Migalhas de Peso

A autonomia do Banco Central do Brasil à luz do Direito

A adoção de um BCB independente no sistema jurídico brasileiro é perfeitamente possível.

1/10/2014

O debate – sempre controverso e acalorado – acerca da autonomia do Banco Central do Brasil tem sido destaque na campanha presidencial de 2014, notadamente, da candidata “Marina Silva”, que consignou o tema em seu Programa Eleitoral1. Para a candidata, a autonomia garantirá o “controle da inflação”2.

O Prof. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, em obra de referência, anota que “há uma predominância de pensamento entre os economistas de diversas escolas em favor da autonomia dos bancos centrais, tendo em conta o risco político correspondente ao descontrole monetário, em associação com o financiamento de déficits públicos”3.

A despeito da predominância de tal pensamento e sem embargo das controvérsias que pairam sobre o assunto no campo da economia e da política, incluindo a própria necessidade ou não de um Banco Central, ao ordenamento jurídico cumpre, apenas, a regulação da definição política a ser tomada.

Nesse campo, portanto, ao Direito incumbe responder se é possível ou não a atribuição de autonomia ao BCB seguindo as prescrições do art. 192 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Se possível, como viabilizar a reforma da autarquia para atingir a propalada autonomia e em que nível4.

E, indo além: consideradas as funções atribuídas ao BCB, bem como ao Conselho Monetário Nacional, pela lei 4.565/64, a transformação do BCB em agência ou autarquia especial será suficiente para “garantir o controle da inflação”?

O BCB foi criado pela lei 4.595/64, através do art. 8º, por transformação da antiga SUMOC (Superintendência da Moeda e Crédito) em autarquia federal. É dotado de personalidade jurídica e de patrimônio próprio.

A concessão de maior grau de autonomia, como pretendem os candidatos citados acima, far-se-á por meio da transformação já experimentada pela CVM, isto é, de autarquia federal em autarquia especial (agência). Ou seja: dotada de personalidade jurídica, patrimônio próprio, autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, autonomia financeira e orçamentária5.

Diferentemente, contudo, do que se deu com a CVM, qualquer alteração na estrutura do BCB deve ser objeto de Lei Complementar, consoante dispunha categoricamente o inciso IV do art. 192 original da CF/88. Em que pese o dispositivo não ter sido conservado expressamente na redação resultante da EC 40/03, o STF já decidiu que, “tudo o que se integrar no Sistema Financeiro Nacional, depende de disciplina em Lei Complementar”6.

Na forma, portanto, do arcabouço constitucional e da antiga orientação do STF, é possível se chegar à independência do BCB. Ainda que a Lei possa ser de iniciativa do presidente da República, a disciplina caberá à lei complementar, logo e em último grau, ao Congresso Nacional. O nível de independência, da mesma maneira, deverá ser disciplinado pela referida lei.

E, sobre tal aspecto (extensão da autonomia), a reflexão final que se impõe, faz-se à luz das “funções clássicas” de um Banco Central. Com efeito, além de ser o emissor oficial de moeda, o BCB é o principal responsável pela política (monetária) definida pelo CMN7 e, assim, por “garantir o poder de compra da moeda nacional”; de “zelar pela adequada liquidez da economia” e por “estimular a formação de poupança”.

A sua competência é extensa (art. 10 da lei 4.595/64)8. Eduardo Fortuna a sistematiza em 06 (seis) características: (i) banco dos bancos; (ii) gestor do SFN; (iii) executor da política monetária; (iv) banco emissor; (v) banqueiro do governo e (vi) centralizador do fluxo cambial9. Neste cenário, o BCB foi (e está) dotado de funções clássicas pelo direito brasileiro.

E, entre tais funções clássicas, no que toca precisamente ao controle da estabilidade monetária (da circulação do crédito), em 1999, por meio do decreto Federal 3.08810 (institui o regime de metas de inflação no Brasil), recebeu a competência expressa para execução “das políticas monetárias necessárias para o cumprimento das metas fixadas” pelo CMN.

Por certo, se cumpre ao BCB a execução das medidas necessárias ao cumprimento das metas de inflação fixadas, o direcionamento (político ou técnico) daquela Autarquia Federal, inexoravelmente, influenciará sua eficiência. Qualificá-lo como agência ou autarquia especial, indiscutivelmente lhe concederá maiores possibilidades de atuação técnica, livre de ingerências políticas indesejadas.

Enfim, a adoção de um BCB independente no sistema jurídico brasileiro é perfeitamente possível. Se a equação banco central mais independente significa redução de índices inflacionários é verdadeira11, a promessa de campanha é positiva, cabendo, contudo, a prerrogativa ao Congresso Nacional; que, inclusive, já tem propostas em tramitação. O debate, porém, deve ir além da inflação.

