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O projeto de novo CPC e a ação probatória não cautelar – Variações a respeito do tema

Projeto propõe a existência de ações de produção antecipada de provas sem o requisito da urgência.

5/9/2014

Sumário. Introdução: a cultura da litigiosidade. Um instantâneo da questão nos sistemas do civil law e do common law. O pretrial do direito norte-americano. Ações de produção de prova previstas no direito processual civil brasileiro atual, prévio ao Novo CPC: vocação exclusivamente cautelar. A ação de produção antecipada de provas. A ação de justificação. O art. 388 do Projeto de CPC: ação probatória “consultiva”, desprovida de finalidade cautelar. Importante preventor de ligítios. Algumas notas procedimentais

Resumo: O projeto de Novo CPC propõe a existência de ações de produção antecipada de provas sem o requisito da urgência, o que conduz à possibilidade de prévia investigação de fatos para fins de acertamento de direitos sem a necessidade de ajuizamento da chamada ação principal.

Resumen: El proyecto del nuevo CPC brasileño propone la existencia de acciones para producción autónoma de pruebas sin la exigencia de urgencia, lo que conduce a la posibilidad de previo conocimiento de hechos sin necesidad de acción dicha principal

Palavras-chave: ações probatórias – direito autônomo à prova - redução de litigiosidade

Palabras-clave: acciones para producción de pruebas sin la exigencia de urgencia – derecho autónomo a la prueba – reducción de litigios

Introdução: a cultura da litigiosidade1

Há décadas os debates jurídico-processuais são guiados pela cantada e decantada crise de efetividade experimentada pelo Poder Judiciário. Pode-se afirmar, sem receios, que a atribuição de maior rendimento à atividade jurisdicional tem sido a força motriz de majoritaríssima parte das alterações promovidas na legislação processual civil brasileira ao longo dos últimos vinte anos.

São evidentemente positivas as mudanças legislativas processuais civis empreendidas até o presente. De se citar, exempli gratia, a execução de títulos judiciais, hoje denominada “cumprimento de sentença”, consistente em fase avançada do processo de conhecimento, extinguindo-se a vetusta necessidade de aforamento de ação de execução de título judicial autônoma, com todas as vicissitudes inerentes à propositura de uma ação judicial (necessidade de nova citação, etc.).

Não obstante, se diversos avanços rumo a uma atividade jurisdicional mais eficaz e cronologicamente oportuna ocorreram em virtude das mudanças legislativas processuais civis, pouco ou nenhum avanço significativo deu-se relativamente à prevenção de litígios forenses ou à solução de controvérsias previamente ao contencioso processual civil.

Em outros termos, ainda não dispomos de um sistema suficientemente desenvolvido de prevenção de litígios forenses. Apesar de experimentarmos, desde o advento da Lei 9.307/96, interessante ampliação da utilização da arbitragem como mecanismo extrajudicial de solução de conflitos, é certo que tal figura, em termos pragmáticos, tem seu manejo ainda circunscrito às controvérsias verificadas entre pessoas jurídicas de médio e de grande porte e potencial econômico, mormente por conta dos custos usualmente elevados que são inerentes a esta espécie de solução de conflitos.

O cidadão comum, a pessoa física que porventura experimente problemas de cunho jurídico, não tem proximidade ou familiaridade com a figura da arbitragem, e cultural e praticamente está habituada, ainda, à condução de seus problemas jurídicos ao foro judicial, em caráter litigioso.

No quotidiano, remanesce, por enquanto, a cultura da litigiosidade forense como modo de resolução de conflitos jurídicos.

