Migalhas de Peso

Cartola, o riso, o choro e o art. 298, parágrafo único, do projeto de novo CPC

A efetividade da atividade jurisdicional, neste passo, está na iminência de ser gravemente ofendida caso se confirme esta insidiosa redação do art. 298, parágrafo único.

3/12/2014

"Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar"

Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), intérprete de Preciso me Encontrar, de Candeia, não era processualista. Mas os deliciosos e célebres versos desta canção se aplicam à luva ao art. 298, parágrafo único, do projeto de novo CPC em sua redação atual, proveniente da Câmara dos Deputados.

Alheio aos usos e costumes das práticas do jogo legislativo, por vezes apanho-me pensando sobre os vãos e desvãos pelos quais vem e vai um projeto de lei.

A imensidão de pressões, os fluxos e refluxos e a pletora de interesses que conformam um projeto de lei ao longo de sua tramitação devem formar o enredo de um filme interessantíssimo. Ou de filmes interessantíssimos, a um só tempo películas de comédia, de terror, de suspense, de romance, de ficção.

Nestas linhas, dedico-me a comentar sobre uma passagem do projeto de novo CPC que, permissa venia, parece haver sido extraída de um filme de horror. Horror processual poderia ser o gênero.

O protagonismo é do art. 298, parágrafo único, do projeto de novo CPC recém-saído da Câmara dos Deputados e que presentemente aguarda votação no Senado Federal.

Predita proposta legislativa estabelece, em outras palavras, a vedação do bloqueio on line de quantias em sede de tutela antecipada. Ou seja, a apreensão on line, via BacenJud, de ativos financeiros apenas poderá dar-se, vingando a redação do art. 298, parágrafo único, do projeto de novo CPC atual, em sede de execução provisória de sentença ou, de forma geral, após à formação de coisa julgada. Não quando da prolação de decisão interlocutória de antecipação de tutela.

Trata-se, em nosso pensar, de rematado absurdo. É a vanguarda do atraso, quiçá fruto de influxos nefastos e interesseiros que renitem em contaminar um projeto de lei tão relevante, tão acalentado.

Caríssimo Leitor, convenhamos: como é possível admitir como útil ou positiva tal proposição legislativa?

Circunscrever o bloqueio eletrônico de ativos financeiros apenas a situações de execução provisória ou definitiva de sentença, impedindo que tal medida seja adotada em sede de tutela antecipada, traz no mínimo duas grandes agressões a este relevante e já consagrado mecanismo de conservação e efetivação célere de direitos.

A primeira grande violência imposta à tutela antecipada ao impedir-se que por seu intermédio se dê a apreensão eletrônica de quantias advém da evidente retirada de força das decisões antecipatórias concessíveis em ações destinadas à condenação em dinheiro, ou que nestas podem converter-se.

Imagine-se, por exemplo, determinada hipótese concreta em que o autor da ação apresente crédito em dinheiro insatisfeito, crédito este aderido de prova robusta de sua existência e, também, arriscado de jamais ser satisfeito em virtude de práticas de evasão patrimonial por parte do devedor. Nesta situação, se o caso for exigente de concessão de tutela antecipada cautelar, por exemplo (esta é a nomenclatura adotada pelo projeto de NCPC para as atuais tutelas cautelares), ficariam o órgão jurisdicional e a parte de mãos atadas, porque simplesmente seria vedado o bloqueio on line de quantias deste devedor que adota práticas de esvaziamento patrimonial. A apreensão eletrônica de bens seus apenas seria factível, consoante sugere a redação do art. 298, parágrafo único, do projeto de NCPC em sua redação atual, quando for o momento de futura execução provisória de sentença (se esta for possível), ou mais comumente quando for o momento de execução definitiva do julgado (após a formação de coisa julgada).

Ou seja, o devedor apenas estaria sujeito à apreensão eletrônica de ativos financeiros quando...souber que foi condenado ao pagamento de quantia!!! O apelo à ineficácia da decisão é gigantesco.

Uma segunda grande agressão ao instituto da tutela antecipada ao impedir-se o bloqueio on line de quantias antecipadamente reside na aniquilação do “elemento surpresa” ínsito a qualquer decisão liminar.

Ao pretender a extinção do bloqueio on line por via da tutela antecipada, o projeto de NCPC simplesmente propõe um sistema ingênuo de apreensão eletrônica de quantias: isto apenas será passível de ocorrência quando da execução de sentenças, em caráter provisório ou definitivo, porém jamais em sede de decisão interlocutória concessível inaudita altera parte.

O “elemento surpresa” inerente às decisões de antecipação de tutela some!

Estaríamos, nestas condições, à beira do elogio à fraude, do estímulo ao sumiço de dinheiro: imaginar que o réu apenas poderia ter quantias suas eletronicamente apreendidas em sede de execução de sentença (e não em virtude de decisão antecipatória de tutela) é pretender que este réu aguarde placidamente sua derrota judicial, mantendo intocados e em seu nome seus ativos financeiros para que tais sejam apreendidos. Absurdo.

O que nos parece incrível nesta proposição legislativa (Projeto de NCPC, art. 298, parágrafo único) é que estamos diante, caso vingue sua redação atual, de autêntico estímulo ao extravio de dinheiro por parte do réu sucumbente que antevê sua derrota: sabedor da impossibilidade de ter recursos financeiros apreendidos em sede de tutela antecipada, o réu eventualmente derrotado, uma vez proferida a sentença condenatória, seguramente se adiantará ao cumprimento do julgado e esvaziará suas contas.

A efetividade da atividade jurisdicional, neste passo, está na iminência de ser gravemente ofendida caso se confirme esta insidiosa redação do art. 298, parágrafo único, do projeto de Novo CPC.

É rir para não chorar...

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*Rogerio Licastro Torres de Mello é sócio fundador do escritório Licastro Sociedade de Advogados, professor e vice-presidente do Conselho do CEAPRO - Centro de Estudos Avançados de Processo.

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