Migalhas de Peso

As histórias que sempre escutamos sobre as chuvas e a história sobre a seca que estamos vivendo

Se os brasileiros não mudarem de atitude, a disputa por água no Brasil pode engrossar mais 2.200 conflitos diplomáticos, econômicos ou militares planeta afora.

13/11/2014

A casa da minha avó sempre foi um lugar muito gostoso para mim. É lá que ouço as histórias da vida difícil da família materna, que veio para Belo Horizonte há uns 60 anos. Em toda história contada tinha, ao menos, um temporal. Eram muitas casos sobre a importância das águas para a sobrevivência do ser humano, sobre a importância das águas para a roça e muitas histórias sobre as chuvas que cobriam capital nos anos 60, 70 e início dos 80, das enxurradas que deixavam a população ilhada em suas casas, tempos em que não havia tanta rua asfaltada e, onde não havia muita lama por causa das chuvas, havia poeira, logo depois que os temporais cessavam.

Domingo almocei na casa dela e ouvi, atentamente, algumas dessas histórias novamente. Havia uma curiosidade: se ela já tinha visto alguma seca tal como esta que cobre Minas Gerais. Ela, na sua simplicidade, disse que não, o que me causou certa frustação, afinal foi a primeira vez que ouvi dela uma história que não tinha a chuva como atriz principal.

Minha vó, no alto dos seus quase 90 anos, sabe que para muitos a falta de água passa pelo fenômeno do êxodo rural, pela urbanização ainda crescente dos espaços públicos e pela verticalização nos centros urbanos. Ela tem visto na TV e lido nos jornais que moradores de vários municípios em Minas ficaram sem água nos últimos dias, inclusive, fazendo com que algumas cidades passassem a multar quem desperdiça água. Em alguns lugares, contou minha avó, há cidadãos que não têm água nem para suas necessidades básicas.

Contei para minha avó que é importante não se colocar a falta de águas apenas no fenômeno do aquecimento global. Embora a Constituição de 1988 tenha delineado que União e Estados detêm o domínio dos recursos hídricos, que cabe à União legislar sobre águas e a todos os entes federados preservar o meio ambiente. O Brasil sempre tratou muito mal os seus recursos hídricos. Desperdiça-se 40% da água captada, que vaza por tubulações de manutenção precária, há problemas na rede de distribuição e muita água é poluída todos os anos. Tudo isso somado ao fato de que o consumo de água vem aumentando bastante.

A novidade que é incomoda é a seca, a falta de chuva. Cada pingo d'água é motivo de comemoração, inclusive pelas redes sociais. Embora minha vó nunca tenha vivido uma época de seca tão forte, a resposta para evitar uma crise em decorrência de falta de água ela já sabe, pela lógica da fábula da formiga que tem que estocar alimentos para o inverno mais rigoroso, lógica que impõe a revisão de hábitos individuais, tais como fechar a torneira quando se escova os dentes ou banhos mais curtos. Apesar de conhecer muitos outros métodos, a população brasileira não os executa, o que exige também uma atuação maior do poder público na implementação de políticas que combatam o desperdício.

Chegamos ao consenso que se os brasileiros não mudarem de atitude, a disputa por água no Brasil pode engrossar mais 2.200 conflitos diplomáticos, econômicos ou militares planeta afora. Nos Estados Unidos, a demanda por água per capita ultrapassa os 500 litros. Países pobres, como Moçambique, não têm 4 litros de água por morador, sendo que a ONU recomenda que cada pessoa utilize 55 litros por dia. Esses exemplos ilustram um problema que não é somente do Brasil, mas, que o descaso ainda é "bem brasileiro". A mudança urge, caso contrário, nem eu, nem minha vó, contaremos mais histórias sobre o excesso de chuva, sobre os temporais, ainda que esse fenômeno cause muitos problemas, outros problemas, essas ficarão para os livros. Já as histórias sobre a seca, sobre a falta de chuva, terão um espaço sempre maior.

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*Leandro Eustaquio é mestre em Direito Público pela PUC/MG, professor de Direito Ambiental, coordenador do departamento de Direito Ambiental da Décio Freire e Associados.

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