E aqui bate o ponto: (i) considerando-se que, em nosso pensar, prevalece a cultura de recurso ao Poder Judiciário como forma de buscar-se a resolução de conflitos, e (ii) considerando-se também que, no âmbito do Poder Judiciário, o cidadão vê à sua disposição apenas medidas, digamos, de ataque (leia-se, propositura de ações de acertamento de direitos, sendo ainda rarefeitas a mediação e a conciliação judiciais), evidencia-se a circunstância de que nosso sistema processual civil acaba por, uma vez acionado, potencializar o conflito, dado não contar com procedimentos prévios (e não contenciosos) de aferição da viabilidade da ação dita principal (de acertamento de direitos) que se almeja propor futuramente.

A crua realidade é uma só: o cidadão comum, se dispõe de mínimos recursos para buscar soluções extrajudiciais quando protagoniza um conflito jurídico, quando se vê obrigado a buscar o Poder Judiciário é posto em um corredor estreito e sem bifurcações no qual tem à sua disposição apenas a lógica do conflito processual.2

Malgrado espasmos localizados (semanas conciliatórias aqui e acolá, expedientes de conciliação prévia estabelecidos por alguns Tribunais e esforços individuais de juízes abnegados que realmente preconizam a conciliação), a mecânica forense é drasticamente maniqueísta: ou bem o cidadão resolve suas querelas fora da Justiça e sem intervenção do Estado, ou será obrigado a conduzir seu conflito ao Judiciário, sem que disponha, ao menos em termos de legislação processual, de expedientes conciliatórios frutíferos ou, principalmente, de expedientes probatórios prévios que possam roborar, ou infirmar, sua pretensão jurídica antes mesmo de ser necessário o aforamento de uma ação judicial dita principal.

No Projeto de CPC atualmente em discussão,3 notamos agradabilíssima proposta de evolução: propõe-se, no art. 388 do CPC projetado,4 a figura da ação de produção antecipada de provas com finalidade não acautelatória, porém unicamente consultiva, vale dizer, de aferição de viabilidade do pleito principal.

Está-se diante, a vingar esta proposta legislativa, de poderoso mecanismo de contenção da litigiosidade.

O jurisdicionado poderá, antes de optar pela via da ação judicial de acertamento de direitos, aferir, de maneira não contenciosa, se há elementos que confirmem a existência do fato que lhe seria gerador de direitos.

Se novidade no direito brasileiro, esta possibilidade de produção probatória prévia e sem caráter cautelar perfaz elemento tradicional do processo do common law. De modo a melhor abordar o tema, cremos conveniente seja apresentado conciso cenário acerca da produção probatória autônoma e não-cautelar nos regimes processuais civis do common law e do civil law.

Um instantâneo da questão nos sistemas do civil law e do common law

Nos ordenamentos dos países de tradição jurídica erigida sob o sistema do civil law, historicamente não se identifica a existência de procedimentos estritamente probatórios, vale dizer, exclusivamente voltados à produção, sem que exista necessidade acautelatória ou o requisito da urgência, de acervo probatório que sirva à apuração da verdade fática para fins de definição acerca da propositura, ou não, da ação de acertamento de direitos.

Nos regimes processuais civis português5 e espanhol6, por exemplo, tradicionalmente consta apenas a figura das ações tendentes à asseguração da prova (de caráter conservativo, portanto), que em nada destoam do sistema brasileiro das ações cautelares destinadas à conservação da prova que se veja sob ameaça se sua produção for relegada para momento futuro.

No sistema judiciário dos países do civil law não existem, em regra, dispositivos exclusivamente dedicados à apuração prévia e não cautelar da realidade fática. Nos ordenamentos processuais civis de origem romano-germânica, a revelação da realidade fática normalmente apenas vem à tona no âmbito da ação de acertamento de direitos, quando já formalizado e, sobretudo, consolidado o litígio.

Uma mudança de horizontes, ainda que tímida, parece estar sucedendo.

É de se notar que, na esteira da frisante aproximação dos sistemas do common law e do civil law,7 ordenamentos jurídicos fortemente expoentes da tradição jurídica romano-germânica, nos quais a produção autônoma de provas sem caráter conservativo não era corrente, vêm absorvendo a possibilidade da coleta probatória autônoma (sem natureza cautelar) típica das ordenanças processuais de origem anglo-saxônica.

