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Constituição, Processo e Prisão Civil do Devedor de Alimentos: diálogos entre o pretérito, o presente e o porvir

Projeto de novo CPC acertou em manter o exíguo prazo de justificação e a ameaça de regime fechado, com o fito de constranger o devedor ao adimplemento.

2/12/2014

A liberdade é a regra civilizatória. Por isso mesmo, Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988, estabeleceu em seu rol de direitos fundamentais o teor do inciso LXVII do artigo 5º, o qual estabelece que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Percebe-se aqui que houve luzidia preocupação do constituinte, ciente da dimensão patrimonial das garantias, em regulamentar como regra geral a proibição da prisão civil do devedor inadimplente, prevendo somente duas exceções expressas e taxativas1 que já são, de certa forma, uma tradição no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro2.

Aqui segue, à luz da regra processual projetada na ambiência do processo civil, reflexão sobre o núcleo desse mote.

Vencido foi, pela hermenêutica sistemática mais refinada e sustentada numa sólida racionalidade jurídica, simultaneamente interna e exógena, quanto à questão no âmbito da alienação fiduciária e ali do depositário infiel. No que diz respeito à prisão civil do inadimplente de alimentos, tem-se que não existem maiores discussões acerca de sua constitucionalidade, em face da exceção prevista em múltiplos textos constitucionais nacionais e internacionais acerca do tema, como é o caso de diversos tratados ratificados pelo Brasil.

O próprio Pacto de São José da Costa Rica admite esta exceção em seu artigo 7, dispondo que “ninguém deve ser detido por dívidas”, mas que “este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

Esta previsão da prisão do devedor de alimentos ocorre como medida extrema e excepcional, tendo em vista que é direito personalíssimo e igualmente fundamental o acesso do credor a seus alimentos, de modo a concretizar a assistência familiar e o princípio do melhor interesse do menor. Mediante a prisão, que pode ser decretada quantas vezes forem necessárias até o pagamento da verba alimentícia, busca o Estado, por meio de prestações positivas, instar o inadimplente a respeitar os direitos de outrem solidariamente.

Considerado todo o contexto constitucional envolvendo o instituto da prisão civil do devedor de alimentos, nos parece que o projeto do novo Código de Processo Civil fez bem ao evitar amenizações para essa medida excepcional. A mudança então almejada no curso dos debates quedou-se com a manutenção do quadro posto nessa tendência.

As discussões em torno do novo projeto se voltavam para a dilatação do prazo de justificativa do devedor, após a intimação, que passaria de 3 dias para 10 dias, ao mesmo tempo em que também se discutia a substituição do regime fechado para o regime semi-aberto. Tais modificações, em verdade, mitigariam a efetividade da prisão civil. Note-se que, como bem salientam Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini, a prisão civil do devedor de alimentos não trata realmente de uma pena e nem mesmo de um meio executório propriamente dito; é, na verdade, um meio coercitivo (de feitio excepcional) para compelir o devedor a adimplir. A iminência de prisão, portanto, teria o condão de instar o devedor ao pagamento, de modo a evitar ou suspender o cumprimento da prisão3.

Ao fim das discussões e redação final do projeto, decidiu-se, com acerto, entre o regime presente e a proposta então em pauta, conservar o método atual da prisão civil do devedor de alimentos, mantendo-se o prazo de três dias para justificação e a prisão em regime fechado. As tentativas de amenização do instituto, portanto, foram rejeitadas.

Conforme visto acima, diferentemente da prisão civil do depositário infiel, que encontra justo rechaço na doutrina internacional de direitos humanos, a prisão civil do devedor de alimentos encontra assento não só na Constituição Federal, mas também em importantes documentos internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica. De fato, a prisão civil nesse caso tem um importante objetivo de assegurar a dignidade do alimentando.

