Brincadeiras à parte, é impossível fazer um prognóstico sobre o resultado desse jogo, porque não se aplica ao futebol a doutrina maniqueísta (ela se aplica a algo?). Nenhum time é inteiramente bom ou inteiramente ruim. E a equipe alemã não é exceção. É inegável que o futebol alemão tem uma história de destaque: participaram de 18 das 20 copas já realizadas, disputaram 12 semifinais (com esta, são 13), levando a taça 3 vezes e sendo vice-campeão 4 vezes. Hoje, ocupam o 2º lugar no ranking da FIFA e tem um dos campeonatos nacionais mais importantes do mundo em termos de público (telespectadores e torcedores) e de lucros.
O selecionado alemão para a Copa 2014 conta não só com craques, mas com um coletivo maduro, obediente taticamente e que tem tranquilidade para administrar resultados. Mas, por sorte, também tem defeitos. Empataram dois jogos com países sem tradição (Gana e Argélia, este último no tempo regulamentar), o técnico Loew é contestado pelo posicionamento do jogador Lahm e por algumas escolhas na escalação do time (dizem que ele prioriza a confiança que sente nos jogadores sobre sua performance em campo), os jogadores Ozil e Götze vêm sendo duramente criticados pela imprensa alemã por seu desempenho no mundial.
Na Alemanha contemporânea, também não vale a dicotomia entre o bem e o mal. Depois dos reveses de duas guerras mundiais, das duras sanções impostas nos tratados pós-conflito, que incluíram a divisão e ocupação do território nacional, e do holocausto, a Alemanha unificada ocupa um papel crucial na organização econômica, política e de defesa da Europa. Está estruturada sob as bases de um Estado republicano, democrático, federal, social e de direito, em que prevalece a divisão dos poderes, autonomia das unidades administrativas e economia social de mercado. Nesse contexto, a liberdade individual e coletiva de associação, assim como o(s) complexo(s) sistema(s) de seguridade social são cruciais. A economia, que está baseada na exportação de produtos industrializados e nos serviços, é a maior da Europa e a quinta na esfera mundial. O outro lado da moeda está na densidade demográfica do país (queda na taxa de fecundidade, expectativa de vida alta, declínio da imigração líquida), que ameaça a sustentabilidade do crescimento econômico e põe em risco a manutenção do sistema de seguridade social. Por isso, a partir da década de 2000 (governos Schroeder, 1998-2005, e Merkel, 2005-atualidade), foram realizadas reformas estruturais para reduzir a taxa de desemprego e impulsionar a taxa anual de crescimento econômico: subsídios governamentais, redução da jornada de trabalho, austeridade fiscal, entre outras. Essas medidas favoreceram a rápida recuperação da economia alemã, inclusive frente à crise financeira de 2008. E, ao mesmo tempo, resultaram na precarização das condições de trabalho conforme aponta um estudo realizado pela central sindical DGB.
Especificamente no que diz respeito ao sistema de relações de trabalho, a dualidade de virtudes e defeitos se expressa de maneira mais aguda. A Alemanha é signatária de 85 convenções da OIT, das quais 74 estão vigentes - entre elas, as 8 fundamentais e as 4 prioritárias. A legislação nacional (Works Constitution Act) regula a cooperação entre empregadores e trabalhadores, estabelecendo o direito de co-determinação em matéria social e de recursos humanos que é exercido por meio dos Conselhos de Trabalho. O Poder Judiciário conta com uma justiça especializada em matéria trabalhista e outra em matéria de seguridade social, ambas estruturadas em três instâncias e conformadas por juízes profissionais e classistas (indicados por empregadores e trabalhadores). A importância de sua atuação pode ser exemplificada pela anulação de todos os acordos celebrados por uma entidade sindical comprovadamente pelega. Apesar disso, as normas nacionais impõem limites à negociação coletiva e ao direito de greve que acabam dificultando e, às vezes, inviabilizando o seu exercício. Exemplos: a ausência de uma definição legal do critério de representatividade deixa a validade dos acordos sujeita ao arbítrio do Poder Judiciário (o que gera insegurança); a competência dos Conselhos de Trabalho para deliberar determinados assuntos se sobrepõe à da negociação coletiva, reduzindo o poder negocial das entidades sindicais; a exclusão de setores econômicos como forças armadas, polícia e servidores públicos não estáveis; exigência de que se esgotem todos os meios pacíficos de negociação antes de declarar greve; limitação ou proibição de certos tipos de greve; admissão de medidas que reduzem a efetividade da greve (como a concessão de benefícios financeiros adicionais aos trabalhadores não grevistas). Adicionalmente, as práticas antissindicais levadas a cabo por empregadores privados tem se tornado sistemáticas, o que debilita o movimento sindical. Aliás, as reformas operadas desde os anos 2000 também contribuíram para o enfraquecimento das entidades sindicais, na medida em que transformaram os postos de trabalho (flexibilidade, contratos a tempo parcial, etc.) redundando na redução das taxas de afiliação.
Moral da história: não está morto quem peleja. Nós também temos virtudes e defeitos. De um lado, a tradição no futebol expressada em mais títulos, os craques, o técnico pródigo em vitórias improváveis, o estádio e a torcida. Por outro lado, um coletivo que só esboça entrosamento, escolhas técnicas e táticas questionáveis, desfalques importantes na equipe, jogadores bastante jovens e um histórico recente de abalo psicológico. O que vai prevalecer nesta terça-feira, 8 de julho, ninguém sabe. Eu prefiro acreditar que tudo o que aconteceu no Mundial até agora só serviu para fortalecer nosso time, que entrará "imponente no gramado em que a luta o aguarda" (quem pode resistir ao hino do meu amado alviverde…), ostentando sua fibra, sua raça e seu amor à camisa. O mesmo vale para as nossas relações trabalhistas, para o combate ao trabalho escravo e infantil, para a democracia, para a participação social, etc.. Mas, isso é assunto para um outro texto. Quem sabe um texto sobre um país hexa campeão mundial. Quem sabe.
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