Exemplo desta inclinação conceitual, além do próprio artigo 388 do Projeto de CPC brasileiro, é o art. 696-bis do CPC italiano.

Permite o art. 696-bis do Codice di Procedura Civile8 a chamada “consulta técnica preventiva” (consulenza tecnica preventiva), que tem como finalidade a apuração de crédito obrigacional ou derivado de fato ilícito mediante produção de prova desprovida de natureza cautelar, vale dizer, sem que se exija, para a instrução prévia, a presença dos requisitos do periculum in mora e do fumus boni iuris.9

Se as partes, à vista da prova produzida, se conciliam, é formado um título executivo; se as partes não se compõem, caberá ao interessado (leia-se, àquele a quem se revelou favorável a prova) partir para o juízo de mérito.

Ainda que não exista exata similitude entre o art. 696-bis do CPC italiano e o art. 388 do Projeto de CPC (no primeiro, a produção prévia da prova pode fazer-se acompanhar de acertamento de direitos e tem finalidade conciliatória, ao passo que no segundo está-se diante apenas de colheita probatória neutra, desprovida de inclinação meritória relativamente a qualquer das partes), parece-nos evidente a mens legis de ambos os dispositivos legais: permitir a formação de provas não no âmbito de ações declaratórias de direitos, porém em sede de procedimentos judiciais probatórios, consultivos.

Já nos países cujo sistema jurídico é o do commom law, identificamos interessantes mecanismos de apreensão da realidade fática previamente ao aforamento de demandas ditas “principais”, de acertamento de direitos. Com efeito, é comum em tais sistemas jurídicos a presença de duas fases bastante distintas da tramitação de uma controvérsia jurídica, uma destinada à prática de atos instrutórios, outra destinada ao acertamento de direitos.

É o que se expõe no tópico seguinte.

O pretrial do direito norte-americano

Desprovidos da pretensão de expor um cenário abrangente do sistema processual civil dos países do common law,10 optamos por apresentar informações acerca do direito processual civil federal norte-americano, que pode ser tomado como interessante expoente do direito processual civil de raiz anglo-saxônica.

O direito processual civil dos Estados Unidos vê-se normatizado nas Federal Rules of Civil Procedure, que perfazem o conjunto legislativo processual civil de abrangência nacional naquele país.

No âmbito das Federal Rules of Civil Procedure, há uma primeira fase de tramitação do tema jurídico que se desenvolve sem que se colime uma decisão judicial de fundo, de mérito. É o chamado pretrial, que poderíamos traduzir livremente como pré-contencioso, destinado à apuração de fatos e questões jurídicas que poderão ser objeto de discussão quando do julgamento da causa (o chamado trial).

Por ocasião do pretrial, as partes têm por escopo, a apuração do cenário fático-jurídico que poderá servir de arrimo se e quando foi instaurado o chamado trial, vale dizer, a fase de julgamento propriamente dita.

No âmbito do pretrial, coletam-se elementos que sirvam de convicção para fins (i) de definição acerca da viabilidade da demanda e para fins de (ii) julgamento propriamente dito desta. É o chamado pretrial discovery, consistente em procedimento de prospecção de evidências probatórias preparatórias (caso se decida pela condução da causa ao julgamento pelo Judiciário, o que se dará no trial) ou da instauração de uma pretensão de mérito inibitórias (se não se evidenciar o fato inicialmente indicado como gerador de direitos).

Se nesta fase nominada pretrial discovery forem colhidos subsídios indicativos da viabilidade de uma postulação principal (esta entendida como a nossa postulação de mérito), segue-se o trial, no âmbito do qual se empreende o julgamento da controvérsia.