É interessante, com efeito, que a mudança de status do BCB resulte da convicção de que sua maior independência não se limitará ao controle mais eficaz da inflação. Deve, sem dúvidas, proporcionar avanços, também, no exercício de suas demais funções, notadamente daquelas clássicas, entre as quais a prevenção de crises sistêmicas e a consequente estabilidade da economia. Essa análise, entretanto, não cabe ao Direito.

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1 A propósito, confira-se https://marinasilva.org.br/programa/#!/. O primeiro tema, entre os mais acessados, do menu do Programa disponibilizado pela candidata é a autonomia do Banco Central do Brasil (https://marinasilva.org.br/programa/#pagina-38, acesso em 22 Set. 2014). Segundo notícias, o tema também é tratado abertamente pelo candidato Aécio Neves, que apoia a independência como forma de controlar a inflação (fonte: https://noticias.r7.com/eleicoes-2014/autonomia-do-banco-central-divide-especialistas-e-candidatos-a-presidencia-da-republica-21092014, acesso em 22 Set. 2014).

2 “Para reduzir e manter baixa a inflação. [...] Assegurar a independência do Banco Central o mais rapidamente possível, de forma institucional, para que ele possa praticar a política monetária necessária ao controle da inflação.” (Fonte: https://marinasilva.org.br/programa/#pagina-38, acesso em 22 Set. 2014).

3 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc Banco Centrais no Direito Comparado. O Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 85.

4 “Para os monetaristas, um banco central seria aquele capaz de resistir às pressões polícitas, por eles consideradas um fator tendente a distorcer a economia. Já quanto aos Keynesianos, essa autonomia corresponderia ao poder concedido aos bancos centrais para efeito da formulação da política monetária, segundo a sua avaliação em termos de fins e meios, tendo em vista a política econômica governamental e a situação sócio-econômico do país” (VERÇOSA; 2005: 85-6).

5 São estas as características apontadas por Maria Eduarda Fleck da Rosa, ao tratar da CVM, no contexto de sua transformação em autarquia especial pela Lei n. 10.411/02 (Regulação do mercado de capitais. In: PALMA, Juliana Bonacorsi de; PRADO, Viviane Muller. Estudos avançados de mercado de capitais. Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 15).

6 ADI004 (Min. Néri da Silveira, ADI 1.376-9). Registre-se, em reforço, entendimento neste sentido (isto é, necessidade de Lei Complementar por meio do Congresso Nacional) recentemente publicado pelo Prof. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa neste mesmo periódico (Migalhas n. 3.458, Banco Central: a independência é vida e não morte).

7 Disponível em https://www.bcb.gov.br/Pre/composicao/bacen.asp, acesso em 06 Mar. 2012.

8 FORTUNA, Eduard. Mercado Financeiro: produtos e serviços. 18. ed. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2011, p. 21.

9 Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (Bancos Centrais no Direito Comparado..., 2005: 45) destacou cinco grandes “funções clássicas” dos Bancos Centrais: controlar o crédito em todas as suas modalidades. [...]; ser o único banqueiro do Estado, [...]; estar presentes na elaboração e aplicação dos planos econômicos de desenvolvimento [...]; participar do controle do mercado de valores mobiliários. [...] e ter acesso a todas as informações econômicas produzidas pelos demais órgãos do governo. Em consequência, espera-se dos Bancos Centrais que (i) emitam moeda; (ii) concedam autorização de funcionamento, fiscalizem e supervisionem o mercado; (iii) realizem operações de crédito com instituições financeiras (último emprestador); (iv) câmbio e ouro (ativo financeiro); e (v) relacionamento com o Tesouro.

10 Art. 1o Fica estabelecida, como diretriz para fixação do regime de política monetária, a sistemática de "metas para a inflação".
§1º [...].
§ 2o As metas e os respectivos intervalos de tolerância serão fixados pelo Conselho Monetário Nacional - CMN, mediante proposta do Ministro de Estado da Fazenda, [...].

11 “Os economistas Barry Eichengreen e Nergiz Dincer avaliaram mais de 100 bancos centrais em todo o mundo, entre 1998 e 2010, e concluíram que há uma tendência inequívoca de aumento da transparência e da independência, associada à redução dos índices de inflação.” (SAKATE, Marcelo. O BC atropelado pelo terrorismo. In: Veja. São Paulo: Abril, 24 de setembro de 2014, p. 55). Com menos ênfase, porém, em mesmo sentido, Haroldo Verçosa aponta conclusão, geral, do pesquisador Alex Cukierman de que “quanto maior o grau de autonomia, menor a inflação.” (Bancos Centrais no Direito Comparado..., 2005: 92).
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*Felipe Fernandes Ribeiro Maia é professor da Pós-Graduação Lato Senso do IBMEC/MG. Doutor e mestre em Direito Empresarial. Especialista em Direito de Empresa e da Economia. Advogado – sócio de Brito & Maia Advogados em Belo Horizonte/MG.

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