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Caso do goleiro Aranha: racismo ou injúria racial?

Insta observar uma fundamental diferença entre dois institutos que são relacionados ao caso, a fim de que não se cometa uma confusão: o crime de injúria racial e o de racismo.

7/9/2014

Elementos de cunho preconceituoso, seja em relação à etnia, religião, posição político-filosófica, sexo, cor, dentre outros, podem ser encontrados na sociedade desde os longínquos tempos do Brasil Imperial. Ainda que tais elementos ostentem características nitidamente primitivas, dotadas de cunho subdesenvolvido, podem ser verificados em pleno século XXI, ano de 2014. Ora, se não fossem os fatos preconceituosos destacados dia após dia em nossa imprensa, poder-se-ia afirmar que o preconceito (enraizado ou não) se traduz em uma figura totalmente ultrapassada e rejeitada pelas pessoas. Porém, o que se afirma é justamente o contrário.

Sendo assim, diante de inúmeros casos absolutamente preconceituosos verificados, destaca-se o mais recente de todos, ao menos em destaque na imprensa. O goleiro do time de futebol profissional do Santos Futebol Clube, de alcunha "Aranha", foi xingado de "macaco" por torcedores adversários (Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense), que também imitavam o som de um macaco nas arquibancadas1 (câmeras de televisão flagraram nitidamente uma torcedora do Grêmio aos berros: "macaco, macaco, macaco", direcionados ao referido goleiro; além de torcedores uniformizados que pulavam, gesticulando e imitando o som do mesmo animal).

Deste modo, ante a evidente repercussão de inúmeras consequências desse fato ora relatado, destaca-se a incidência do Direito Penal ao caso, tendo em vista o objetivo da presente abordagem.

Para tanto, insta observar uma fundamental diferença entre dois institutos que são relacionados ao caso, a fim de que não se cometa uma comum, porém inconcebível, confusão: o crime de injúria racial e o de racismo.

Prima facie, tem- se que a primeira regulamentação frente ao preconceito somente se deu no dia 3 de julho de 1951 (desde o Império não havia nenhuma lei que abordasse o assunto), data em que foi promulgada a lei 1.390, proposta por Afonso Arinos de Melo Franco e que, por tal razão, ficou conhecida como Lei Afonso Arinos2.

Referido diploma legal teve grande importância histórica, vez que propunha coibir a discriminação racial no país. Contudo, as condutas tipificadas na Lei Arinos configuravam-se em contravenções penais, cujas sanções eram exageradamente leves: a pena máxima cominada era de três meses de detenção.

Desta feita, percebe-se que, apesar de louvável tentativa, a Lei Arinos não conseguiu reprimir de forma eficiente a grave conduta preconceituosa que existia na sociedade.

Outrossim, somente com a Constituição Federal de 1988 é que o combate mais eficaz começou a se desenhar no país. Com efeito, a CF/88, mediante mandado implícito de criminalização, dispôs em seu artigo 5º, inciso XLII, que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

Logo, a fim de atender o implícito comando constitucional, nosso legislador pátrio editou a lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Posteriormente, foi editada a lei 9.459, de 13 de maio de 1997, que alterou os artigos 1º e 20 da primeira lei de 1989 e dispôs que serão punidos, na forma desta lei os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Portanto, a doutrina, com base nesse último diploma, define o crime de racismo como sendo aquele em que o agente impede o exercício de qualquer direito líquido e certo, em razão de um preconceito (discriminação) baseado em etnia, cor, religião ou procedência nacional (muitos estudiosos sustentam que o termo "raça" é inapropriado, já que todos nós somos da raça humana, havendo apenas a "diferenciação" pela etnia).

Sendo assim, não há que se confundir o acima exposto com o previsto no artigo 140, §3º, de nosso Código Penal:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa.

Verifica-se, neste ponto, que o Código Penal aborda uma situação bastante diferente dos casos de racismo e, por isso, não se pode com eles confundir. O CP trata do crime de injúria racial (também chamado de injúria qualificada), presente na conduta de quem se utiliza da etnia, cor, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência para injuriar alguém, ou seja, ofender a honra subjetiva da vítima, o conceito que ela guarda de si mesma. Não há discriminação.

Assim, vislumbram-se duas situações que denotam, com ampla clareza, a diferença entre as duas condutas: imagine-se que alguém, chefe de uma torcida organizada de futebol, impeça a entrada de um torcedor - que pagou ingresso para o jogo - por ele ser negro, branco, judeu, japonês, etc. Aqui, tem-se evidente impedimento do exercício de um direito líquido e certo, em razão de atitude discriminatória e preconceituosa. Ou seja, o agente atua com o nítido fim de segregação, valendo-se de elementos preconceituosos que atingem todo um grupo de pessoas (seja pela cor, etnia, origem). Trata-se de crime imprescritível e inafiançável intentado por ação penal pública incondicionada.

De outro modo, imagine-se que esse mesmo chefe de torcida organizada, a fim de provocar o goleiro adversário, começa a ofendê-lo com os gritos de "macaco", "preto", etc. Agora, o agente não deseja a segregação, a discriminação, mas tão somente atingir a honra subjetiva da vítima. Pratica, portanto, crime de injúria qualificada, cujo motivo também se configura totalmente ignóbil. É crime afiançável e a persecução judicial se desenvolve por meio da ação penal pública condicionada à representação.

Assim, conclui-se que no caso do goleiro "Aranha", restou tipificada, em tese, a conduta de injúria qualificada, pelos motivos já expostos: os supostos autores do crime desejavam ofender a honra subjetiva da vítima. Apenas haveria que se reconhecer eventual crime de racismo caso alguém impedisse a entrada do jogador no estádio, ou até mesmo sua contratação, em razão da sua cor, etnia, religião.

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1ESPN

2O Globo

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de Justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.



* Antonelli Antonio Moreira Secanho, advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação lato sensu em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.

 

 

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