Migalhas de Peso

Remediando os problemas de liquidez para evitar o colapso do setor de infraestrutura brasileiro

Dada a dimensão do problema e as dificuldades envolvidas, creio que seria necessária a aprovação por lei da política para respaldar um programa.

30/1/2015

1. O problema: escassez de liquidez que está gerando um ciclo de insolvência

Em primeiro lugar, antes de entrar no tema do presente artigo, eu queria deixar claro para o leitor que não me conhece ainda, que sou advogado, especialista nos setores de infraestrutura e vários dos grupos econômicos aos quais vou me referir abaixo são meus clientes, e, por isso, evidentemente, eu tenho interesse pessoal na sobrevivência desses grupos.

Deixando claro ao leitor a minha vinculação com as partes atingidas pelos problemas relatados abaixo, queria trazer ao seu conhecimento, com o máximo de objetividade possível, a situação atual do setor de infraestrutura no Brasil e os possíveis efeitos, que me parecem deletérios para o país, de se deixar que a iliquidez atual desses grupos econômicos se torne um problema de insolvência, com possibilidades de contaminação para o setor financeiro e para a sociedade como um todo. Ao final dessa nota, faço uma sugestão do que poderia ser realizado para evitar o pior para o país.

Em virtude do suposto envolvimento de empresas do setor de construção pesada com o escândalo recente de corrupção na Petrobras, resultado das apurações realizadas no âmbito da operação Lava Jato da PF, diversas empresas de grande e médio porte desse setor estão passando por uma crise de liquidez, que, se não remediada, levará certamente à quebra de várias delas, com diversas consequências gravosas para o país.

Já está em curso a realização de demissões em massa no setor de construção pesada. Pelo menos dezenas de milhares de empregos já se extinguiram de agosto de 2014 a janeiro de 2015 e, se nada for feito, pelo menos mais dezenas de milhares de postos de trabalho provavelmente se extinguirão até o final de 2015. Em uma estimativa preliminar, 5% da população do país está vinculada direta ou indiretamente à atividade desses grupos econômicos e podem ser atingidas pela sua quebra sucessiva.1

Diversas dessas empresas têm receitas a receber relevantes, inclusive pagamentos por obras já realizadas que estão suspensos. Em várias dessas obras com pagamentos suspensos, não há qualquer suspeita de irregularidade. Os pagamentos estão suspensos simplesmente porque espera-se que tais empresas sejam declaradas inidôneas, o que, aliás, não é razão suficiente, do ponto de vista jurídico, para a suspensão dos pagamentos. Não terei condições de tratar aqui em detalhes do efeito jurídico da declaração de inidoneidade, mas basta dizer que, uma eventual declaração de inidoneidade dessas empresas no âmbito da Petrobras não atingirá necessariamente todas as suas obras com a União e, sem dúvida, não atingirá automaticamente e imediatamente as obras dessas empresas com Estados e Municípios, e não atingirá em nenhuma hipótese as obras com os seus clientes da iniciativa privada2. Portanto, na expectativa dos supostos efeitos de uma eventual declaração de inidoneidade, as empresas pararam de receber pagamentos, o que criou um problema de liquidez para todas elas.

Junte-se a esse problema de liquidez o fechamento do mercado financeiro para empresas de construção pesada e infraestrutura. A situação atual de incerteza (não saber qual será o impacto final da operação Lava Jato sobre as empresas) retrai todos os financiadores, que, na dúvida, preferem reduzir sua exposição ao setor (mesmo a empresas que não estão envolvidas na Operação Lava-Jato), o que significa não emprestar novos recursos e receber, o quanto antes, os pagamentos pelos empréstimos já feitos. Isso tem tornado inviável a rolagem das dívidas dessas empresas, mesmo as menores e de curto prazo, mesmo as de capital de giro.

Como as empresas não conseguem rolar suas dívidas, e estão com problemas de liquidez, estão adotando corte de custos (que, como mencionado, gera demissões) e desmobilização (interrupção) de obras por não pagamento pelos governos.