Nota-se, dessarte, no desenvolvimento das controvérsias jurídicas do sistema do common law, um potente mecanismo (o pretrial discovery) de contenção de litigiosidade: se, nesta fase pré-contenciosa de colheita de provas, evidências ou indícios qualquer das partes apurar que seu direito não é viável, ou ao menos não tão viável quanto parecia inicialmente, simplesmente não se persiste no processamento da matéria, evitando-se que se atinja a fase de julgamento (o trial).11

Oferece-se, por conta deste mecanismo de apuração prévia da verdade dos fatos e sem caráter contencioso, a possibilidade de as partes experimentarem mudança ideológica, ou seja, o “eu tenho razão e posso vencer" pode converter-se em “não disponho do direito tal qual pensava”. É estreme de dúvidas que se está diante de dispositivo redutor de litigiosidade.

Este interessante cenário verificado nos países do common law é, como dito, bastante diverso do tradicional arranjo da produção probatória nos ordenamentos processuais civis de origem romano-germânica, nos quais as atividades instrutórias ficam de ordinário concentradas em fase própria da ação de acertamento de direitos (a fase instrutória).

No direito processual civil brasileiro atual o panorama verificado não é diferente. De lege lata, ainda estamos adstritos à produção prévia de provas em caráter quase que exclusivamente cautelar.

Cumpre-nos, previamente à análise um tanto mais aprofundada do Projeto de CPC, tecer breves apontamentos acerca do cenário legislativo atualmente existente no Brasil em termos de instrução probatória prévia à propositura da chamada ação principal de acertamento de direitos.

Em lineamentos gerais, são duas as ações previstas em nosso CPC que permitem atividades probatórias anteriores à ação principal. É o que se passa a expor nos tópicos seguintes.

Ações de produção de prova previstas no direito processual civil brasileiro atual, prévio ao Novo CPC: vocação exclusivamente cautelar

No ordenamento processual civil vigente, em que pese não disponhamos de ações destinadas exclusivamente à colheita probatória para fins de definição da propositura de ações cognitivas de acertamento de direitos, há que se registrar a presença, no âmbito do livro III do CPC (relacionado ao processo cautelar), de duas ações vocacionadas à produção de provas com fito acautelatório.

A ação de produção antecipada de provas

Em primeiro lugar, é necessário mencionarmos a figura da ação de produção antecipada de provas (CPC, arts. 846 e ss.).

Trata-se de ação judicial que tem por finalidade a perpetuação de determinado cenário fático por intermédio da produção probatória em caráter prévio à ação cognitiva, desde que a colheita de determinadas provas se apresente sob risco de perecimento.

Em outros termos, existindo risco concreto de impossibilidade de produção da prova em momento futuro (id est, por ocasião da fase instrutória da ação cognitiva), permite-se a antecipação probatória oral (interrogatório das partes, inquirição de testemunhas) e pericial, sem que exista qualquer pronunciamento jurisdicional acerca do conteúdo da prova obtida (se, por exemplo, efetivamente foi demonstrado o fato que se pretendia provar ou se assiste razão a qualquer das partes).

Esta antecipação probatória, que tem evidente caráter acautelatório, destina-se não diretamente à conservação do bem da vida postulado pela parte à luz do direito material, porém à conservação de determinada faculdade probatória que servirá de conduto à obtenção deste bem da vida. É notório o acautelamento processual que se estabelece (acautela-se o direito à prova), ainda que mediatamente tal fator possa servir à conservação do direito material a ser futuramente postulado.

A ação de justificação

Além da predita ação de produção antecipada de provas, prevê a codificação processual civil vigente a ação de justificação, também inserta no livro III do CPC, arts. 861 e ss.

