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Conflito na execução pública de obras musicais

O sistema de arrecadação e gestão de direitos coletivos no Brasil está defasado e longe de ser equitativo. O mercado perde, o público perde. Haja talento e adaptação para sobreviver de música.

27/8/2014

Os direitos sobre as músicas tocadas publicamente estão num centro de disputa. Digladiando pela legalidade (ou não) da cobrança dos direitos de execução pública em locais de frequência coletiva estão os compositores, editores, intérpretes, produtores, órgãos fiscalizadores, empresas de diversos portes, segmentos e até mesmo o público consumidor e usuário em geral.

Para facilitar o raciocínio do que vamos tratar é importante tecer uma breve diferenciação entre os termos “obra” e “fonograma”. A obra (composição), segundo a Lei Autoral, exterioriza a criação do espírito do autor e lhe garante o chamado direito “patrimonial”, ou seja, o direito à remuneração sobre a sua utilização por terceiros. Na categoria de “autores” estão incluídos os compositores, editores e versionistas – nessas duas modalidades últimas da categoria de cessão (editor) e autorização (versionista), o autor originário ainda recebe percentual. Ao autor, e somente a ele, é atribuído outro direito chamado “moral” que é o liame de foro íntimo na criação e que defini limites garantidos ao autor como o direito ao anonimato, ao ineditismo e a proibição de utilização de sua obra.

Já o fonograma é a materialização da obra por meio da interpretação, inserção de sons, instrumentos, mixagens, efeitos, etc. Ou seja, é a gravação/ fixação da obra autoral em suporte material. E a essa gravação se atribui um número de registro ISRC – International Standard Recording Code, verdadeiro RG da música, que guarda as informações sobre o fonograma (autor, intérprete, músicos, arranjadores, produtor fonográfico e demais titulares de direitos conexos reconhecidos e responsáveis por auxiliar na criação e produção musical).

Dessa forma, na execução de uma música, recebem “direito autoral” seu(s) compositor(es) e “direitos conexos” seu(s) intérprete(s), músicos e produtor fonográfico.

Para entender a dinâmica que envolve o pagamento desses direitos, veja: os titulares de direitos filiam-se às associações musicais (hoje são 10 no total) que precificam, regulamentam, controlam e remetem informações ao ECAD - instituição privada que identifica os titulares dos direitos e alimenta seu banco de dados para fins de distribuição da arrecadação recolhida dos diversos usuários. Cada vez que um fonograma é tocado em rádio, em uma casa noturna, em bares, teatros, shows, rádios, TVs, ou no supermercado, em praça pública, em cinemas, etc. o fato gera um direito patrimonial aos autores, editores e demais titulares conexos do fonograma, que receberão um percentual sobre a bilheteria, ou sobre o faturamento, ou sobre a receita publicitária, ou sobre a extensão do espaço físico, conforme o caso.

Todos os valores arrecadados pelo ECAD são classificados e distribuídos da seguinte forma: titulares de direito 75,5%, Associações de autores 7,5% e Ecad 17%.

Dos 75,5% destinados aos titulares de direitos: (i) dois terços (2/3) são destinados à classe dos autores- sendo que 75% dos dois terços vão para os compositores e versionistas e 25% para editores; e ii) um terço (1/3) é destinado aos titulares de direitos conexos – sendo que 41,70% desse terço vai para o produtor fonográfico, 41,70 % para os intérpretes e 16.66% para os músicos. A única exceção feita à essa matemática diz respeito aos shows “ao vivo”, evento que destina 100% dos 75,5% da arrecadação do ECAD para os autores.

Portanto, é necessária autorização prévia e passível de cobrança a utilização das músicas por toda pessoa física ou jurídica em sua atividade comercial, ou seja, em espaços não domésticos ou privados - inserido ai está o ambiente digital, o mais utilizado hoje para download e audição online de músicas).

Pela lei, uma música só pode ser usada sem pagamento de direitos e em qualquer das modalidades e formatos de execução pública se o seu titular assim autorizar ou se a obra for classificada como pertencente ao “domínio público” – 70 anos após a morte de seu autor.

O ECAD conta com procedimentos eletrônicos de captação e identificação, a partir do código ISRC, para apurar os valores a serem pagos pelos estabelecimentos comerciais que executam as obras em ambiente público e os repassa aos titulares do direito. Leva conta critérios como o tamanho do local e do público e a relevância da música para o usuário. E quem utilizar as músicas sem autorização prévia fica sujeito às sanções criminais e civis cabíveis (art. 184 do código penal brasileiro e artigo 109 da Lei Autoral 9610/98).

Dessa forma, cabe ao ECAD fiscalizar e arrecadar os direitos autorais advindos de execução pública em qualquer meio, inclusive internet, observando os limites previstos na lei, remunerando quem de direito e sem estender ou extrapolar a sua incidência.


Mas como se dá a cobrança de direitos de execução pública pela internet? Trilha sonora colocada em sites paga direitos autorais? Caso o objeto do site seja a oferta de serviços de músicas selecionadas por ritmos?

Se a música for utilizada de forma permanente em local de frequência coletiva, mesmo se o local for virtual, a retribuição autoral é devida e precedida da licença de uso pelo ECAD. A polêmica antes residia no termo “local de frequência coletiva” e a jurisprudência tratou de sana-la. Quando a lei foi criada, o ambiente virtual não era tão utilizado e não constava no rol exemplificativo da lei.

Igualmente são devidos direitos pela execução pública pelas lojas virtuais de oferta de músicas. O mesmo cabe para as transmissões ou emissões, simultâneas ou não dos direitos no ambiente web.

O ECAD tem uma tabela aplicada a cada uso(comercial; promocional; institucional ou pessoal) e também analisa o tipo de aplicação da música: fundo musical, ambientação de sites, transmissão de eventos musicais, simulcasting, webcasting, podcasting, ringtone)


A mais recente polêmica envolvia a interpretação legal do termo “execuções musicais públicas na Internet”. Nessa arena, o ECAD teve que enfrentar a gigante Google, dona do YouTube. Atacou, mas depois recuou, na tentativa de cobrança direta de direitos aos blogs e sites usuários da ferramenta de inserção de vínculos embed.

Porque recuou? Pressões políticas e lobbies a parte, na prática entendeu-se que os blogs e sites somente disponibilizam e referenciam outros conteúdos embedados do YouTube o que fugiria totalmente do conceito de “retransmissão” ou execução pública online. O YouTube alega já pagar (pouco importa se muito, pouco ou ínfimo valor) os direitos autorais para os vídeos de seu site e a cobrança a blogueiros incorporadores dos vídeos em seu blogs seria uma dupla cobrança.

Colou e calou a polêmica. Mas a arena continua.... O sistema de arrecadação e gestão de direitos coletivos no Brasil está defasado e longe de ser equitativo. O mercado perde, o público perde.

Haja talento e adaptação para sobreviver de música. Aquela que já foi estilo de vida e hoje é mero entretenimento.

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* Marcia Bicudo é advogada especializada em Direitos de Autor na indústria fonográfica.

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