Além disso, para gerar liquidez, elas são forçadas a colocar seus ativos à venda. Mas como o momento da economia brasileira não é bom, como há expectativas que o setor de infraestrutura enfrente problemas por conta do escândalo da Petrobras, e como todas as empresas estão colocando seus ativos à venda ao mesmo tempo, os preços desses ativos estão caindo, e é possível que comecem a ser vendidos na bacia das almas, transformando uma situação de iliquidez, que é temporária, em uma situação de insolvência.

Ademais, como várias dessas empresas estão caminhando para uma recuperação judicial ou falência, a venda desses ativos é extremamente difícil, porque, os compradores temem que as vendas realizadas nesse período que antecede a uma eventual recuperação judicial ou falência sejam consideradas fraudulentas e anuladas, casos em que, além do comprador pagar e não levar o ativo, ele ainda fica exposto ao risco de ser considerado cúmplice na suposta tentativa do controlador do ativo de fraude aos credores.3

A combinação do não recebimento de pagamentos (inclusive pagamentos por obras que já estão feitas), com a incapacidade de rolar dívidas, e com a dificuldade de vender seus ativos, vai certamente levar várias empresas a ficarem inadimplentes com seus financiamentos. Já existem pelo menos 1 empresa de grande porte e 2 de médio porte nessa situação no setor de construção pesada. E, se nada for feito, em breve outras empresas grandes e médias estarão na mesma situação.

O inadimplemento no pagamento de dívidas aciona as cláusulas, prevista nos contratos de financiamento, de vencimento antecipado de dívidas e de inadimplemento cruzado (cross default). Por essas cláusulas, se uma empresa de um grupo econômico entra em processo de inadimplência, as dívidas dela e de todas as outras empresas do grupo econômico vencem antecipadamente.

Note-se que diversas das empresas de construção pesada que estão com problemas de liquidez integram grupos econômicos aos quais estão vinculadas concessões e PPPs nos diversos setores de infraestrutura. Nessas concessões e PPPs, há financiamentos de longo prazo, cujo pagamento se realizará com receitas a serem geradas nos próximos 10 a 25 anos. Se for declarado o vencimento antecipado dessas dívidas, a situação ficará inadministrável e, certamente, levará à quebra desses grupos econômicos, com consequências para o sistema financeiro nacional, para o mercado de capitais e para a economia do país como um todo.

Estima-se que as 10 maiores empresas de construção pesada do país e os seus grupos econômicos tenham pelo menos R$130 bilhões de dívida no mercado bancário e de capitais.4

Nos próximos dias, por exigências regulatórias, os bancos serão forçados a começar a fazer o write off (lançamento a perda) e write down (lançamento a perda parcial) dessas dívidas, o que gerará impactos na capacidade dos bancos de desempenharem suas atividades. É possível que isso precipite uma crise de liquidez também no mercado financeiro, o que seria um desastre em um país que já está com enorme dificuldade de ter crescimento relevante da economia no curto e médio prazos. Para se ter uma noção da relevância desses valores, basta notar que o patrimônio líquido do maior banco do país por esse critério está na ordem dos R$90 bilhões, sendo que o quarto maior banco do país tem patrimônio líquido de aproximadamente R$60 bilhões. O lucro no último ano de cada uma dessas 4 instituições que tem o maior patrimônio líquido foi menor que R$10 bilhões. Não precisa de cálculos muito expressivos para se notar as consequências que terá sobre o sistema bancário uma quebra em série do setor de infraestrutura.5

No mercado de capitais, a situação não é menos grave. Estima-se que o estoque da dívida desses grupos econômicos no mercado de capitais doméstico seja de, pelo menos, R$16 bilhões, em valor de face. No mercado de capitais internacional, a dívida estaria em aproximadamente R$5,9 bilhões também em valor de face. A particularidade da dívida no mercado de capital em relação ao tema desse artigo é que ela, em regra, é bem mais difícil de ser reestruturada do que a dívida bancária.

