Migalhas de Peso

A Petrobras e a mulher de César - A responsabilidade do controlador

Para o imperador romano, "não basta que a mulher de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita”.

7/1/2015

Em episódio muito citado da vida de Júlio César, sua esposa Pompeia terminou sendo repudiada pelo marido e colocada no ostracismo mesmo depois de ter sido inocentada publicamente por ele mesmo a respeito de uma acusação de adultério. Indagado sobre a sua contradição, disse o imperador romano que “não basta que a mulher de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita”.

E o que a Petrobras tem a ver com isto? Ora, nos tempos que correm soltos, tudo indica, à luz do farto noticiário que inunda há semanas os meios de comunicação, que o seu controlador e administradores (conselheiros de administração e diretores), entre outros envolvidos no grande escândalo, não são honestos e muito menos parecem sê-lo. As desculpas esfarrapadas que são dadas não têm convencido ninguém, muito menos a saudosa velhinha de Taubaté.

Se houvesse qualquer resquício de vergonha na cara, toda a diretoria da Petrobras teria tomado a iniciativa de se demitir. E se isto tivesse acontecido no Japão de antanho, não haveria espadas suficientes para se auto estripar barrigas.

As perdas experimentadas pela empresa são contadas nas casas dos bilhões de dólares, como se fossem troco de padaria, não fazendo as pessoas uma devida avaliação do tamanho desse rombo para os bolsos públicos e particulares. E, como é uma sociedade de economia mista, quem paga a conta no final de história é sempre o cidadão brasileiro, por via dos impostos escorchantes que enfrenta a cada momento ou pela maquininha de fazer dinheiro que o Governo tem em casa.

Não é o caso aqui de repetir toda essa conhecida história, desde as suas causas remotas até as recentes, intrinsecamente de fundo político, nascidas e desenvolvidas nos três últimos governos presidenciais. Não que antes a corrupção não tenha dado as caras por ali. Mas a desenvoltura com que ela se alastrou nos últimos tempos nos deixa a todos verdadeiramente abismados.

Ora, os tais malfeitos devem ter a sua paga. E esta se espraia por uma enorme série de leis que condenam seus autores nos planos societário, administrativo, civil e penal. Por enquanto vamos ficar no primeiro e começando pela responsabilidade do controlador da Petrobrás.

Em primeiro lugar, quem é ele? Ora, é o governo Federal, que tem a maioria do capital votante e que elege a maioria dos administradores pela via direta e indireta, nos termos do art. 116 caput da lei das sociedades anônimas. Veja-se que nos termos do art. 173, § 1º, II da CF as sociedades de economia mista se susjeitam ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. É interessante que esse aspecto nunca aparece quando se fala de responsabilidades no campo de tais sociedades.

A via direta de atuação do controlador se dá pelos votos dos representantes do governo nas assembleias da Petrobras. E a via indireta ocorre por meio dos representantes dos fundos de previdência das próprias empresas do governo, que neles colocam homens da sua confiança (e que nós outros olhamos com toda a desconfiança). Estes elegem conselheiros e diretores que serão meras vacas de presépio nas assembleias, balançando a cabeça para cima e para baixo em aprovação a tudo o que seu mestre (o Governo) mandar.

O que diz a lei no tocante ao modo pelo qual o controlador deve agir à frente da sociedade sob o seu comando? Ora, o seu modus operandi normal é claramente delineado no parágrafo único do mesmo art. 116, parágrafo único, que convém reproduzir:

O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.

Simples, não?

Realizar o objeto e cumprir sua função social é desenvolver a área de petróleo em geral em benefício dos acionistas, dos empregados e da comunidade em que atua. Neste sentido, não parece que essa obrigação tenha sido cumprida quando se vê que o dinheiro da empresa foi gasto para construir um porto em Cuba o que tudo indica, beneficiará muito os governantes daquele país e, nem tanto, a comunidade cubana.

Da mesma forma, malfeitos, tais como maquiagem de balanços, fornecimento de informações falsas, tendenciosas ou incompletas, pagamento de propinas, etc. também não cumprem a função social e nem atendem os demais interesses resguardados pela lei.

Ora, dando de barato (na verdade, muitíssimo caro), que as acusações sobre os desmandos na Petrobras são essencialmente verdadeiras e que nelas o controlador tem uma fundamental parte de culpa, cabe a sua responsabilização de forma integral, para que os efeitos dos prejuízos causados venham a ser completamente anulados.

E aí, como fazer?

Fácil, basta examinar o que diz em seguida o art. 117, ao tratar da responsabilidade do controlador por abuso de poder. Como ali se encontra estipulado, ele responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder, dos quais o dispositivo no seu parágrafo 1º dá alguns exemplos, entre tantas situações que podem ocorrer:

a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional.

Entre outros casos, a história do famoso porto em Cuba se coloca claramente na situação acima. E a história mal contada da refinaria de Pasadena ainda não passou e não poderá passar tão cedo de forma incólume para quem gerou a tremenda perda financeira ali verificada.

(...)

d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente.

O currículo (ou seria folha corrida ou ainda, a capivara) dos administradores da Petrobras preenche essa hipótese com muitas sobras.

e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembleia-geral.

Corromper e tentar corromper são pratos cheios neste item.

f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas.

É o famoso contubérnio, como exemplo de uma relação ilegítima, tão ouvida pelos estudantes de Direito Romano.

g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade.

Parece que os balanços da Petrobras têm sido feitos em uma oficina mecânica de periferia, usando-se martelo, alicate e chave de fenda e ai de quem resolvesse falar alguma coisa contra. E agora assustada, uma entidade de auditoria independente está saindo fora do jogo, mais com medo do que vem de fora (USA) do que vem de dentro (nossa justiça tão lenta e tão perdida como aquela formiga que passou por cima de uma gota de cachaça). E nesse campo qualquer acusação deveria ser prontamente investigada e não jogada no “cesto” arquivo.

h) subscrever ações, para os fins do disposto no art. 170, com a realização em bens estranhos ao objeto social da companhia.

Isto me lembra o famoso e infausto aumento de capital da empresa, feito com os direitos que o Governo detinha em relação ao pré-sal, e sobre o qual eu escrevi um artigo na época (“A Padaria do Seu Manoel e a Petrobras ou como Algumas Espertezas Geraram Risco Sistêmico”, Migalhas, 16.09.2010). Esse foi o aumento de capital mais aguado no conteúdo e mais salgado no preço de toda a história do mercado de capitais.

A propósito, a Petrobras envolvida em todo esse pavoroso affair já se tornou em estudo de caso que encherá páginas e páginas de livros em papel e eletrônicos sobre o que não se deve fazer com uma companhia aberta.

O quadro é muito claro de responsabilidade do controlador da Petrobras. Cabe a quem de direito botar a mão na massa. Com luvas, é claro, pois o risco de contaminação bacteriana é muito grande (a bactéria foi identificada como sendo a corruptenses insidiosas), muito pior do que o ebola.

É evidente que a imensa quantidade de prejudicados não tem condição de agir isoladamente na defesa dos seus interesses. Que se unam, então, em grupos formados para que as medidas necessárias sejam providenciadas na busca da reparação do seu prejuízo.

Obrigado pela audiência e até o próximo capítulo.

_______________

*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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