Sabemos que proposta determinada ação em juízo, aquilo que é alegado pelas partes, neste processo, direcionará a atuação do órgão jurisdicional, no sentido de que o juiz deverá se pronunciar, necessariamente, como regra, sobre aquilo que foi pedido, sob pena de julgar ultra, extra ou citra/infra petita.
Estamos nos referindo ao princípio da congruência, também chamado da adstrição ao pedido formulado pela parte, previsto nos artigos 128 e 460 do CPC, que possuem a seguinte redação:
Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
Art. 460. É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que Ihe foi demandado.
Parágrafo único. A sentença deve ser certa, ainda quando decida relação jurídica condicional. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
O mérito dependerá da iniciativa das partes, fundamentadamente do autor, à qual se agregará, secundariamente, a do réu, se e quando alegar exceções substantivas ou acionar terceiros. O artigo 128 explicita a regra básica, denunciando o alcance do princípio devolutivo: o juiz decidirá o mérito nos limites estabelecidos pelos litigantes “sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte’. As escassas exceções, a exemplo da prescrição e da decadência (arts. 219, §5º, e 220), reafirmam a incontestável soberania das partes quanto à formação do mérito (ASSIS, Araken, 2013, p. 421).
Assim, após todo o trâmite processual regular, quando não houver nenhuma situação que venha a levar o processo a ser extinto de modo anômalo, receberá sentença de mérito baseada em cognição exauriente, como regra, levando em consideração o juiz todas as provas apresentadas destinadas a corroborar as alegações feitas pelas partes. Esta sentença então, baseada em cognição exauriente, considerando o plano vertical de cognição, pontuado pelo professor Kazuo Watanabe (2012), permitiu ao juiz analisar todas as alegações das partes em profundidade, fazendo coisa julgada material quando esta decisão não comportar mais qualquer recurso ordinário ou extraordinário, nos termos do artigo 467 do CPC.
Nestes termos está estruturado nosso sistema. A existência de uma sentença prolatada baseada em cognição profunda, em determinado momento transitará em julgado, devendo os envolvidos nesta relação processual se curvar a este comando, estabelecido, inclusive, em nossa CF, artigo 5º, inciso XXXVI.
Não obstante, segundo as regras de nosso sistema, antes desta decisão transitar em julgado, a parte prejudicada por seu proferimento possui o direito, previsto em lei, de impugná-la, objetivando uma segunda análise por parte de um órgão hierarquicamente superior ao prolator da decisão, em regra, que poderá culminar em uma melhora de sua situação. Pelas nossas normas processuais, a sentença prolatada, quando impugnada via recurso de apelação, não produzirá efeitos imediatos, muito embora tenha sido proferida. Isso porque, pela regra geral, no tocante aos efeitos em que o recurso de apelação é recebido, ele o será no duplo efeito, ou seja, nos efeitos devolutivo e suspensivo.
O processo será encaminhado ao Tribunal, diante de um juízo de admissibilidade positivo feito pelo juízo a quo, por meio do efeito devolutivo, mas ainda, esta decisão não produzirá efeitos, diante de seu recebimento, também no suspensivo, a menos que a situação do recorrente se enquadre nas exceções dispostas em lei federal quanto ao recebimento do recurso de apelação apenas no efeito devolutivo.
Tem a apelação, em regra, efeito suspensivo. A característica resulta evidente na redação do art. 520, caput, primeira parte, segundo o qual o órgão judiciário receberá a apelação “em seu efeito devolutivo e suspensivo”. O emprego do pronome possessivo “seu” no texto, embora desnecessário, evidencia a relação de pertença entre a apelação e a inibição dos efeitos da sentença impugnada. Só regra expressa e específica retira o efeito suspensivo da apelação. Por essa razão, as exceções se encontram taxativamente mencionadas, no art. 520, segunda parte, e noutras disposições esparsas. Não cabe interpretar extensivamente essas exceções (ASSIS, Araken, 2013, p. 443).
O tema do efeito suspensivo da apelação é disciplinado pelo art. 520. A regra é de que toda apelação o tenha, o que significa reconhecer que a simples circunstância de se tratar de sentença sujeita a apelação munida de efeito suspensivo inibe que aquele ato processual surta os seus efeitos, à exceção dos casso expressamente previstos em lei, como se dá, por exemplo, com o art. 466 (BUENO, Cássio Scarpinella, 2014, 141).
A primeira conclusão que tiramos dos fatos expostos é que nossa sentença definitiva ou de mérito não tem o condão de produzir efeitos imediatos, como regra, pelo nosso sistema, normatização mantida pelo Código de Processo Civil Projetado, infelizmente, pois, segundo pensamos, perdeu o legislador valiosa oportunidade de permitir, via de regra, que uma sentença desta natureza já pudesse produzir efeitos jurídicos ao ser prolatada, podendo seus efeitos serem suspensos em determinadas hipóteses, a serem pontuadas pela lei, o que corresponderia à regra inversa da que temos hoje.
De acordo com essas colocações, observamos, talvez, uma inconsistência prevista em nosso Código Projetado no tocante às decisões prolatadas com base em cognição exauriente, para com relação à algumas que forem proferidas em cognição sumária. Especificamente, nos referimos à tutela antecipada quando concedida em caráter antecedente, em seu novo formato regulamentado por referido projeto. Salientamos que para a realização deste trabalho foi utilizado o Texto Consolidado do Código Projetado, com os ajustes promovidos pela Comissão Temporária do Código de Processo Civil, retirada do site da Academia Brasileira de Direito do Estado (https://abdet.com.br/site/novo-codigo-de-processo-civil/).