Ainda que topologicamente tratada no âmbito do processo cautelar, a ação de justificação ostenta condição de jurisdição voluntária, dado não pressupor cenário de risco probatório para que seja aforada. No dizer de Paulo Afonso Garrido de Paula, trata-se a ação de justificação de procedimento de jurisdição voluntária apenas formalmente disciplinado no “título do processo cautelar” de nosso CPC, “destinado a constituir princípio de prova quanto à existência e veracidade de um fato ou de uma relação jurídica”, exigindo, para sua propositura, somente “o interesse do requerente em constituir a prova, ainda que refutável, sobre objeto juridicamente relevante”.12

Lamentavelmente relegada a um papel menor (até mesmo minoritaríssimo) na práxis forense, a ação de justificação perfaz antiga figura jurídica. De conformidade com escorço histórico desenvolvido por Ovídio Baptista da Silva, “o processo destinado a justificar a existência de fato ou relação jurídica existe no direito brasileiro desde as Ordenações Afonsinas”, passando pela Consolidação Ribas (século XIX) e contando com previsão legal também no CPC de 1939.13

Interessante notar que, no CPC de 1939, a ação de justificação contava com disciplina própria, estremada das ações cautelares, vale dizer, não s exigia, para o seu manejo, o pressuposto do periculum in mora relativamente à produção de determinada prova.14

Obliquamente, ambas as ações comportam um improvisado uso consultivo, vale dizer, podem indiretamente servir à aferição, pela parte, se realmente deu-se o fato gerador de seu direito, ou se ao menos este reúne alguma robustez em termos de postulação em sede de ação cognitiva.

Ipso facto, na medida em que permitem a produção premonitória de determinada prova, servem (de maneira improvisada e acidental, é verdade) à formação de um juízo de deliberação prévio à propositura da ação principal: caso a prova produzida não evidencie o fato do qual o interessado pretende extrair conseqüências favoráveis a si, obviamente a ação principal não será aforada.

A ação de justificação, que não pressupõe risco de perecimento da prova (o próprio texto do art. 861 não cuida de periculosidade relativamente à prova objeto da justificação) e que se encontra na parte do CPC dedicada ao processo cautelar de forma improvisada, poderia servir de potente mecanismo de produção probatória prévia, porém padece de um problema que reduz sua utilidade: não se destina à produção de prova pericial (o art. 863 do CPC limita a justificação a depoimentos e documentos).

O que nos preocupa, portanto, é a circunstância de não contarmos, no sistema legislativo atual, com um mecanismo declaradamente vocacionado à produção de elementos de convicção que sirvam à contenção da litigiosidade.

A convolar-se em realidade o Projeto de CPC atualmente em discussão, a preocupação acima externada não terá lugar.

Algumas notas acerca do art. 388 do CPC projetado são desenvolvidas a seguir.

O art. 388 do Projeto de CPC: ação probatória “consultiva”, desprovida de finalidade cautelar. Importante preventor de litígios.

Sobressai no projeto de CPC atualmente em trâmite no Congresso Nacional a clara intenção de atribuir-se maior grau de rendimento à atividade jurisdicional, de modo que o cenário de conflito intersubjetivo que conduziu as partes ao foro tenha seu deslinde no menor intervalo possível.

Variegadas são, neste sentir, as sugestões de modificação legislativa implementadas no Projeto de CPC: é de se citar, por exemplo, o incidente de resolução de demandas repetitivas, e também é merecedora de menção a proposta de retirada do efeito suspensivo automático do recurso de apelação, permitindo-se a execução provisória das sentenças como regra e não como algo excepcional, tal qual ocorre na vigência do CPC atual.

O matiz preponderante com que se pretende tingir o processo civil brasileiro em reforma é o da aproximação do jurisdicionado relativamente à situação jurídica por ele pretendida, enfatizando-se a abreviação do chamado ”tempo processual”.

Consoante registros expendidos em partes introdutórias do presente trabalho, não quedam dúvidas de que realmente a abreviação do tempo do processo perfaz um dos mais relevantes núcleos de concentração das reformas do direito processual civil nacional.

