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Consideração crítica sobre a regulamentação dos conselhos populares

Aqui reside o busílis: qual a compreensão precisa da expressão “deverão considerar”?

7/11/2014

Pergunta Sócrates: Como deveria ser tratado, no Estado ideal, um homem dotado de qualidades superiores, um verdadeiro gênio? Platão responde: nós o honraríamos como um ser digno de adoração, maravilhoso e amável; mas depois de lhe fazer notar que não existe homem de tal espécie no nosso Estado, e que tal não deve existir, ungiremos a sua cabeça e, coroando-a, o escoltaremos até a fronteira. (República, III, 9)

Mal havia se assentado os humores da mais concorrida eleição presidencial da história brasileira e outro furor ocupou as manchetes dos jornais e as redes sociais: a Câmara dos deputados rejeitara o decreto 8.243. O decreto buscava criar a Política Nacional de Participação Nacional, com base no disposto no artigo art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição Federal, que autoriza a presidência da República a esta providência.

O fundamento do decreto é o de ampliar a participação direta da sociedade na gestão pública federal. Lembram seus defensores que a existência de conselhos populares é antiga e múltipla, estando presente nas áreas da saúde, educação, cultura e nos programas de distribuição de renda e combate à miséria, só para dar alguns exemplos. O decreto buscaria, apenas, organizar as instâncias de participação social já existentes no Governo Federal e estabelecer diretrizes para o seu funcionamento.

Com a derrubada do decreto, o PSOL protocolou projeto de lei 8.048, praticamente repetindo o texto do decreto. Visa com isso superar o mal estar causado pelo decreto – que ultrapassaria a função do Executivo e sobreporia a atividade típica do Congresso Nacional – e colocaria a questão em pauta, em regime de urgência, para uma deliberação dos parlamentares a respeito dessa regulamentação constitucional.

Tudo parece no lugar. Quem se oporia a ampliar a participação da sociedade na formulação, execução e fiscalização da gestão pública? Quem negaria o caráter republicano da medida, inclusiva e moderna, considerando até formas de organização social por meio das redes sociais?

Há, no entanto, um único verbo que causa um certo vazio de compreensão e, portanto, uma sensação de que algo ultrapassa a mera regulamentação da participação social na gestão pública federal.

É o que dispõe o artigo quinto do projeto de lei de autoria do PSOL: Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta DEVERÃO CONSIDERAR as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos nesta Lei, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas” ( destaque meu)

Aqui reside o busílis: qual a compreensão precisa da expressão “deverão considerar”?

Sabemos que a democracia constitucional é um regime político fundamentado em um modelo normativo cujos agentes trabalham para o cumprimento dos ditames republicanos estabelecidos por estas normas. Daí o corpo de funcionários da administração pública, direta e indireta, dever ser composto de técnicos capazes de exercer suas funções estabelecidas e determinadas pelo corpo de leis que têm como vértice hierárquico a Constituição. Fora disso, não há democracia mas, como já afirmava Aristóteles, demagogia, isto é, regime no qual soberana é a massa, não a lei.

Os defensores do decreto – e agora projeto de lei – partem do princípio correto para apoiar a proposta inadequada. Se a administração pública pode contar com a participação da sociedade civil, por meio de conselhos populares, é no sentido de estes colaborarem para que os agentes da administração pública federal possam realizar a efetivação dos direitos políticos, civis, sociais e econômicos previstos na Constituição. Logo, o papel possível e desejado das organizações não governamentais é o de acompanhar e sugerir posturas e práticas aos operadores da administração pública mas não a de obrigar essas práticas. Obrigar as entidades da administração pública federal direta e indireta na formulação, execução, monitoramento e avaliação de seus programas e políticas públicas significa deslocar o locus do poder que reside nas regras da Constituição Federal para as pessoas que compõem esses conselhos, comprometendo o caráter republicano e de representação e participação, previstos no artigo primeiro, parágrafo único da Constituição Federal.

O risco de acreditar que a participação desses outros representantes – pois que os conselhos também serão formados por representantes eleitos para mandatos de dois anos – é superior ao arcabouço republicano desenhado pela Constituição Federal e que pode submeter este àquele, é um pensamento que cria o tal “vazio de compreensão” e abre a possibilidade de se pensar essa estratégia como um processo de substituição de uma administração por outra. Embora o decreto, em nenhum momento, aventa essa possibilidade, o artigo quinto e sua proposta de inversão hierárquica permite pensar dessa maneira.

A forma de evitar essa possibilidade, desastrosa para o projeto de consolidação de uma democracia constitucional em nosso país, é alterar o artigo do projeto de lei, propondo substituir o DEVERÃO por PODERÃO ou outra formulação que NÃO OBRIGUE os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta às demandas desses conselhos, mas que estes INDIQUEM, COLABOREM e PROPONHAM, que é o que se espera e deseja ser papel da cidadania para melhorar as ações e resultados dos agentes do Estado Democrático de Direito.

Assim dirimem-se as dúvidas e penso que o apoio e adesão ao projeto de lei possa permitir sua aprovação no Congresso Nacional e o incremento desses mecanismos úteis e desejados de ampliação da participação popular nas instâncias de formulação e execução de políticas públicas no nosso país.

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* Daniel Medeiros é advogado (OAB/PR 20.445) e doutor em Educação Histórica.

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