A responsabilidade sem culpa não é uma inovação do direito moderno. A Antiguidade pôde desenvolver o instituto da reparação civil, em substituição à vingança privada e à retaliação, sem precisar da noção jurídica de culpa. A inovação da Modernidade reside, justamente, no fruto das teorias unitárias do agir ético, desenvolvidas pelo jusnaturalismo dos séculos XVI a XVIII, que implicam a noção de culpa.
Como fundamento do dever de indenizar, a culpa está intrinsecamente ligada às teorias modernas do sujeito, concebido como sujeito de direito, livre para agir e igual aos demais, com a igualdade atuando como limitador da liberdade. Ao fundo, há a ideia de que, como a ética, a responsabilidade pode não só promover a reparação de danos, mas também atuar para adaptar as condutas socialmente indesejáveis (imprudentes, imperitas ou negligentes), estabelecendo padrões de previsibilidade social.
A inovação técnica está na cláusula geral de responsabilidade (em oposição aos sistemas casuístas/taxativos), fundada na culpa. Quando, a partir do final do séc. XIX, na esteira das consequências sociais da revolução industrial (particularmente os acidentes de trabalho), juristas europeus buscam desenvolver uma teoria da responsabilidade sem culpa, não abandonam a técnica da cláusula geral, mas buscam substituir a culpa, como fundamento da responsabilidade, por outros elementos.1
Daí o nascimento das teorias do risco, com a ideia central de que, aquele que tira proveito de uma atividade que gera riscos, deve, em nome da pacificação social, arcar com os prejuízos sofridos por terceiros. São teorias, vale lembrar, nascidas no contexto do Estado liberal, ou seja, na ausência de um sistema social de seguridade em que aqueles atingidos por um dano poderiam ficar relegados ao total abandono. O seu foco é o problema social resultante do dano e não a adaptação de condutas indesejadas.2
Nos Estados Unidos, na primeira metade do séc. XX, a teoria da responsabilidade objetiva do fornecedor é desenvolvida diante da necessidade de se superar o óbice do privity of contract nos casos de danos decorrentes de defeito de fabricação em veículos (MacPherson v. Buick Motor Co., 1916). Entendia-se então, com base na teoria dos vícios redibitórios, que o adquirente de veículo com defeito poderia ter ação contra o vendedor/comerciante, mas não contra o fabricante, com quem não tinha nenhuma relação contratual. O mesmo se aplicava aos terceiros bystanders. Apenas na década de 1960 a jurisprudência norte-americana encampa a noção de responsabilidade objetiva do fornecedor (product liability e implied warranties) inclusive perante terceiros. Na sua essência, está uma equiparação do fabricante ao vendedor,3 a quem é imputado um dever geral de diligência, considerados os usos previsíveis de um produto e os riscos esperados. É uma doutrina voltada tanto à reparação do dano quanto à adequação de um padrão de conduta no mercado (duty of care).
O regime de responsabilidade do fornecedor, no CDC, encampa todos esses elementos: o conceito de consumidor engloba os terceiros, que não consumiram mas foram vitimados por um produto defeituoso (art. 17), e o fornecedor responde, independentemente de culpa, pelos danos causados a consumidores por defeitos nos produtos (art. 12). Não responde por qualquer dano associado ao uso do seu produto, mas apenas por aqueles decorrentes de defeitos.
O produto não é considerado defeituoso simplesmente porque seu uso é arriscado (carros), perigoso (veneno), ou faz mal à saúde (bebida alcoólica), mas sim "quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera" (art. 12, § 1º), considerada sua apresentação/informações (art. 12, § 1º, inc. I), os usos razoavelmente previsíveis (art. 12, § 1º, inc. II) e a época em que foi colocado no mercado (art. 12, § 1º, inc. III). O fato de outro produto melhor/mais seguro ter sido colocado no mercado não implica, necessariamente, que o anterior era defeituoso e não poderia ter sido comercializado.
A responsabilidade do fornecedor está fundada em um dever de diligência que, posto que geral, não é absoluto. Produtos colocados no mercado não devem acarretar riscos à saúde ou segurança, "exceto os considerados normais e previsíveis" (art. 8º), ficando o fornecedor obrigado a prestar as informações necessárias e, no caso dos produtos "potencialmente nocivos ou perigosos à saúde", de maneira ostensiva e adequada (art. 9º). Apenas a elevada periculosidade implicará (ou legitimará) a proibição de comercialização (art. 10).
As noções de normalidade e previsibilidade, que compõem o dever geral de diligência do fornecedor, criam um espaço jurídico para atuação da noção de culpa. Por exemplo, a responsabilidade do fornecedor poderá ser excluída no caso de culpa do consumidor (art. 12, § 3º, inc. III). Outro exemplo está na fixação dos danos morais, em especial danos morais coletivos, para quem aceita sua existência, em que se considerará o grau de diligência do fornecedor que, em tese, deve poder até mesmo afastar condenações a esse título (já que não faz sentido punir quem fez tudo o que estava ao seu alcance para evitar um dano).