Além disso, existem várias concessões e PPPs que integram os grupos econômicos das empresas de construção pesada que estão em dificuldade. Várias dessas concessões e PPPs estão ainda em período de investimento: isto é as grandes obras estão em curso e dependem, para a sua conclusão, de novos aportes de capital dos acionistas, e do fechamento dos respectivos empréstimos-ponte e contratos de longo prazo de financiamento. Se deixarmos que o ciclo de iliquidez se aprofunde, em pouco tempo, essas obras vão parar, os contratos de concessão e PPP serão descumpridos, e as agências reguladoras dos setores de infraestrutura terão em suas mãos um problema sistêmico de quebra de contratos por iliquidez dos acionistas das concessionárias. Isso nunca aconteceu no país. No mínimo, será adiada a solução dos gargalos de infraestrutura que as concessões e PPPs resolveriam. Mas, o mais provável é que isso simplesmente inviabilize as concessões e PPPs já em curso, que passarão por um longo período de adiamento de investimentos e de descumprimento dos contratos, que provavelmente gerará multas e as tornarão inviável economicamente, requerendo intervenção e reestruturação do contrato de concessão ou caducidade, coisas que, com a exceção das ANEEL, as agências reguladoras no Brasil nunca fizeram e rigorosamente não têm capacidade de fazer. Uma outra possibilidade é, como já aconteceu no passado recente desse país, as agências permitirem tacitamente o adiamento de investimentos (como fez a ANTT em relação às concessões federais de rodovias realizadas em 2007), sem aplicar as multas e penalidades, dando fôlego às concessões e PPPs, até que o mau tempo passe. Mas isso prejudicará os usuários, e o país. E talvez sequer seja possível fazer isso novamente, em vista do acompanhamento das agencias realizado, cada vez mais próximo, pelo TCU.

2. Proposta de solução

É importante, antes de descrever a minha proposta de solução para o problema apontado, notar que os problemas de liquidez são temporários e podem ser resolvidos com medidas relativamente simples.

É preciso, por isso, agir rápido para resolvê-los, sob pena de deixar que eles virem problemas de insolvência, que são muito mais difíceis de administrar e que têm consequências perversas para o país, pois, rapidamente se espraiarão para os mais diversos setores de infraestrutura, para o setor financeiro e mercado de capitais, com impactos em toda a sociedade.

Por essa razão, sugiro que seja feito pelo menos o seguinte:

a) é preciso que os bancos públicos estruturem um programa que preveja linhas de crédito, eventualmente com preços de mercado, mas com uma política de exigência de garantias diferenciada, que permita às empresas de construção pesada rolarem suas dívidas. O pior que pode acontecer nesse momento é os bancos públicos se comportarem como banco comuns, ao invés de assumir a sua função de bancos de desenvolvimento, percebendo a importância de evitar a quebra por problemas temporários de liquidez de empresas solventes e relevantes para a retomada no curto prazo do crescimento econômico do país. Há ativos de boa qualidade controlados pelos grupos econômicos que são proprietários dessas empresas. Apesar de haver dificuldades e limitações regulatórias e contratuais, é preciso encontrar uma forma de que esses ou outros ativos sejam usados como garantia dos financiamentos a serem realizados para resolver os problemas temporários de liquidez dessas empresas.7

b) É preciso que as cláusulas de vencimento antecipado e de inadimplemento cruzado sejam interpretadas com extrema parcimônia pelos bancos, particularmente pelo BNDES. Isso é algo óbvio. Nenhum banco dispararia essas cláusulas a não ser que isso fosse algo inevitável. Mas é preciso ir mais longe e evitar acionar essas cláusulas de inadimplemento cruzado e de vencimento antecipado em concessões e PPPs controladas pelos grupos econômicos nos quais é possível que as empreiteiras entrem em recuperação judicial.

c) É preciso não parar o desembolso dos financiamentos já assinados.

d) É preciso seguir com a estruturação e realização dos financiamentos das concessões e PPPs já assinadas, malgrado as dificuldades pelas quais estão passando os grupos econômicos que são controladores dessas empresas, mantendo pelo menos as condições previstas nas cartas de intenção de financiamento que foram publicadas pelos bancos públicos quando da licitação dos respectivos contratos de concessão ou PPP. Particularmente, será importante usar a possibilidade de estruturar os financiamentos como project finance limited ou non recourse. Será muito difícil para os acionistas darem garantias corporativas nesse momento. Em regra, diante da crise atual de liquidez, já será um grande desafio cumprir com o compromisso dos acionistas desses projetos de realizar os aportes de capital nesses projetos previstos para o curto prazo.

e) Os contratos de concessão e PPP muitas vezes estabelecem cláusulas que preveem a sua extinção antecipada em caso de recuperação judicial ou perda das condições de habilitação financeiras e técnicas dos acionistas (que foram exigidas na licitação). Essas cláusulas precisam ser interpretadas de forma compatível com o interesse público, de modo manter as concessões em operação, assegurar a continuidade dos investimentos e não causar distúrbios desnecessários aos usuários.

