Resolução 71/2005 do Senado Federal e Crédito–Prêmio de IPI
Clémerson Merlin Cléve*
Melina Breckenfeld Reck**
Alessandra Ferreira Martins***
2. A aprovação da Resolução nº 71/2005 no plenário foi precedida, conforme previsto no Regimento Interno do Senado Federal, da elaboração, na Comissão de Constituição e Justiça, do Parecer 2250/05.
3. Mercê das discussões judiciais que vêm se travando há anos sobre o tema do crédito-prêmio de IPI, a edição dessa Resolução pode ensejar a seguinte indagação: o Senado Federal extrapolou ou não a sua competência ao expedi-la e, assim, reconhecer a permanência do crédito-prêmio após junho de 1983?
Desde logo, saliente-se que, diante do disposto no art. 52, X, da Constituição, cumpre ao Senado não olvidar, em juízo de oportunidade e conveniência, o papel que tem a desempenhar na ordem jurídica, devendo se ater aos limites constitucionais que circunscrevem sua missão.
4. A Constituição brasileira, ao consagrar o princípio da separação de poderes, estabelece que eles não somente são independentes, uma vez que deliberam e agem, em esferas por ela determinadas, por autoridade própria, não se subordinando a nenhum outro, mas, também, são harmônicos, na medida em que se entendem, auxiliam-se, colaborando e se complementando ao visar a idêntico escopo: a satisfação dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e dos direitos fundamentais. Sendo, no entanto, que a colaboração não se dá mediante a redução ou supressão de competências, prerrogativas, tampouco por meio da inércia no seu exercício. Bem pelo contrário, atrela-se, a harmonia entre eles, à estrita, fiel e permanente observância da independência e da competência constitucionalmente conferida a cada um.
No caso em apreço, a Constituição brasileira, em seu art. 52, X, delineia, com clareza, o que compete ao Senado e o que incumbe ao STF. De fato, enquanto este é, na expressão utilizada por Sérgio Resende (Constituição, artigo 52, inciso X: reversibilidade? RIL, n. 158, abr./jun 2003), o senhor da constitucionalidade, aquele é o senhor da generalidade (eficácia erga omnes), não se reduzindo a mero autômato ou cumpridor de ordens de outro órgão.
Vale dizer, se não cabe ao Senado reapreciar a decisão do STF ou examinar o seu acerto técnico-jurídico, imiscuindo-se no mérito do aresto, dizendo ser constitucional o que este disse não ser, sob pena de vilipendiar a independência do Judiciário e a harmonia entre os poderes estatais, pode, todavia, ele indagar a propósito da conveniência e oportunidade de suspender a execução do ato normativo declarado inconstitucional e, assim, estender a todos (erga omnes) os efeitos da decisão do STF proferida no controle difuso-incidental.
5. Em relação a essa importante competência, embora a Constituição de 1988 não confira ao Senado, como fez a Constituição de 1934, a tarefa de coordenar os poderes federais entre si, pode-se dizer que ela consiste em uma das espécies da função moderadora.
Deveras, a par de incumbências decorrentes de sua condição de integrante do Congresso Nacional, ostenta competências individuadas que se justificam por conta de sua peculiar posição no sistema federativo e que, em geral, dizem respeito aos próprios entes federativos seja em razão do interesse destes no tocante à condução política e administrativa da União, seja em razão da prerrogativa destes de participar do processo de formação da vontade nacional.
Nesse sítio, insere-se a competência conferida ao Senado pelo artigo 52, X, da Constituição Federal, complementar ao trabalho desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal, ao desempenhar o relevante papel de conferir efeitos erga omnes à decisão de inconstitucionalidade proferida em sede de controle incidental.
6. A propósito, Josaphat Marinho leciona que "para ser procedimento compatível com a responsabilidade e a independência de um Poder, o ato de suspensão requer fundamentação segura”, vez que “vedar a apreciação das conseqüências políticas e sociais do julgado, não para afrontá-lo ou alterá-lo, mas para dizer da conveniência e da oportunidade de suspender a executoriedade da lei ou decreto, é, praticamente, constranger o Senado a simples cartório de registro de inconstitucionalidade". (“O art.64 da Constituição e o Papel do Senado”, RIL, ano I, v.2, 1964, p. 5-12.)
Importa, pois, que o órgão público não tergiverse quanto à inafastável necessidade de motivação de seus atos, principalmente aqueles que colidem com a presunção de constitucionalidade das leis, eis que tal motivação confere maior transparência ao processo democrático no contexto do qual se forjou, permitindo que seja, inclusive, aferido o respeito à independência e harmonia entre os poderes.