Cumpre, nada obstante, não aceitar pacificamente, no estágio da sociedade plural e complexa do século XXI, soluções pretéritas cujo contexto vem se modificando substancialmente. Nesta senda, importante diferenciar alimentos compensatórios daqueles alimentos necessários à manutenção da dignidade do credor alimentício. Por certo que os primeiros não podem ensejar a prisão civil, contudo, os segundos, reputando como verdadeira a idéia de que a ameaça de prisão civil gera o adimplemento, se configuram como justo motivo para a decretação da prisão do devedor.

Ainda mais: o pretenso caráter garantidor da prisão civil, não se pode, igualmente, deixar de considerar toda a crítica justa e necessária ao uso da prisão para a resolução de conflitos interprivados. Em verdade, em qualquer hipótese a pena preventiva de liberdade, sobretudo no contexto sócio-político brasileiro, é deveras questionável.

Muito embora no campo teórico a prisão civil não se encaixe na definição penal, no campo prático, sobre o devedor de alimentos recairá, tal qual recai sobre o condenado penal, o mesmo peso de um sistema carcerário inquestionavelmente falido e violento. Como bem aponta Juarez Cirino dos Santos, “a prisão produz e reproduz os fenômenos que, segundo o discurso ideológico, objetiva controlar e reduzir.”5 Ademais, note-se que a prisão em si não garante o cumprimento da execução e, ao considerar aquele que não tem condições de adimplir, a prisão civil apenas agrava a situação, vez que, estando preso, não poderá levantar fundos para o pagamento da dívida, e fora da cadeia sofrerá todo o estigma que recai sobre ex-prisioneiros. De fato, a prisão civil parece reforçar o argumento criminológico da existência de uma seletividade punitiva intrínseca.

Não se duvida que a pretensão coercitiva gere os efeitos esperados sobre aquele que não paga mesmo quando tem condições, e nesse sentido, é certo que a prisão civil cumpre o papel garantidor de dignidade. No entanto, sobre aquele que não tem possibilidades financeiras de adimplir com os alimentos, a prisão civil parece pouco ajudar. Paulo Lôbo é certeiro ao afirmar que a prisão civil é instrumento a ser usado com prudência e parcimônia, não devendo se prestar a veiculação de vingança privada ou de agravamento das condições de rendimentos do devedor. “Preferentemente, deve ser utilizada em caso de reiteração sucessiva de inadimplemento injustificado.”5

Algumas experiências do direito comparado apresentam soluções mais efetivas para o pagamento da dívida de alimentos. Em Portugal, por exemplo, existe um fundo público de garantia que assegura os alimentandos quando há impossibilidade momentânea do devedor de alimentos adimplir com sua obrigação. Trata-se de medida mais efetiva, na medida em que garante o cumprimento da obrigação e assegura a dignidade do credor alimentício, além de não impor ao devedor de alimento sanção deveras gravosa.

Em suma, não se pode negar que o instituto da prisão civil, em seu caráter coercitivo, de ameaça, é inegavelmente útil e, no mais das vezes, leva o devedor ao cumprimento da obrigação, sendo que, nesta toada, o projeto de novo CPC acertou em manter o exíguo prazo de justificação e a ameaça de regime fechado, com o fito de constranger o devedor ao adimplemento. Para além disso, no entanto, a crítica à prisão é muito apropriada e o instituto da prisão civil além disso é inadequado para a situação daquele que, realmente, não pode pagar sua dívida. Para esses casos, urge construir uma medida mais efetiva, que não só evite prisões injustas, como, de fato, garanta a execução dos alimentos.

Esse objetivo arrosta não apenas a regra como também ao senso mínimo de justiça. Eis um olhar ainda a reclamar a atenção dos juristas comprometidos com o conceito da vida e não apenas com a vida dos conceitos.

________________

1 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 678.

2 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 478.

3 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de Processo Civil, vol. 2: execução. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 564.

4 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3. ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008, p. 83.

5 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 395.
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*Luiz Edson Fachin é advogado do escritório Fachin Advogados Associados. Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

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