Não obstante, se nos afigura claríssima a ideia de que não é apenas por via da abreviação do tempo do processo que se pode alcançar maior efetividade de direitos; com efeito, parece-nos claro que a prevenção da atividade jurisdicional contenciosa é a palavra de ordem. Se a redução do tempo processual é fator de majoração da efetividade da atividade jurisdicional, inibir o próprio processo é elemento de multiplicação da eficácia da Justiça.

E a prevenção de litígios obedece a uma regra primária: quanto maior a maturação do direito de uma das partes, menor a disposição da contraparte de submeter-se a uma disputa forense que de antemão afigura-se vocacionada ao insucesso.

Neste sentir, nota-se no Projeto de CPC interessantíssima proposta legislativa: a atribuição, à ação antecipada de provas, de finalidade exclusivamente formadora de prova para fins (i) ou de coibição de ação de acertamento de direitos futura, (ii) ou de solidificação da decisão de aforamento de determinada ação.

Referimo-nos ao atual artigo 388 do Projeto de CPC atualmente em tramitação, cujo texto é o seguinte: “A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que: (...) III – o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação.”

Esta finalidade, repita-se, premonitória atribuída à ação antecipada de provas no âmbito do Projeto de CPC, se outrora apenas manifestava-se mediante improvisações no dia-a-dia forense, caso aprovado texto da codificação projetada, poderá acarretar, em nosso pensar, radical redução de litigiosidade.

A colheita probatória prévia com finalidade exclusivamente aclaratória, se aprovado o Projeto de CPC, permitirá àquele que tenciona ajuizar uma ação cognitiva um momento anterior de reflexão e de amadurecimento dos fatos supostamente geradores de seu pretenso direito sem que exista concretamente a formulação de uma pretensão em desfavor de outrem, com toda a carga negativa inerente a tal fenômeno.

No sistema atualmente vigente, em que não existe oportunidade de formação probatória judicial prévia à propositura de determinada ação de acertamento de direitos, o fenômeno fático-jurídico em que arrimada a pretensão do demandante revela-se judicialmente no curso da ação, mais propriamente na penúltima fase do procedimento de primeiro grau de jurisdição (a fase instrutória).

O cenário atualmente verificado é pernicioso: à parte que esteja diante de situação de hipotético problema jurídico não cabe outra alternativa senão a propositura da ação principal, para apenas na fase instrutória desta apurar se realmente tem razão. Não se faculta ao jurisdicionado brasileiro, hoje, qualquer mecanismo de prospecção prévia de informações de modo que se consolide a grave decisão de propor a ação principal de acertamento de direitos.

O art. 388 do CPC projetado, caso vingue, decerto servirá de profilaxia do modelo vigente de fomento à litigiosidade.

Convém seja registradas algumas informações sobre o procedimento da ação de produção de provas prevista no inciso III do art. 388 do CPC projetado.

Algumas notas procedimentais

Em termos práticos, parece-nos evidente que a propositura desta “ação probatória” prevista no art. 388 do Projeto de CPC exigirá a constância, em sede de petição inicial, da exposição pormenorizada da situação fática que se quer provar em caráter prévio à propositura da chamada ação principal.

Ao autor, de modo a expor adequadamente a causa de pedir, incumbirá a exposição do fato a ser provado e de sua intenção de, por intermédio da ação probatória, construir sua decisão acerca da propositura da ação principal (nos termos do inciso III do art. 388 do Projeto, “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação”).

Pensamos que o manejo da ação probatória sem caráter acautelatório, de modo que sejam evitados acionamentos despiciendos da estrutura jurisdicional, deverá exigir a demonstração adequada das razões que levaram o requerente ao aforamento da ação; em outras palavras, ainda que a ação probatória autônoma não ostente caráter cautelar, parece-nos evidente que deverão ser expostos com razoável substância os contornos da hipotética controvérsia que poderá arrimar uma futura ação declaratória de direitos.

