“Já existe, felizmente, em nosso país, uma consciência nacional - em formação, é certo - que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronte.”
Joaquim Nabuco1
Há pouco mais de 5 anos foi marcado o dia 28 de janeiro, no Brasil, como dia nacional de combate ao trabalho escravo2. A data foi escolhida em homenagem aos auditores-fiscais do trabalho Eratóstenes de Almeida, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e ao motorista Ailton Pereira de Oliveira, assassinados quando investigavam denúncias de trabalho escravo em Unaí (MG).
Para muitas pessoas, a imagem que vem à mente, quando ouvem falar de escravidão, é aquela tão bem retratada no célebre poema de Castro Alves, O Navio Negreiro3, de um grande navio transatlântico trazendo em seus porões negros amontoados, obrigados a trabalhar à exaustão, maltratados e agredidos, tendo que conviver com a morte até a chegada ao continente onde seriam vendidos. Apesar do cenário distante no retrato do poeta, a escravidão existe, ainda hoje, apesar de haver sido juridicamente banida em quase todos os países em que foi legalmente admitida4. E o Brasil não é exceção, o que não surpreende se lembrarmos que foi o último país a acabar com a permissão legal da escravidão, em 13 de maio 1888, por intermédio da Lei Áurea5.
Conforme dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT)6, estima-se que ainda existem pelo menos 27 milhões de escravos e escravas em todo o mundo. A escravidão contemporânea, porém, atinge homens, mulheres e crianças de todas as cores, e tem sido praticada tanto no campo quanto na cidade. A característica comum é o trabalho forçado e a qualquer tempo, em condições indignas ao ser humano, normalmente controlado mediante fraude ou ameaça e violência à integridade física, à liberdade e/ou à vida.
No Brasil, desde que o governo deu o importante passo de admitir a vergonhosa existência da escravidão nos dias atuais e passou a combate-la com mais intensidade a partir de 2003, mais de 40 mil trabalhadores foram retirados de condições análogas à de escravidão7. Segundo dados do Ministério Público do Trabalho8, em 2014, foram instaurados 155 inquéritos para investigar a prática. Destacam-se empresas ligadas às atividades de construção civil, indústria têxtil e produção rural.
A exploração do trabalho análogo ao de escravo é considerada crime do Brasil (artigo 149 do Código Penal)9. E apesar do forte lobby da bancada ruralista no Congresso Nacional, o ano de 2014 trouxe uma grande conquista para o combate ao trabalho escravo quando, em maio, foi aprovada a PEC nº 438/01, transformada na Emenda Constitucional 81/2014, que conferiu nova redação ao artigo 243 da Constituição (DOU de 6.6.2014)10. O novo texto prevê a expropriação de imóveis urbanos e rurais onde for constatada a exploração de trabalho escravo, destinando-os para a reforma agrária e programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo das demais sanções legais.
Outro mecanismo extremamente eficiente implantado no Brasil na luta contra o trabalho escravo foi a chamada “lista suja do trabalho escravo”, mantida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, conforme a Portaria Interministerial MTE/SDH nº 2/2011. A inclusão do nome do infrator no cadastro ocorre após decisão administrativa relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos ao trabalho escravo. Essa lista foi criada com o objetivo de dar transparência às ações do poder público no combate ao trabalho escravo contemporâneo, e traz no seu rol os empregadores que foram flagrados explorando mão de obra análoga à de escravo, nos termos do artigo 149 do Código Penal Brasileiro.
Porém, em 22.12.2014, a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias - Abrainc entrou com ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 5.209), perante o STF, requerendo, em sede liminar, a suspensão da publicação da lista do trabalho escravo, pedido este que foi deferido pelo presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowsky. Sob a ótica do ministro, a portaria em questão ofenderia o artigo 87, II, da Constituição (princípio da reserva legal), ao verificar "a inexistência de lei formal que respalde a edição da portaria 2/11 pelos Ministros de Estado (...)". Fundamenta a referida decisão, ainda, na aparente inobservância do devido processo legal para que se insira determinado empregador no referido Cadastro.
Tal medida trouxe grande preocupação aos militantes em prol do célere banimento do trabalho escravo no País, porquanto a chamada lista suja do trabalho escravo, além de ter a sua legalidade reafirmada pela corrente jurisprudência nacional, traduz importante estratégia no combate a esse odioso crime. Nesse passo, a inadvertida suspensão possibilitada pela liminar do STF prejudica, ainda, as ações de mais de 400 empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que se comprometeram a estabelecer restrições na realização de negócios com aqueles que estão inseridos da lista sob comento. Outro dado relevante é que a inserção de empresa escravagista no referido cadastrado permite sejam impostas restrições quanto à concessão de créditos e financiamentos por bancos e instituições públicas federais, como o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, impedindo que o Poder Público financie esta prática. Na mesma linha estão os bancos privados, que, por decisão do Conselho Monetário Nacional, devem adotar restrições ao crédito rural aos empregadores que se beneficiam de mão-de-obra escrava.
Em síntese, a manutenção da suspensão da Portaria Interministerial MTE/SDH nº 2/2011 implicará indiscutível retrocesso no tortuoso caminho trilhado para a erradicação do trabalho escravo no Brasil. De fato, todo mecanismo institucional para combater esta chaga aberta no País é válido, especialmente porque os trabalhadores submetidos a condições degradantes são seres humanos invisíveis. Muitos deles não têm documentos básicos, como certidão de nascimento ou carteira de trabalho, e talvez não terão atestado de óbito quando vierem a falecer.