A competência do Senado disposta no art. 52, X da Constituição não foge à regra. Sua manifestação depende da prévia atuação do STF que deve necessariamente ser levada em consideração pelo Senado por ocasião de sua ação suspensiva.
7. Neste caso, pode o Senado, em atendimento à prudência, característica ínsita à sua criação, dissecar a fundamentação do STF, abordando, por exemplo, questões inerentes à pretensão acolhida pelo Supremo a qual dependeu da solução da questão prejudicial de inconstitucionalidade, sem inová-la, tampouco modificá-la, para aferir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade que está acolhendo.
8. Pois bem, a decisão de inconstitucionalidade em controle difuso-incidental, inserindo-se em um processo subjetivo e tratando-se de prejudicial ao mérito - isto é, a aferição da constitucionalidade de uma norma insere-se no trajeto lógico indispensável ao exercício da função jurisdicional, condicionando a própria composição da lide -, deve guardar congruência com o pedido deduzido pelo autor da ação e com as razões recursais que, por sua vez, devem contemplar demonstração não só da pertinência, mas também da utilidade prática do provimento buscado perante o Excelso Pretório. Mesmo porque, nessa sede, por via reflexa, a manifestação do Senado que suspende a execução de ato normativo declarado inconstitucional pelo STF deve suplantar conseqüências estritamente normativas e produzir efeitos práticos. De fato, caso a resolução da questão da inconstitucionalidade não se apresentasse como imprescindível, como pressuposto lógico, para o julgamento da lide pelo poder jurisdicional, não haveria razão, esteio, para ela ser suscitada pelas partes, terceiros interessados, tampouco ex officio pelo magistrado.
Como se sabe, o STF, ao apreciar o recurso, não só enfrenta a prejudicial de inconstitucionalidade, mas também julga o conflito de interesses, no sentido de prover ou improver, em última análise, os pedidos veiculados pelo autor à medida em que mantém ou reforma as decisões das instâncias recorridas, submetendo-se aos limites inerentes aos elementos constitutivos da lide (partes, causa de pedir – fundamentos de fato e de direito – e causa de pedir), tal como sucede em qualquer outro processo subjetivo.
9. Conforme anteriormente explanado, o STF, ao apreciar os mencionados recursos extraordinários, não apenas declarou a inconstitucionalidade das expressões contidas em tais Decretos-Leis, mas também, desprovendo os recursos da União Federal, julgou procedentes os pedidos formulados pelos autores da ação, isto é, reconheceu a existência do direito ao crédito-prêmio de IPI e a sua permanência no ordenamento jurídico após junho de 1983.
Portanto, a Resolução n. 71/05 cingiu-se, como deveria, aos termos do juízo de inconstitucionalidade exarado nos arestos do Excelso Pretório, suspendendo a execução tão somente dos vocábulos declarados inconstitucionais, de sorte a não restar suspenso o que remanesce dos Decretos-Leis, mormente o efeito que conduz ao reconhecimento da subsistência do crédito prêmio de IPI. Razão pela qual o Senado Federal não extrapolou sua competência, tampouco afrontou a harmonia e independência dos poderes consagradas pela Constituição Federal.
Com efeito, a Câmara Alta, em demonstração de prudência, fiel observância e respeito à decisão do Supremo Tribunal Federal, fez constar do texto da Resolução o seguinte “preservada a vigência do que remanesce do art.1º do Decreto-lei nº 491, de 5 de março de 1969”. Não há nada de excepcional nisso. Afinal, a expressão decorre, inexoravelmente, do exercício da competência estipulada no art. 52, X, da Carta Magna, vez que, por meio dela, a Resolução logrou atrelar-se, conforme se constata em suas considerações, aos termos do juízo de inconstitucionalidade presente nos arestos anteriormente citados, nos quais não se olvide, o STF restringiu-se a declarar a inconstitucionalidade de algumas expressões presentes nos Decretos-Leis, sem atingi-los na íntegra, preservando a parte remanescente desses textos normativos não eivada de inconstitucionalidade, em particular a que conduz, ainda que indiretamente, à preservação da vigência do crédito prêmio de IPI na medida em que apreciou a inconstitucionalidade como questão prejudicial (a fim de permitir que, no mérito, fossem mantidas as decisões das instâncias inferiores, reconhecendo a permanência do benefício no sistema jurídico brasileiro).
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*Advogado do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados, professor Doutor em Direito Constitucional, titular da UFPr e da UniBrasil, professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado Advogado parecerista
**Advogada do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados, mestre em Direito do Estado pela UFPr, professora de Direito Econômico da UniBrasil,
***Advogada e pesquisadora do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados e mestranda em Direito do Estado na UFPr.
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