Admito que a realização por bancos privados das ações acima previstas é provavelmente inviável.

Nos bancos públicos e de desenvolvimento, apesar das áreas técnicas entenderem a necessidade de fazer algo assim, elas não tomariam o risco de adotar essas ações isoladamente, sem a cobertura de uma política e de um programa, com regras claras, e criado com o objetivo de evitar o pior para o país.

Parece-me, por isso, indispensável a criação de um programa no âmbito do BNDES e/ou dos demais bancos públicos que viabilize pelo menos as ações acima mencionadas. Aliás, dada a dimensão do problema e as dificuldades envolvidas, creio que seria necessária a aprovação por lei da política para respaldar um programa desse tipo. Mas essa é uma análise que terá que ser feita oportunamente, quando da definição das linhas mestras da política/programa.

Resta saber se um governo que está de todo modo tentando se eximir da responsabilidade pelo escândalo na Petrobras e parecer distante dos grupos econômicos de infraestrutura terá a coragem institucional de adotar um programa desse tipo, que, na minha opinião, é indispensável se quisermos que o Brasil volte a crescer em prazos mais curtos.

___________

1 Estimativa realizada pelo autor, com base em informações obtidas com executivos de empresas e dos órgãos de representação de classe.

2 É provável, contudo, que a interpretação das regras sobre inidoneidade a ser dada nesse caso implique que a declaração de inidoneidade realizada no âmbito da Petrobrás atinja todos os novos contratos ou contratos em curso celebrados pela empresa no âmbito da União. Note-se que não se pode estender a outras empresas do grupo econômico os efeitos da declaração de inidoneidade, salvo se por desconsideração da pessoa jurídica, mediante demonstração de fraude.

3 A outra possibilidade seria fazer uma estruturação jurídica para a venda que assegurasse que o vendedor só receberá esses recursos uma vez que esses problemas estejam superados. O problema é que, evidentemente, esse tipo de estruturação não resolve o problema de iliquidez do vendedor e, por isso, essa estruturação termina sendo inútil nesse momento.

4 Estimativa realizada pelo autor com base em informações obtidas com executivos de várias dessas empresas do setor. Não encontrei dados públicos sobre a dimensão da dívida bancária dessas empresas. Por isso, estimei com base em informações que obtive junto a pessoas que trabalham nesse mercado. Em relação à dívida dessas empresas no mercado de capital interno e externo, ver a nota n. 7 abaixo.

5 Dados obtidos no website do Banco Central do Brasil, em 23/01/2015.

6 Essas estimativas foram realizadas utilizando dados disponibilizados pela Anbima para o mercado doméstico e a Bloomberg para o mercado externo.

7 As experiências semelhantes havidas mais recentemente de salvamento de empresas são o, assim chamado, “Hospital de Empresas” do BNDES, que funcionou na década de 1970 e 1980 e o PROER - Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional. Como, no caso em análise, o problema central é, por enquanto, um problema de liquidez, parece-me desnecessária a utilização de mecanismos que levem à assunção por instituições governamentais do controle das empresas, mesmo porque, em vista das dificuldades do ponto de vista prático e jurídico da intervenção por órgãos governamentais nessas empresas, isso só deveria ser feito em último caso. E juridicamente, em alguns casos, isso sequer é possível.

___________

*Mauricio Portugal Ribeiro é advogado especializado na estruturação, licitação e regulação de contratos de concessões e PPPs nos setores de infraestrutura, sócio de Portugal Ribeiro Advogados, e autor, entre outros, do livro “Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos”, publicado pela Editora Atlas, São Paulo, em 2011 e “Comentários à Lei de PPP – fundamentos econômico-jurídicos”, publicado pela Malheiros Editores, São Paulo, 2011 (esse último em coautoria com Lucas Navarro Prado).

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