A contrario sensu, ao permitir-se o manejo da ação probatória autônoma (id est, não cautelar) sem maiores rigores quanto à sua admissão (leia-se, sem que se exponha com alguma razoabilidade a lide hipotética), estar-se-ia fomentando a movimentação do aparato jurisdicional estatal de forma despicienda e flagrantemente contrária à própria ratio essendi do instituto da produção autônoma da prova (conter a litigiosidade desnecessária).

A ação probatória não ostenta caráter contencioso; trata-se, como pensamos, de veículo de consulta, de exame prévio acerca da viabilidade de determinada ação cognitiva principal. Não se identifica nesta espécie de ação judicial, portanto, caráter contencioso, nos exatos moldes das ações probatórias conservativas tradicionais.

O caráter não-contencioso da ação de produção prévia de prova elide, por óbvio, a aplicação do princípio da sucumbência. Há que se ressalvar, evidentemente, que, uma vez demonstrado o manuseio da ação probatória de má-fé, mediante cometimento de abuso processual, poderão ser aplicadas ao autor as penas correspondentes (litigância de má-fé).

De remate, e à guisa de sugestão de acréscimo ao Projeto de CPC, pensamos que, ao cabo da produção da prova, poderia constar a obrigatoriedade de designação de audiência de conciliação para que, à luz dos elementos de convicção colhidos, possam as partes ser concitadas à solução conciliada da causa. A realização de dita audiência em imediata sequência da prova produzida seguramente poderá potencializar a intenção legislativa de prevenir o vertiginoso aumento da litigiosidade.

______________________

1 O presente trabalho foi redigido considerando-se o texto do projeto de Novo CPC em sua conformação de março de 2014.

2 Neste sentido, é de se conferir obra pioneira e obrigatória acerca do assunto, de autoria de Flávio Luiz Yarshell, para quem é “desejável visualizar o ônus de pré-constituir prova – em juízo ou fora dele – com o escopo de evitar a instauração do processo cujo objeto seja a declaração do direito e, portanto, de evitar uma decisão estatal acerca da relação material controvertida”. YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, Ed. Malheiros, São Paulo, 2009, p. 72.

3 Projeto de Lei 8.046/2010.

4 "Art. 388. A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que:
I – haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação;
II – a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar tentativa de conciliação ou de outro meio adequado de solução do conflito;
III – o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação."

5 No CPC português, a produção antecipada da prova tem natureza estritamente cautelar, conforme dispõe o art. 520 de predita codificação: “Havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de arbitramento ou inspecção, pode o depoimento, o arbitramento ou a inspecção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a acção”.

6 No âmbito da Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola, o art. 293 é claro ao tratar do caráter exclusivamente conservativo da produção antecipada de provas:

Artículo 293. Casos y causas de anticipación de la prueba. Competencia.
1. Previamente a la iniciación de cualquier proceso, el que pretenda incoarlo, o cualquiera de las partes durante el curso del mismo, podrá solicitar del tribunal la práctica anticipada de algún acto de prueba, cuando exista el temor fundado de que, por causa de las personas o por el estado de las cosas, dichos actos no puedan realizarse en el momento procesal generalmente previsto.
2. La petición de actuaciones anticipadas de prueba, que se formule antes de la iniciación del proceso, se dirigirá al tribunal que se considere competente para el asunto principal. Este tribunal vigilará de oficio su jurisdicción y competencia objetiva, así como la territorial que se fundase en normas imperativas, sin que sea admisible la declinatoria.
Iniciado el proceso, la petición de prueba anticipada se dirigirá al tribunal que esté conociendo del asunto.”

7 TARUFFO, Michele. Observações sobre os modelos processuais de civil law e de common law. Revista de Processo, São Paulo, n. 110, 2003, p. 152.