Outra hipótese em que a noção de culpa parece desempenhar um papel relevante é na extensão do nexo causal e da solidariedade. Segundo o caput do art. 12, fabricante, construtor e importador (mas não o comerciante) respondem pelos danos decorrentes de defeitos de produtos. Já o art. 7º, parágrafo único, diz que todos os causadores do dano respondem solidariamente. O sistema tende, portanto, à responsabilidade não só objetiva mas também solidária.
Contudo, justamente porque a responsabilidade objetiva é fundada em um dever geral de diligência, elementos subjetivos podem bloquear a solidariedade ou subordiná-la à constatação de culpa, pensada em termos de normalidade e previsibilidade dos riscos da atividade. É o que se observa na jurisprudência.
O STJ entendeu, por exemplo, que em contrato de compra de produto a prazo, coligado com contrato de financiamento, rescindido em razão de vícios no produto, a instituição financeira não é responsável por restituir ao consumidor os valores pagos a título de entrada. Segundo entendeu a corte "inviável responsabilizar solidariamente a financeira pelos valores despendidos pelos consumidores, uma vez que, ao manter o contrato coligado, não se comprometeu a fornecer garantia irrestrita para a transação, mas sim balizada pelos benefícios dela advindos, ou seja, no caso, nos termos da cessão de crédito operada, que não abarca os valores pagos à título de entrada diretamente ao lojista". (REsp 1127403/SP).
Também é pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que os órgãos de proteção ao crédito não são responsáveis pelos danos causados aos consumidores em decorrência de apontamentos indevidos, desde que notifiquem previamente o consumidor (súmula 359 e REsp 901.584). Muito embora esses órgãos lucrem com uma atividade que expõe o consumidor a risco (de apontamentos indevidos), sua responsabilidade depende de um ato negligente (deixar de notificar previamente o consumidor).
Outro caso de quebra da solidariedade se dá na relação médico/hospital. Para o STJ "a responsabilidade objetiva prevista para o prestador de serviços, no presente caso, o hospital, circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial (...) e não aos serviços técnico-profissionais dos médicos que ali atual, permanecendo estes na relação subjetiva de preposição (culpa)" (REsp 258.389). Ou seja, o hospital não responde de maneira objetiva e solidária por erros médicos cometidos pelos seus profissionais. Igualmente, o STJ também entendeu que "as empresas de comunicação não respondem por publicidade de propostas abusivas ou enganosas", mas apenas os anunciantes que patrocinaram a publicidade (REsp 604.172).
Coerentemente, essa é também a posição consolidada no STJ sobre a responsabilidade dos provedores de serviços de redes sociais por conteúdo gerado por terceiros. Segundo decidiu a corte, a fiscalização do conteúdo gerado por terceiros "não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termo do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra dados e imagens nele inseridos". Assim, eventual dano moral decorrente de mensagens ofensivas geradas por usuários "não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva". Ao provedor do serviço cabe, apenas, remover o conteúdo ofensivo após ser notificado (REsp 1338214), entendimento que acabou consagrado no Marco Civil da Internet.
Em todos esses casos, o pano de fundo é justamente a extensão do dever geral de vigilância/cuidado de um fornecedor aos serviços/produtos oferecidos por outro ou por atos de terceiros. O fio condutor do raciocínio é um elemento subjetivo da conduta (negligência), diante dos riscos que são ou não considerados intrínsecos à atividade. Esse é ponto central dos julgados que permite a sua aplicação como precedente, inclusive para fins de dissídio jurisprudencial.
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1 Não obstante, o Código Napoleônico manteve alguns resquícios do sistema casuísta de responsabilidade que, tipicamente, independe de culpa. É o caso da responsabilidade por atos de terceiros (pais, patrão, donos de animais) e por fato da coisa. A partir dessas hipóteses, os juristas do final do séc. XIX afirmarão que, em determinadas situações, a responsabilidade civil prescinde da culpa, fundando-se no dever geral de guarda/vigilância. Alvino Lima. Culpa e Risco, p. 50. São Paulo: RT, 1960. No Brasil, o primeiro diploma a tratar da responsabilidade objetiva é o Decreto n. 2.681/1912, sobre a responsabilidade das empresas operadoras de estradas férreas com relação a danos causados aos proprietários das áreas marginais. Idem, p. 313.
2 Dentre os opositores da responsabilidade fundada exclusivamente na culpa há, em França, no final do séc. XIX, Raymond Saleilles, com sua obra Les Accident de Travail et la Responsabilité Civile e Louis Josserand De la responsabilité du fait des choses inanimées. Wilson Melo da Silva, Responsabilidade sem culpa, São Paulo: Saraiva, 1974, p. 42 e ss.
3 Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Responsabilidade Civil do Código de Defesa do Consumidor e a Defesa do Fornecedor, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 16 e 39.
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*Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater é advogado associado de Trench, Rossi e Watanabe Advogados. Professor de Direito do Consumidor na PUC/SP, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP e doutor em Filosofia do Direito pela PUC/SP.