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Can you breathe? – Variações sobre a morte de Eric Garner

Essa universalização de questões sociais, geradoras de decisões e ações mutiladas, precisa ser combatida, para, assim, podermos todos efetivamente respirar.

11/12/2014

No último dia 3 de dezembro, um júri popular do distrito de Staten Island, em Nova York, decidiu não formalizar a denúncia de homicídio contra o policial Daniel Pantaleo, acusado de matar Eric Garner, quando tentava efetuar sua prisão, aplicando-lhe uma gravata para subjugá-lo.

O fato poderia ser simples case study ou aumentar a jurisprudência americana sobre limites da ação policial em detenções, se não fossem duas circunstâncias: o policial era branco e o cidadão, negro.

A partir daí, uma série de reflexões pode ser elaborada, incluindo a manifestação popular, após o veredito, contra o possível fundamento de racismo contido na decisão. Mais que violência, evidenciou-se questão racial, de conotação extremamente acentuada nos EUA e, ressalte-se, de estrutura diferenciada da nossa, em termos de sua problemática.

Um dos temas que podem ser discutidos é essa distinção do problema racial. Quais as bases e fontes de surgimento do racismo brasileiro? No que ele pode ser semelhante ou divergente do americano?

Partindo-se do princípio que todas as questões sociais são históricas e, portanto, situadas no espaço e no tempo, colocar tais perguntas permite escapar do erro comum em nossa área jurídica e ocasional em análises de entender certas situações socioeconômicas e culturais como pertencente a um único eixo universal.

O racismo, por exemplo, não é em sua natureza universal. Ele pode ocorrer em muitos ou em todos os lugares do mundo, mas a estrutura das relações que o constituem e a formas em que ele se efetiva não são as mesmas.

Para poder entender a decisão do júri nova-iorquino em relação ao suscitado problema racial, deve-se buscar antes compreender a formulação do racismo e sua dinâmica na sociedade americana.

Um segundo aspecto pode ser o modo da abordagem policial. Pelo que se vê no vídeo gravado por Ramsey Orta, colega da vítima, não fica claro o motivo. Os policiais afirmaram, segundo a imprensa americana, que havia suspeita de venda ilegal de cigarros. Pelo que pode ser ouvido no referido vídeo, Garner teria apartado uma briga.

Qualquer dos dois motivos permitiria a abordagem, de modo geral. O ponto é que, pelo menos a imprensa não divulgou, quais eram as evidências da venda ilegal. Não foi dito se os policiais encontraram cigarros com a vítima ou nas proximidades, nem se havia dinheiro com ela. Estes seriam indícios de eventual negociação ilícita. Seria permitida abordagem mais efetiva ou enérgica se os policiais tivessem apreendido material suspeito.

Quanto à briga, se Garner era agressor ou simples apartador, os agentes da lei não poderiam saber, por isso, deveriam agir com muito mais cautela, procurando acalmar o indivíduo e dizendo a ele que pretendiam ouvi-lo para organizar a ocorrência.

Esta é uma das principais falhas da polícia, que faz nascer a violência. O policial tem de saber abordar as pessoas de forma a manter protegida sua integridade física, sem ofender a integridade moral de quem é abordado. Se o cidadão se sente ofendido, ele irá reagir verbalmente, mesmo que tenha praticado algo errado, porque acredita não merecer aquela injúria. O policial deve tentar acalmar o cidadão, com a correta justificativa de pretender cientificar-se do ocorrido. Se o cidadão reagir fisicamente, somente então o policial estará autorizado também a fazê-lo.

Outro ponto tão ruim ou pior que o étnico, quando questionada possível violência policial, é o da suspeita originada a partir de antecedentes do abordado. Não pode haver nada mais execrável que o pré-julgamento do policial por conta do indivíduo possuir ficha criminal, seja como indiciado, processado ou condenado. A única conduta aceitável do agente da lei quando ciente de que o indivíduo tem passagem é agir com mais cautela. Há probabilidade de maior risco, mas não certeza. O que se vê muitas vezes é o policial expressando seu juízo contra o abordado com expressões como “ladrão”, “cadeiero” e “vagabundo”.

Isto pode ser chamado de “racismo social”, juízo que lança a pessoa a uma classe inferior, distante da moralidade dominante e ausente de normalidade, qualificando-o como alguém sem recursos e, portanto, como criminoso contumaz e habitual. É excludente, na medida em que retira do indivíduo a sua categoria de cidadão, desobrigando o policial de respeitar sua dignidade.

Segundo o vídeo, pela forma como se expressa Garder, pode-se presumir que os policiais tenham sido acometidos deste inaceitável tipo de racismo, além do fato de ser ele também negro.

Por fim, para encerrar o texto, tocamos no aspecto judicial da decisão, em face de artigo de Hélio Schwartsman, para a Folha de São Paulo, do dia 06/12/14, em que afirma não ser possível à Justiça Criminal julgar apenas com base no resultado, mas levar em conta também as intenções dos acusados. Certamente os policiais não tinham intenção de matar a vítima, mas uma das deficiências da Justiça – parece também ser a da americana – é levar em conta todo o universo de circunstâncias que envolve a situação. Na maior parte das vezes, a decisão se baseia numa relação de causa e efeito permeada pela intenção. Faltam exame e argumentação que decomponham a estrutura da conduta e a deixem clara em seus fundamentos, para além de uma justificação lógico-formalista. Em suma, cai-se no erro da análise de eixo universal, acima mencionada.

Essa universalização de questões sociais, geradoras de decisões e ações mutiladas, é que precisa ser combatida, para, assim, podermos todos efetivamente respirar.

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*João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, diretor-presidente do Instituto Ibaixe e presidente da Comissão de Direitos Culturais e Economia Criativa da OAB/SP.

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