Isso porque, existe a possibilidade, segundo a legislação vigente, quando há urgência naquilo que a parte deseja do poder judiciário, provando os requisitos específicos exigidos pela lei, pleitear tutela de urgência, de natureza satisfativa ou cautelar, medida esta baseada, para sua concessão, em cognição sumária, sob pena de perecer o direito a ser tutelado pelo poder judiciário.
Nos termos de nosso atual Código de Processo Civil, esta medida concedida em cognição sumária, corresponde a uma tutela provisória, que será substituída por decisão definitiva, por ocasião do trâmite regular do processo relacionado à sua concessão. Essa decisão provisória, nos termos da lei, poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada, segundo estabelece os artigos 273, § 4º e 807 “caput” do CPC.
A “tutela provisória” é prestada para durar durante o tempo necessário ao proferimento de uma outra decisão que passará, ela própria, a regular aquela mesma situação, substituindo-a. A “tutela definitiva, por seu turno, é aquela que, não obstante poder ser objeto de recurso, carece de qualquer outra deliberação jurisdicional para regular a situação jurídica que legitima a sua concessão (BUENO, Cassio Scarpinella, 2014, p. 35).
Assim, em razão de sua urgência, produz efeito imediato, quando concedida via decisão interlocutória, já que o recurso apto a impugná-la é recebido, pelo menos em regra, somente no efeito devolutivo (agravo de instrumento), ou mesmo quando concedida na sentença, pois a apelação, neste caso, também será recebida só no efeito devolutivo, nos termos do artigo 520, incisos IV e VII do CPC. Porém, num ou noutro caso, a decisão provisória será substituída por uma definitiva, que resolverá o conflito de interesses.
Qual seria a inconsistência apontada pelo Código projetado?
Pela redação do projeto, a sentença proferida pelo juiz, fundada em cognição exauriente, não produzirá efeitos imediatos, visto que o recurso de apelação destinado à sua impugnação, será recebido, em regra, em seu duplo efeito, tal como vige hoje em nosso sistema.
Não obstante, vemos que a tutela provisória, no caso, a tutela antecipada quando concedida em caráter antecedente, está descrita no projeto de modo distinto. Pelas regras novas, a parte poderá pleitear medida de natureza antecipada (satisfativa), por meio de um pedido mais simples, (de maneira antecedente), devido a urgência do provimento, tendo a oportunidade de aditá-lo após. Se, eventualmente, o juiz conceder a medida pleiteada pelo autor e a parte contrária - aquele que sofre os efeitos desta concessão - não impugnar esta decisão, ela se tornará estável, o que significa dizer que seus efeitos serão estabilizados no tempo, mesmo que fundada a análise do juiz em cognição sumária, baseada em fumus boni iuris e periculum in mora, sendo o processo extinto. Essa sentença de extinção, de acordo com as regras do Código Projetado, produzirá efeitos imediatos, pois o recurso de apelação, neste caso, será recebido só no efeito devolutivo, nos termos do artigo 1009, V, correspondendo a uma das exceções de recebimento da apelação sem o efeito suspensivo.
O projeto menciona que essa decisão estável poderá ser revista, modificada, até o prazo de 2 (dois) anos, nos termos do artigo 302, parágrafo 5º, ocasião em que, ultrapassado o prazo do artigo citado acima, parece-nos que estará revestida da autoridade de coisa julgada, não mais podendo ser objeto de alteração.
Segue a redação do código projetado em referência:
Art. 301. Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo
§ 1º Concedida a tutela antecipada a que se refere o caput deste artigo:
I - o autor deverá aditar a petição inicial, com a complementação da sua argumentação, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, em quinze dias, ou em outro prazo maior que o juiz fixar;
§ 2º Não realizado o aditamento a que se refere o inciso I do § 1o deste artigo, o processo será extinto sem resolução do mérito.
…
Art. 302. A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 301, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso.
§ 1º No caso previsto no caput, o processo será extinto.
§ 2º Qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada nos termos do caput.
§ 3º A tutela antecipada conservará seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invalidada por decisão de mérito proferida na ação de que trata o § 2º.
§ 4º Qualquer das partes poderá requerer o desarquivamento dos autos em que foi concedida a medida, para instruir a petição inicial da ação a que se refere o § 2º, prevento o juízo em que a tutela foi concedida.
§ 5º O direito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada, previsto no § 2º deste artigo, extingue-se após dois anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo, nos termos do § 1º.
§ 6º A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do §2º deste artigo.
Talvez, neste caso, o menos valha mais do que o mais. Esperamos que não seja criada uma cultura de industrialização de liminares, de tutelas provisórias, pois, de fato, diante dessas regras pontuadas pelo projeto, talvez seja mais interessante para a parte obter uma medida liminar, que venha a se tornar estável, do que uma tutela definitiva.
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Referências
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
BRASIL, Lei 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869.htm
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. V. 4.
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. V. 5.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
Texto Consolidado do Código Projetado, com os ajustes promovidos pela Comissão Temporária do Código de Processo Civil, retirada do site da Academia Brasileira de Direito do Estado (https://abdet.com.br/site/novo-codigo-de-processo-civil/)
WATANABE, Da cognição no processo civil. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
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*Ana Luísa Fioroni Reale é advogada, professora universitária no Curso de Direito da Uninove/SP, especialista e mestre em Direito e doutoranda em Direito Processual Civil pela PUC/SP.