8Art. 696-bis. Consulenza tecnica preventiva ai fini della composizione della lite
L'espletamento di una consulenza tecnica, in via preventiva, può essere richiesto anche al di fuori delle condizioni di cui al primo comma dell'articolo 696, ai fini dell'accertamento e della relativa determinazione dei crediti derivanti dalla mancata o inesatta esecuzione di obbligazioni contrattuali o da fatto illecito. Il giudice procede a norma del terzo comma del medesimo articolo 696. Il consulente, prima di provvedere al deposito della relazione, tenta, ove possibile, la conciliazione delle parti.
Se le parti si sono conciliate, si forma processo verbale della conciliazione.
Il giudice attribuisce con decreto efficacia di titolo esecutivo al processo verbale, ai fini dell'espropriazione e dell'esecuzione in forma specifica e per l'iscrizione di ipoteca giudiziale.
Il processo verbale è esente dall'imposta di registro.
Se la conciliazione non riesce, ciascuna parte può chiedere che la relazione depositata dal consulente sia acquisita agli atti del successivo giudizio di merito.
Si applicano gli articoli da 191 a 197, in quanto compatibili.”

9 “La vera novità del disposto di cui all’art. 696 bis c.p.c, come si evince, è quella di prevedere una precisa funzione dell’istituto, e soprattutto uno “sganciamento” del relativo mezzo istruttorio dai presupposti della urgenza (periculum) e del fumus, desumibili dall’art. 696 c.p.c.” NARDO, Giulio Nicola. La nuova funzione conciliativa dell’accertamento técnico preventivo alla luce dela recente legge n. 80/2005, em https://www.lex.unict.it/didattica/materiale07/dirprocivile/saggi/nardo.pdf, consulta realizada em 06 de maio de 2014, 08h12min.

10 Flávio Luiz Yarshell nos oferece aprofundadas informações a respeito em YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, Ed. Malheiros, São Paulo, 2009, p. 72 e ss.

11 A conformação geral da produção prévia de provas no direito processual civil americano encontra-se na regra 26 das Federal Rules of Civil Procedure (“RULE 26. DUTY TO DISCLOSE; GENERAL PROVISIONS GOVERNING DISCOVERY”).

12 PAULA, Paulo Afonso Garrido de, em Código de Processo Civil Interpretado, coord. de MARCATO, Antonio Carlos, 3ª ed., Ed. Atlas, São Paulo, 2008, p. 2570.

13 SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil, v. 3, 3ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000, p. 342.

14 No CPC de 1939 (Decreto-lei 1.608/39), as ações cautelares, então denominadas “medidas preventivas”, vinham dispostas no Título I do Livro V, dedicado aos então chamados “processos acessórios” (e as ações destinadas à asseguração da prova sob risco vinham dispostas no art. 676, inciso VI, do CPC anterior), ao passo que a ação de justificação contava com trato legal no Título XII do mesmo Livro V, nos artigos 735 a 738:

“Da justificação

Art. 735. A parte que pretender justificar, para servir de prova em processo regular, a existência de ato ou relação jurídica, deduzirá, em petição circunstanciada, a sua intenção, requerendo que, provado quanto baste, com a citação dos interessados, as julgue a justificação por sentença.
Art. 736. A justificação consistirá na inquirição de testemunhas sôbre os fatos alegados, podendo o justificante juntar quaisquer títulos ou documentos que a comprovem.
Art. 737. A parte citada para a justificação poderá contestar as testemunhas, reinquirí-las e pronunciar-se sôbre os documentos, dos quais terá vista em cartório por vinte e quatro (24) horas.
Art. 738. Produzida a prova, o juiz dará sentença, de que não caberá recurso, e os autos serão entregues ao justificante, quarenta e oito (48) horas depois, independentemente de traslado, salvo se, dentro daquele prazo, a parte interessada houver pedido certidão.”
______________________

* Rogerio Licastro Torres de Mello é advogado do escritório Licastro Sociedade de Advogados. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP, professor convidado dos cursos de pós-graduação lato sensu da PUC/SP, da FAAP e da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Vice-presidente do Conselho do Ceapro.

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