é cuidar de elaborar contrato social detalhado e perspicaz, de acordo com as características especiais, sempre únicas, da empresa e dos seus sócios. Essa, a missão confiada aos advogados, pelo novo Código Civil.

 

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1 Para lembrar: segundo o artigo 6º, § 1° da Lei de Introdução ao Código Civil, em pleno vigor, ato jurídico perfeito é aquele “já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. Protege-o, também, a Constituição Federal (artigo 5o, inciso XXXVI).

 

2“Das Sociedades Limitadas”, 5ª edição, Ed. Renovar, 2003.

 

3 Curioso notar, aliás, que o § 6º, do artigo 1.072, repete, quase literalmente, o artigo 1.079. Tudo indica ser raro cochilo, do legislador, que também está despercebido nos Projetos do Deputado Fiuza.

 

4 As observações e as explicações do Deputado Fiuza, acerca de seus Projetos, podem ser vistas em www.camara.gov.br.

 

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* Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos

 

 

 

 

 

 

 

 

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