As listas em questão, uma vez publicadas, ainda possuem a importante função de permitir a identificação da cadeia produtiva de bens que são consumidos no mercado interno brasileiro, auxiliando a sociedade a efetuar seu papel repressivo, negando o consumo de produtos obtidos mediante a exploração de mão-de-obra escrava. Afinal, por detrás do trabalho escravo está a ganância, o desejo de lucro às custas da exploração máxima de outro ser humano. Nas palavras de Roberto de Figueiredo Caldas11, em exposição perante o Fórum Social Mundial em 2003:
“(...) Quem escraviza? Esta é a pergunta. Começamos dizendo, respondendo que quem escraviza é o capital insensível e desumano. É o lucro pelo lucro. A exploração do homem pelo homem. A barbaridade que está mostrando que está nas cidades. Está aqui no Brasil, está na América Latina, está na Europa, nos Estados Unidos. Está em todo o mundo. A insensibilidade é que escraviza. A globalização econômica é que produz este resultado. Em conversa com um juiz federal, ele me dizia: ‘Talvez’ – e eu digo: com certeza -, ‘se for colocar uma placa em uma determinada fazenda oferecendo trabalho escravo, podem ter certeza de que, infelizmente, haverá candidatos’. Infelizmente, a fome é quem escraviza. Se não houver segurança social, se não houver justiça social, continuará havendo escravos em nosso País e em qualquer parte do mundo. Nós, da área jurídica, devemos pensar, sim, em melhorar as leis, em determinar a expropriação das terras dos fazendeiros que escravizam, em colocar na cadeia estes desumanos. Mas a mudança na lei não adiantará nada se ela simplesmente não for cumprida, como tem sido a lógica de nosso País”.12
São essenciais mudanças estruturais visando à melhor distribuição de renda e à oferta de empregos dignos a todos, em prol da erradicação do trabalho escravo. Do contrário, mesmo que seja curada – e ainda não foi - esta ferida poderá não cicatrizar nunca no Brasil.
Que a memória dos bravos auditores-fiscais e do motorista assassinados no dia 28 de janeiro, aliada à realidade de tantos homens, mulheres e crianças escravizados nos dias de hoje em nosso País, possam inspirar as autoridades públicas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, e também nos trazer a consciência cidadã de agir, dentro de nossas possibilidades de denúncia e de consumo, no intuito de contribuir com a cura desta ferida ainda aberta em nosso amado solo.
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1 Joaquim Nabuco ou Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em 19.8.1849, em Pernambuco, e faleceu em 17.1.1910, em Washington, DC. Filho de jurista e político baiano que se radicou no Recife, Joaquim Nabuco se opôs de maneira veemente à escravidão, tanto por meio de atividades políticas quanto de escritos. Fez campanha contra a escravidão na Câmara dos Deputados de 1878 e fundou a Sociedade Anti-Escravidão Brasileira. Foi em grande parte responsável pela abolição da escravidão em 1888. NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo: Publifolha, 2000.
2 Lei nº 12.064. Diário Oficial da União de 30.10.2009.
3 Cuida-se de um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira. O poema descreve com imagens e expressões terríveis a situação dos africanos arrancados de suas terras, separados de suas famílias e tratados como animais nos navios negreiros que os traziam para ser propriedade de senhores e trabalhar sob as ordens dos feitores. Foi escrito em São Paulo, em 1869, quando o poeta tinha 22 anos de idade.
4 Fato marcante que deve servir de lembrança de que nem toda lei é justa.
5 Na segunda metade do século XIX surgiu o movimento abolicionista, que defendia a abolição da escravidão no Brasil. A região sul do Brasil passou a empregar trabalhadores assalariados brasileiros e imigrantes estrangeiros, a partir de 1870. Na região Norte, as usinas produtoras de açúcar substituíram os primitivos engenhos, fato que possibilitou o uso de um número menor de escravos. Já nos principais centros urbanos, era grande a necessidade do surgimento de indústrias. Visando a não causar prejuízo financeiros aos proprietários rurais, o governo brasileiro, pressionado pelo Reino Unido foi avançando no tema. A primeira etapa do processo foi tomada em 1850, com a extinção do tráfico de escravos. 21 anos mais tarde, em de 28.9.1871, foi promulgada a Lei do Ventre-Livre. Esta lei tornava livres os filhos de escravos que nascessem a partir de sua decretação. No ano de 1885 promulgou-se a lei Saraiva-Cotegipe (também conhecida como Lei dos Sexagenários), que beneficiava os negros com mais de 65 anos de idade. Foi somente em 13.5. 1888, com a Lei Áurea, que a liberdade total e definitiva finalmente foi alcançada pelos negros brasileiros. Esta lei, assinada pela Princesa Isabel (filha de D. Pedro II), abolia de vez a escravidão em nosso País.
6 Acesso em 28.1.2015: http//www.ilo.org.br.
7 Muitos foram resgatados mais de uma vez, porque não encontraram meios de sobreviver em suas cidades de origem e caem novamente na teia dos “gatos”. Faltam políticas públicas, falta trabalho digno. O que é negado aos trabalhadores, quase sempre, são os direitos básicos: água e comida limpas, uma cama com colchão e roupas de cama para dormir, chuveiro para o banho depois do trabalho, uma mesa para comer, banheiro para suas necessidades fisiológicas. E o pagamento justo por seu trabalho, jornada de trabalho que permita o descanso, o direito de ir e vir.
8 Acesso em 28.1.2015: http//www.mpt.gov.br.
9 Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003). Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003); II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003).
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) I - contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003); II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003).
10 Art. 1º O art. 243 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei."
11 Advogado militante, com extensa atuação em defesa dos trabalhadores e dos direitos sociais, e Vice-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
12 Forum Social Mundial 2003. Anais da oficina trabalho escravo: uma chaga aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 41.
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